Passam por estes dias de solstício de inverno (21 e 22 de
dezembro) 40 anos sobre o I Congresso do MES. Para quem não saiba, por razões
da usura do tempo, trata-se de um pequeno partido político criado, de facto,
imediatamente antes do 25 de abril de 1974 mas formalizado somente após a
restauração das liberdades, em data imprecisa no plano burocrático, mas precisa
no plano político, a meu ver, na manifestação do 1º de maio de 74, em Lisboa,
através da inscrição da sua sigla – ainda sem símbolo - num pano que muitas
generosas mãos arvoraram.
Foi longo o período de gestação
do MES, ainda mais se medido à velocidade vertiginosa dos acontecimentos pós 25
de abril de 1974, sendo o seu I Congresso realizado somente cerca de oito meses
após o dia 25 de abril. Naquele contexto oito meses era uma eternidade … Este
processo, trespassado por lutas e debates, teve muitos e ilustres protagonistas
oriundos de diversos sectores da oposição à ditadura. Muito já foi escrito,
estudado e debatido acerca da ditadura, seus protagonistas e processos (apesar
de alguns, nos quais me incluo, acharem que foi pouco).
O despretensioso escrito que dou
à estampa deve-se, no essencial, à necessidade que sinto, de manter viva a
memória e divulgar nomes de cidadãos – dos quais somente uma meia dúzia têm
notoriedade pública - que partilharam a experiência única, e irrepetível, de participarem
numa revolução. De onde surgiram, o que os impeliu a reunirem-se sob uma mesma
bandeira, o que os entusiasmou, o que ganharam e perderam, quando, e como, se
desiludiram, quais os percursos pessoais e profissionais que percorreram não
vem ao caso.
O que quero mesmo, repetidamente,
de forma consciente e voluntária, é colocar a memória e os nomes de
protagonistas do MES (infelizmente somente parte deles) não como resquício de
um passado glorioso, mas como legenda de um acontecimento histórico concreto
que permitiu restaurar, apesar de todas as faltas e erros, o mais precioso bem
de que uma comunidade humana se pode orgulhar, a liberdade. Aquisição que, como
todos sabemos, nunca é definitiva conquistando-se, a duras penas, no quotidiano
da vida, ontem, hoje e amanhã.
Tenho escrito acerca do MES, que
o mesmo é dar rosto a pessoas que, a partir da segunda metade do século XX,
fizeram parte de um relevante sector intelectual não-alinhado com o Partido
Comunista, de um segmento do movimento sindical/operário de base forjado num
programa inovador de cariz, assumidamente, anti capitalista, de um núcleo duro
do movimento estudantil que se havia radicalizado, saindo da órbita dos
comunistas e dos grupos maoistas, após as lutas de 1969 e de uma franja
significativa do movimento católico progressista que se bateu duramente, em
particular, contra a guerra colonial.
As confluências de diversas correntes
sectoriais, através dos seus activistas, no MES foi possível pela acção de
muita gente que assumiu simples, ousadas ou mesmo inúteis tarefas, assumindo um
papel relevante em cada uma delas, que não sou capaz de fazer caber neste
escrito, mas que me apetece referenciar, correndo o risco do subjectivismo de
meu juízo, algumas individualidades que muito influenciaram o desenvolvimento
da curta história do MES.
Serei inevitavelmente injusto
para muitos amigos que prezo mas preciso, neste breve exercício, de ser
sucinto.
- No sector intelectual, Nuno Brederode Santos que, como já
descrevi noutras crónicas, com descrição e rara inteligência/intuição política,
foi o verdadeiro mentor da opção pela saída do MES da corrente política que
sempre foi publicamente associada à liderança de Jorge Sampaio, a sua personalidade de referência mais marcante em
termos políticos e com notoriedade pública até ao presente;
- No sector sindicalista/operário
António Santos Júnior, líder
incontestado do movimento operário, com origem nas lutas da TAP, que havia de encabeçar
uma lista vencedora nas eleições do Sindicato dos Metalúrgicos, sendo
silenciado quando se preparava para tomar a palavra no comício do 1º de maio em
nome do MES e Agostinho Roseta,
desde sempre ligado de forma continuada, e persistente, à acção
politico-sindical que originou uma corrente sindical não comunista que haveria
de desembocar, com todas as suas vicissitudes, na UGT;
- No movimento estudantil Alberto Martins, pelo papel
desempenhado no despoletar da crise académica de 1969 em Coimbra, afrontando de
forma desabrida os ditamos do regime e Ferro
Rodrigues no movimento estudantil de Lisboa, em particular, em Económicas
que havia sido transformada, após 1968, na peugada do movimento de Maio em
França, numa espécie de "território libertado”;
- No movimento dos católicos
progressistas, Nuno Teotónio Pereira,
oriundo de famílias conservadoras, com obra de referência na actividade
profissional de arquitecto, tendo vindo a tornar-se numa referência
incontornável na luta contra a guerra colonial, e a ditadura, para as novas
gerações e Vítor Wengorovius, o mais
intenso mobilizador de vontades, o orador mais infatigável de todos, sempre
buscando consensos, superando divergências e reparando relações.
(Manuel Serra adversário direto,
e assumido, de Mário Soares no I Congresso do PS, realizado a uma semana de
distância do I do MES, no mesmo local, contou-me, na última conversa antes de
falecer, que havia reunido com VW para desafiar o MES a aderir ao PS logo em
dezembro de 1974, criando condições para ganhar aquele Congresso, o que VW nunca me revelou.)
O MES constituiu-se,
formalizando-se, num Partido a custo pois as suas raízes beberam muito da
ideologia libertária, que havia esmorecido ao longo do período da ditadura, mas
que César de Oliveira fez retornar propondo,
e fazendo vencer, a consigna que o MES adaptou nos seus primórdios: «A emancipação dos trabalhadores tem de ser
obra dos próprios trabalhadores».
O MES foi, na verdade, um partido
minoritário de elites, e de causas perdidas, nunca se assumindo como projecto
politico de poder, abordando as eleições às quais concorreu – constituintes de
1975 e legislativas de 1976 - com um surpreendente espírito de cruzada
pedagógica junto dos portugueses, que nunca haviam conhecido a cor da
liberdade, razão pela qual, sem apelo nem agravo, em todas foi estrondosamente
derrotado.
O MES foi, no seu âmago, um partido da
esquerda radical, mais do que um partido esquerdista, lidando mal com
alinhamentos ideológicos mesmo aquando da sua deriva marxista-leninista, reconheçamo-lo,
uma mera proclamação artificial e dolorosamente patética. O MES foi um esboço
de casa comum na qual se acolheram cidadãos desalinhados – livres de
compromissos com o antigo regime - que aspiravam combater as brutais
desigualdades e iniquas misérias herdadas do “Estado Novo”.
Nele se acolheram
uma plêiade de altos quadros intelectuais, operários, sindicalistas, estudantis,
activistas de movimentos sociais emergentes, com escassa experiência política, que
na voragem de um singular tempo de brasa, sonhavam – sob diversos e
contraditórios ideários socializantes - a mudar tudo na sociedade portuguesa
fazendo do MES, na sua breve existência, antes e pós I Congresso de 21 e 22 de
dezembro de 1974, um espaço de rebeldia e, no período fundador, de criatividade
como revelam, por exemplo, as designações de inúmeras estruturas criadas e a
obra gráfica, criada por Robin Fior, para a criação de uma imagem para o MES.
O MES foi, por fim, um partido
que ousou auto extinguir-se – se bem que nem todos os que nele tomaram parte
tenham concordado com o “sacrifício” - tendo cada um dos seus membros, ao longo
do tempo, saído, em liberdade, dando ca aminho às suas vidas nos mais diversos
caminhos. Extinguindo-se, por ato público o MES assumiu, de forma radical, o
fracasso do seu projecto político salvando a essência dos sonhos que presidiram
à sua criação.
Um Movimento que influenciou uma geração
inteira e que, 40 anos passados, deixou um legado de luta por causas que
genuinamente foram (e são) assumidas por justas, porque fundadas na aspiração à
igualdade, justiça social e liberdade.
Que viva!