Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,
Editado por Eduardo Graça
terça-feira, janeiro 16
MULHERES - I
A propósito da chegada, em boa hora, à agenda politica do tema da igualdade de género, ou seja, da posição das mulheres nas nossas sociedades (em todos os seus diversos modos e facetas), deixo uma série de posts versando o tema. A luta é antiga e deixo a homenagem a MARIA VELEDA - notável combatente republicana dos primórdios da luta pelos direitos das mulheres. Nascida na minha cidade e freguesia - Faro, São Pedro, 26 de fevereiro de 1871.
segunda-feira, janeiro 15
PALPITES XXXI
Outro dos pontos que os democratas têm que cuidar neste periodo é o das guerras. Nós estamos, geograficamente, muito longe do epicentro das guerras que se travam na Europa. Os portugueses vêem a guerra como realidade distante. Assistimos às cenas de guerras no sofá. Não há portugueses vivos que tenham sofrido os efeitos da guerra à porta de suas casas. Mas pertencemos à Europa a todos os títulos e compete-nos, por pertença, dever e interesse tomar posição. Logo espera-se que os partidos se prenunciem, de forma clara, acerca das guerras. De momento ouve-se um profundo silêncio.
domingo, janeiro 14
PALPITES XXX
Ser democrata é ser capaz de tolerar as ideias dos adversários, combatê-las sem receio do debate e confronto democrático. Neste periodo eleitoral dois dos temas que deveriam ser preocupação de todos: estado social e imposto progressivo, duas das maiores conquistas do século XX, nos países europeus e na América do Norte. Com suas diferenças e modelações são peças fundamentais para combater as desigualdades.
sexta-feira, janeiro 12
CONTRA A PENA DE MORTE!
Em Lisboa, nos arrabaldes de Belém, o Duque de Aveiro e alguns membros da família dos Távoras foram publicamente executados, em 13 de Janeiro de 1759, por estarem implicados no atentado contra o rei D. José. A sentença foi aplicada de uma forma tão brutal e selvagem que foi muito criticada pela opinião pública internacional. Na gravura vê-se o patíbulo com os condenados a serem sentenciados e os seus carrascos; magistrados com as suas varas encarnadas e tropas de infantaria, com os seus tradicionais uniformes brancos com granadeiros de gorro de pele à direita da bandeira regimental, assim como de tropas de artilharia com os seus uniformes azuis. A legenda da gravura enumera os condenados.
PALPITES XXIX
Ouvi ontem por acaso alguém recordar que o PPM, em 2019, se coligou com o partido da extrema direita nas europeias. Fiz uma pesquisa rápida para confirmar o que já não me lembrava. Nada contra as coligações que são legitimas. Estranha é a coligação que o PSD agora criou integrando o PPM. Que sentirão os democratas republicanos que militam no PSD!
terça-feira, janeiro 9
NO ANIVERSÁRIO DA MORTE DO MEU PAI DIMAS
Por aqueles dias da primavera de 1958 o meu pai perdeu o medo. Pegou-me pela mão e levou-me a ver a passagem por Faro de Humberto Delgado. Estávamos em plena campanha presidencial. Pela primeira vez, desde o imediato pós guerra, o poder de Salazar tremia. Delgado era destemido, até à beira da loucura, segundo os seus detractores. A sua candidatura forçou à desistência de Arlindo Vicente, candidato apoiado pelo Partido Comunista. Humberto Delgado fez-se ao caminho e arrastou multidões até às urnas. Eu também lá estive pela mão do meu pai. Seguimos de Faro para Olhão onde a recepção foi apoteótica. Nunca hei-de esquecer a mão quente de meu pai apertando a minha. Eu não sabia ainda o significado da palavra fascismo. Mais tarde Humberto Delgado foi assassinado pelos esbirros da PIDE. Os assassinos morreram na cama. É revoltante. Tenho medo de sentir esta sensação de revolta perante a tolerância da democracia. Mas a tolerância, afinal, nunca é excessiva. Aprendi isso com o meu pai. Era um comerciante honrado. Morreu no dia 9 de Janeiro de 1992.
segunda-feira, janeiro 8
domingo, janeiro 7
PALPITES XXVIII
Ainda no rescaldo do dia de hoje que assinalou o inicio da campanha eleitoral - Congresso do PS, apresentação da AD - na bolha mediática, alguns apontamentos pessoais. É a primeira vez que um lider do PS é nascido no pós 25 de abril. PNS deve ter votado pela primeira vez em eleições nos anos 90, enquanto eu votei em todas as eleições desde 74 (e mesmos antes, nas farsas eleitorais pós 65). Votei sempre no PS, exceto enquanto existiu o MES e foi às urnas. Não conheço PNS, nem de perto nem de longe, nunca o vi ao vivo, tenho dele vagas impressões, que não evitam que aprecie a sua vontade de fazer diferente. O PS, e o seu lider, enquanto forem o alvo de todas as atenções, debates e conversas, terão bastas possibilidades de vencer eleições. A notoriedade é a chave do sucesso eleitoral, desde que os que se apresentam a votos não façam grossas asneiras e apresentem, de forma clara, e decente, as suas ideias. A direita, que tem entre os seus pessoas decentes, tem muitos mais obstáculos no caminho - desde logo o populismo mais desbragado - do que a esquerda de que o PS é, e será, a principal força, e referência, para a maioria dos portugueses.
PALPITES XXVII
Tenho a perceção que o PS ultrapassou de forma muito positiva esta transição politica, com unidade interna e discurso positivo. O encerramento do Congresso foi marcado pela intervenção de encerramento de PNS. Gostei. Sempre encarei a sua candidatura à liderança como a que melhor servirá, no próximo futuro, as causas que são sintetizadas por uma velha tríade: liberdade, igualdade, fraternidade. E sempre pensei que PNS seria o melhor lider do PS, previsivelmente, como lider da oposição. Hoje através das suas palavras apontou alguns caminhos interessantes muito me surpreendendo no conjunto da intervenção e, particularmente, na parte inicial ao dar ênfase à questão da cooperação, no sentido amplo. Pode ter iniciado um caminho que leve o PS a ganhar as eleições. Não sei o que acontecerá no dia 10 de março mas, em qualquer caso, pode ganhar nos Açores (4 fev) o que seria um bom indício.
sábado, janeiro 6
ALBERT CAMUS - 6 JANEIRO 1960
Le 6 janvier 1960, une foule d´anonymes et quelques amis se retrouvent devant la grande maison de Lourmarin où le corps d´Albert Camus a été transporté dans la nuit. Quatre villageois portent le cercueil que suivent son épouse, son frère Lucien, René Char, Jules Roy, Emmanuel Roblès, Louis Guilloux, Gaston Gallimard et quelques amis moins connu, parmi lesquels les jeunes footballeurs du village. Le cortège avance lentement dans cette journée un peut froide et atone de ce « pays solennel et austère – malgré sa beauté bouleversante ».
Devant le caveau, Francine Camus jette une rose sur le cercueil. Le maire prononce une courte allocution et le silence n´est troublé que par le bruit de la terre sue le bois de la bière.
L´heure est de recueillement. Les communiqués officiels, les télégrammes affluent. Tous unanimes dans l´hommage et l´affliction conjugués.
Les temps ont changé, et ils sont nombreux, les détracteurs d´hier qui saluent aujourd´hui la disparition de celui aux côtés duquel ils avaient obstinément refusé de marcher. Celui qui, au terme de tant d´attaques et de malveillance, avait choisi de s´enfermer dans un douloureux silence.
Les premiers tirs étaient venus de gauche, et plus particulièrement du parti communiste qui ne pardonnait pas à cet ex-compagnon de route de prendre du recul, de regarder en face certaines réalités. De dire l´intolérable : le stalinisme, les camps, les idéaux mis au pas par des tyrans de l´histoire.
In Les Derniers Jours de la vie d´Albert Camus, José Lenzini, Actes Sud
PALPITES XXVI
Os partidos são o pilar central dos regimes democráticos pelo que não admira que o PS busque afirmar-se, como partido estruturante do regime, através do seu congresso, apresentando um novo lider. Neste caso excecional, em véspera de eleições legislativas, após a decapitação da sua liderança. Outra é a questão de saber das razões profundas dessa decapitação. Estranho é, por outro lado, que o PSD, outro partido pilar da democracia portuguesa, abdique de se apresentar autonomamente, suscitando a crição de uma coligação com dois partidos relíquias da nossa história democrática (tal como o PCP tem feito desde há muito). Curioso fenómeno este de o partido do poder cessante (PS) se assumir, autonomamente, rejuvenescido na liderança, e o partido incumbente (PSD) surgir, como se fora o partido do poder cessante, por detrás de uma ténue cortina coligacional. Tudo é possível mas auguro que os dois partidos chave do regime democrático - PS e PSD - serão capazes de honrar a sua tradição de partidos democráticos.
quinta-feira, janeiro 4
PALPITES XXV
Este ano, politicamente falando, vai ser insuportável. Mas que remédio, suportá-lo! Eleições, eleições, eleições! As eleições livres são uma conquista fundamental do 25 de abril. A fonte de Belém hoje no Expresso, no qual espreitei, começa a preparar a opinião pública para a instabilidade provável à saída das eleições de 10 de março. Com novas eleições, após a provável derrota de Montenegro (sem maioria), sua queda e posterior substituição. Belém fica de mãos atadas a partir do meio de 2025, pelo que terá de jogar todo o jogo até lá, ou seja, colocar uma maioria de direita no poder. Belém perdeu o norte por mais que se queira contemporizar. Ou seja perdeu o apoio dos portugueses de bom gosto e bom senso. Adiante.
quarta-feira, janeiro 3
PELO ANIVERSÁRIO DA MORTE DE ALBERT CAMUS
1960 – No dia 3 de Janeiro, Camus parte da sua casa de Lourmarin, onde havia passado o fim de ano, de regresso a Paris, no Facel Vega conduzido por Michel Gallimard. Francine Camus fizera a viagem de comboio na qual deveria ter sido acompanhada por Camus; no dia seguinte, no prosseguimento da viagem, o carro despista-se, numa longa recta, em Villeblevin, perto de Montereau, embatendo num plátano, provocando a morte imediata de Camus e, cinco dias mais tarde, a de Michel Gallimard. Na pasta de couro de Camus, encontrava-se, além de diversos objectos pessoais, o manuscrito de Le Premier Homme, cento e quarenta e quatro páginas que sua mulher Francine haveria de dactilografar e sua filha, Catherine, fixaria em texto, publicado pela Gallimard, na primavera de 1994.
Albert Camus está sepultado em Lourmarin.
terça-feira, janeiro 2
PALPITES XXIV
Neste tempo que é o nosso é imperioso defender o modelo onde impere a liberdade e a democracia representativa. O adquirido das lutas de antanho dirá pouco às novas gerações. Sempre será assim pelo que é necessário criar novos desafios e encontrar novos caminhos para corresponder às aspirações razoáveis de todas e todos. Nestes desafios do presente, eleições várias incluidas, o mais, e melhor, que temos de fazer é sermos fiéis aos nosso valores cumprindo nosso ideal. Por mim vou continuar a trabalhar um tempo mais e guardar outro tempo do meu futuro para escrever, dando testemunho. Veremos. Votos de Bom Ano de 2024!
segunda-feira, janeiro 1
PALPITES XXIII
Hoje é dia de Ano Novo que sempre foi importante na minha relação com o tempo. Surge-me na memória o "Golpe de Beja", tentativa de sublevação militar, destinada a derrubar a ditadura, realizado de 31 de dezembro para 1 de janeiro de 1962. Nessa madrugada regressava de casa de meus avós maternos, de Santo Estêvão, Tavira, para Faro, e era visivel a atividade policial, fora do vulgar, pois alguns dos sublevados do golpe frustado fugiram para sul. Hoje por hoje, dentro das fronteiras, decorrem exercícios politicos cujos contornos são dificeis de entender. Julgo que só muito mais tarde se fará luz sobre as razões das manobras politicas que levaram à antecipação de eleições legislativas. Certamente os lobbys ligados aos negócios de Estado terão tido forte influência. A ver!
sábado, dezembro 30
MEMÓRIA DE UMA DITADURA
“Ano Terrível: designação dada ao ano de 1937. Correspondeu à fase mais sinistra do Grande Terror estaliniano: execução de Riutine, segundo Grande Processo de Moscovo (Piatakov, Radek, Serebryakov, Muralov e Sokolnikov – exceptuando Radek, todos foram executados), suicídio de Serguei Ordjonikidze, prisão de Bukharine (que será executado no ano seguinte), execução (sem julgamento) do economista e teórico do comunismo Preobrajensky, assim como a execução do Marechal Tukhatchevsky (e de outros sete notáveis chefes militares, todos eles generais).
Por outro lado prosseguiu a “vingança” de Estaline contra Trotsky: o assassínio de Serguei Sedov (filho mais novo) e da execução de Aleksandra Sokolvskaia ( a sua primeira esposa) também ocorreram, neste mesmo ano. No entanto não se pode ignorar o facto de o ano de 1938 não ter sido melhor: execução de Bukharine, Rykov e Krestinsky; e assassínio de Lev Sedov, filho mais velho de Trotsky, em Fevereiro.”
In “Bukharine, Minha Paixão” de Anna Larina Bukharina, tradução do notável comunista Ludgero Pinto Basto - “Glossário” - página 419 - (organizado e escrito por Alberto Freire), Edições Terramar
quinta-feira, dezembro 28
IR À RUA
A rua é uma instituição urbana. Os meus antepassados próximos, de origem rural, conheciam mal este conceito. O advento da sociedade urbana atribuiu um estatuto especial a “ir ao campo”. Mas, durante séculos, para os rurais o grande dia era o da feira que os levava a “ir à cidade”. A geração dos “babby-boomers”, de que faço parte, experimentou a fase final desta contradição. Lembro-me da impressão que me causou o filme de Renoir, “Passeio ao Campo”. Lembro-me dos meus passeios ao monte dos meus avós maternos que, ainda nos anos 70, não tinham energia eléctrica em casa tendo assistido, impotentes, à instalação, mesmo ao pé da porta, de dois postes que suportavam a linha que fornecia a energia a Tavira mas não os alimentava a eles. Senti o encanto da grande urbe de Lisboa ainda mal tinha resolvido a contradição “cidade/campo”. Nos primeiros dias, após a minha chegada definitiva a Lisboa, caminhei a pé pela Baixa, calcorreei as ruas dos bairros da Estrela, Campo de Ourique e da Lapa. Até que os pés aguentassem. Só. Fiz a carreira do eléctrico 28 dos Prazeres à Graça e da Graça aos Prazeres. Lindas as palavras que identificam estes dois bairros de Lisboa. Caminhar pelas ruas da cidade de Lisboa era uma alegria. A partir de certo momento tornou-se uma aventura e um risco. Não pelo trânsito nem sequer pela delinquência que, em Lisboa, sempre foi uma brincadeira de crianças se comparada com outras urbes da Europa ou das Américas. Mas porque em certas esquinas, à noite, nas saídas tardias das tertúlias ou das actividades associativas (subversivas?), surgiam vozes cavas e anónimas que pronunciavam o nosso nome em tom ameaçador. Porque ao caminhar pela rua surgiam interpelações ameaçadoras de desconhecidos que nos acotovelavam. Porque o regresso a casa, à noite, tinha de ser cuidadosamente preparado prevendo a arremetida que nos levaria ao hospital ou à prisão. Muitas destas caminhadas fi-las acompanhado pelo Eduardo Ferro Rodrigues. Nunca nos deixamos intimidar mas estávamos longe de prever como seria possível que, nos tempos da democracia, pela qual lutamos a vida toda, ressurgirem as mesmas ameaças à liberdade revestidas de novas e mais subtis formas. Ir à rua, para mim, sempre foi um verdadeiro exercício de liberdade. Como sabemos “ir à rua” pode ser até uma manifestação espontânea, ou organizada, de protesto. Mas há quanto tempo não vamos à rua? Em tempo: ir às urnas, em democracia, também é um salutar exercício de liberdade!
quarta-feira, dezembro 27
terça-feira, dezembro 26
PALPITES XXII
O PR está fragilizado. O assunto que despatou essa fragilidade tem ressonâncias à revolução cultural de Mao. Os pais denunciavam os filhos, os filhos denunciavam os pais. O assunto é mais grave do que a correria das notícias do momento permitem, vai ao fundo das relações da vida em sociedade, conforme os nossos padrões. Ao mesmo tempo entrámos em campanha eleitoral. O socialismo moderno em Portugal criou e deu corpo a duas utopias convencionais: o acesso universal e gratuito à educação e à saúde. Digam o que disserem são projetos concebidos, criados e concretizados por governos socialistas. Não é coisa pouca antes pelo contrário. No dia 10 de março é só escolher...
domingo, dezembro 24
NATAL
Da esquerda para a direita: o meu irmão Dimas de flor na lapela. O meu pai Dimas, vestido a rigor, de fato e gravata. Minha mãe, Tolentina, de fina camisa branca. A avó, Maria da Conceição, já doente, austera no seu vestido preto. A tia Lucília, uma beleza cinéfila, brilha à luz quente que envolve o Algarve de todas as estações. O mais pequeno, eu próprio, circunspecto, talvez, pela contrariedade do traje.//
Natal. A minha tia Lucília. Irmã mais nova de meu pai. Nascida em 1917. Os fragmentos de suas memórias sempre me surpreenderam. A primeira mulher que me beijou chamada às pressas para ajudar no meu nascimento. Uma mulher linda que se desprendia ao encontro dos outros. Nesta fotografia sou o sobrevivente do grupo que mostra uma família feliz.
sexta-feira, dezembro 22
POLÍTICA
Em vésperas de Natal a direita política está com uma fome desvairada, a direita económica nem tanto. Para mim a direita política são todas as forças, organizadas em partidos, à direita do PS. Não sou capaz de afastar de mim o interesse acerca da política, esse interesse vem de muito longe, quando adolescente, discutia com o meu tio Ventura, homem do Estado Novo, coisas da política, sempre de candeias às avessas. Hoje por hoje, tanto tempo passado, espero não ter que vir a discutir coisas da política com algum familiar adepto dos ideais neo-fascistas (o termo é mesmo este, mais tarde voltarei ao assunto). Em qualquer caso a política, ao contrário de todas as aparências, é uma atividade nobre.
I CONGRESSO DO MES (49 ANOS) - 4
O meu interesse por esta fotografia vem de longe e reside no facto do pano de fundo ter sido desenhado, em parte, com os pés. Queríamos fazer transbordar o símbolo do seu círculo fechado, subvertê-lo, criar uma imagem de movimento, mostrar um partido como lugar de caminhada e de encontro, o lugar de todas as utopias.
quinta-feira, dezembro 21
I CONGRESSO DO MES (49 ANOS) - 3
O MES foi, no seu âmago, um partido da esquerda radical, mais do que um partido esquerdista, lidando mal com alinhamentos ideológicos mesmo aquando da sua deriva marxista-leninista, reconheçamo-lo, uma mera proclamação artificial e dolorosamente patética. O MES foi um esboço de casa comum na qual se acolheram cidadãos desalinhados – livres de compromissos com o antigo regime - que aspiravam combater as brutais desigualdades e iniquas misérias herdadas do “Estado Novo”.
I CONGRESSO DO MES (49 ANOS) - 2
Foi longo o período de gestação do MES, ainda mais se medido à velocidade vertiginosa dos acontecimentos pós 25 de abril de 1974, sendo o seu I Congresso realizado somente cerca de oito meses após o dia 25 de abril. Naquele contexto oito meses era uma eternidade … Este processo, trespassado por lutas e debates, teve muitos e ilustres protagonistas oriundos de diversos sectores da oposição à ditadura. Muito já foi escrito, estudado e debatido acerca da ditadura, seus protagonistas e processos (apesar de alguns, nos quais me incluo, acharem que foi pouco).
I CONGRESSO DO MES (49 ANOS)
Por estes dias de solstício de inverno (21 de dezembro) passa mais um aniversário do I Congresso do MES, realizado a 21 e 22 de dezembro de 1974. Para quem não saiba, por razões da usura do tempo, trata-se de um pequeno partido político criado, de facto, imediatamente antes do 25 de abril de 1974. Foi, no entanto, formalizado somente após a restauração das liberdades, em data imprecisa no plano burocrático, mas precisa no plano político, a meu ver, na manifestação do 1º de maio de 1974, em Lisboa, através da inscrição da sua sigla – ainda sem símbolo - num pano que muitas generosas mãos arvoraram. (A imagem neste caso é a do pano de fundo das sessões do Congresso realizado na Aula Magna da Cidade Universitária, em Lisboa.)
terça-feira, dezembro 19
20 ANOS
No dia 19 dezembro de 2003, pelas 16,20h, foi criado este blog com a seguinte frase: "Estreia absoluta. Um lugar de comunicação. Experiência para a primeira impressão dos outros. Uma primeira audição para inicio de trabalho." Eram tempos em que a chamada blogosfera usufruia de grandes audiências, ao contrário do que acontece hoje.
domingo, dezembro 17
PALPITES XXI
De ontem para hoje, 16 e 17 dezembro de 2023, mudou a liderança do PS. Acontece através de escolhas eleitorais, neste caso internas a um partido, o que é um acontecimento próprio da democracia politica. A defesa da democracia faz-se exercendo a democracia. No caso tendo em vista a escolha de um lider partidário. Não conheço pessoalmente o lider eleito. Mas a minha filiação no PS é antiga e imune a estados de alma acerca da personalidade dos lideres. Esta eleição sublinha um aspeto muito interessante da vida politica nacional. Um partido é apeado do governo após a queda do seu lider. Promove a eleição de um novo. De súbito, no pleito eleitoral nacional, o partido do governo apeado surge com um lider novo, a novidade, invertendo os papéis na relação com o lider do partido incumbente. Ainda para mais o lider novo do partido "velho" denota uma personalidade disruptiva pelo menos no discurso. Aconteceu assim quase sempre, se bem me lembro, como nos casos de Sampaio, Ferro, Sá Carneiro ...
sexta-feira, dezembro 15
15 dezembro 74
Uma efeméride respeitante ao MES: Em vésperas do I Congresso, numa longa carta, de 15 de Dezembro de 1974, que me enviou de Moçambique, Luís Salgado de Matos adverte: "...rezo aos meus santinhos para que não façam cisões - sobretudo a cisão na confusão. Corre-se mais o risco da grupuscularização sem dogma que da social democratização derrapante: não defendo a síntese da carne e do peixe (...) mas julgo que é um risco grave cortar o pano sem ver o tecido. Cisão, a haver - pelo que se pode desenhar - afastará o social democratismo (...) mas reduzirá o MES ao nível do grupinho necessariamente sectário mas sem um conjunto rígido de princípios (que costuma ser a safa destes grupinhos)."
Sábias palavras...
quarta-feira, dezembro 13
PALPITES XX
O Estado Social é uma grande conquista das sociedades ocidentais (e não só) impulsionado pelo movimento socialista e sindical, com forte salto e expressão no pós guerra (1945). Pelas razões históricas conhecidas, Portugal não acompanhou esse movimento senão após 1974. O acesso generalizado à educação, aos cuidados de saúde e à segurança social, são as pedras angulares do Estado Social, conquistas do movimento socialista e sindical, após o 25 de abril. Não é uma pequena coisa mas o cerne do modelo social dominante no nosso país. Quem melhor o defende? Os próprios beneficiários que aceitam o papel do Estado, o imposto progressivo, o voto livre, o modelo político da democracia representativa. Não há Estado social sem democracia, ou seja, liberdade de escolha a todos os níveis da sociedade. Qualquer cedência a derivas autoritárias, mesmo quando aparentam a defesa de um Estado forte, é um risco de queda na desordem da arbitrariedade dos vendedores de ilusões.
segunda-feira, dezembro 11
PALPITES XIX
As elites económicas têm muita influência na formação da opinião pública e na conformação das politicas. A falta de vigor dos movimentos sociais reivindicativos, que transparece da presente acalmia, favorece a influência das elites económicas. Não parece plausivel uma evolução gradualista na presente vida politica nacional. Se assim não for será surpreendente. O próprio calendário eleitoral foi subvertido por iniciativa presidencial que antevê uma fragmentação partidária. Mesmo agora se antecipam as eleições regionais nos Açores para uma sucessão de eleições - 4 janeiro, 10 março e 8 junho (1 semestre/três eleições). Um dia mais tarde se fará a história das razões profundas desta inversão de calendário.
domingo, dezembro 10
CAMUS, 10 DEZEMBRO 1957
Quando soube da atribuição do Prémio Nobel “pela sua importante obra literária, que foca com penetrante seriedade os problemas que se colocam nos nossos dias à consciência dos homems”, Albert Camus escrevu nos Cadernos: “Prémio Nobel: estranho sentimento de desânimo e melancolia. Aos vinte anos, pobre e nu, conheci a verdadeira fama”.
Camus afirmou então que o Prémio deveria ter sido atribuido a André Malraux e manifestou dúvidas acerca da sua própria capacidade e força criadora que sempre o atormentaram. Após o anúncio da atribuição do Nobel sujeitou-se a ataques odiosos, que o não deixaram indiferente e comentou: “Assustado com aquilo que me acontece e que não pedi. E, para cúmulo, ataques tão infames que o coração se me aperta.”(Cadernos).
Mas Camus, segundo todos os testemunhos, não podia, nem queria, recusar o Prémio. Telefonou, de imediato, à mãe, que sempre viveu na Argélia, como que a agradecer à sua origem a honra que lhe tinha batido à porta. Escreveu a Jean Grenier, o seu professor e mentor intelectual : “(…) quando recebi a notícia, o meu primeiro pensamento foi, depois de minha mãe, dirigido ao senhor. Sem o senhor, sem essa mão efectuosa que estendeu à criança pobre que eu era, sem a sua instrução e o seu exemplo nada disto tinha acontecido.” (citado a partir de Roger Quilliot).
René Char, um amigo de todas as horas, não cabia em si de contente e manifesta esse contentamento de várias formas incluindo um artigo publicado, logo em 26 de Outubro de 1957, no Figaro littéraire, intitulado “Je veux parler d’ un ami”.
No ínicio de Dezembro de 1957 Camus partiu com a mulher, Francine, para Estocolmo e, em todas as suas aparições em público, tinha a consciência que devia estar preparado para ser atacado a propósito da sua discrição a respeito do conflicto na Argélia que estava no auge.
Albert Camus, a 10 de Dezembro de 1957, recebeu das mãos do Rei Gustavo VI da Suécia o diploma e, no banquete que se seguiu, proferiu o seu discurso de agradecimento. Logo num dos dias seguintes escreveu a Jean Grenier descrevendo, de forma sintética, o que sentia: “A corrida acaba, o touro está morto, ou quase.”
sábado, dezembro 9
sexta-feira, dezembro 8
LIBERALIDADES
É paradoxal a situação atual dos dois responsáveis politicos da área da saúde - Marta Temido e Lacerda Sales - que no periodo da pandemia assumiram a primeira linha do combate, nos limites da tragédia, à pandemia Covid 19. Pouco tempo passado já se desvaneceu da memória coletiva a relevância do seu papel nesse periodo trágico, do papel determinante que desempenharam, e de sua coragem pessoal e politica. Hoje, ao que parece, a partir de uma liberalidade ao mais alto nível, estão a assistir a que os seus nomes sejam arrastados na lama. O meu abraço.
terça-feira, dezembro 5
PALPITES VIII
Marcelo perdeu o chão. No mesmo dia da publicação do artigo de Cavaco, Marcelo falou ao país. O assunto de que tratou na sua comunicação não é de Estado. Trata-se de uma sua eventual intervenção, ou de alguém por si, destinada a facilitar o acesso a um tratamento médico no SNS, por sinal caro. Nada sei acerca do assunto e dos seus meandros, somente do que se fala na comunicação social. Venho aqui a propósito de algo que me chocou muito na prédica de Marcelo: a forma como, no final, destratou o filho, entregando-o ao juízo da opinião pública e, eventualmnte, da justiça. Aconteça o que acontecer, fiel aos princípios que professo, um filho é uma preciosidade que se defende sempre, sejam quais forem as circunstâncias, até ao fim.
segunda-feira, dezembro 4
UM MENTIROSO COMPULSIVO
Quando Cavaco fala ou escreve algo para o público é sinal de que temos a esquerda no poder, no caso português, pasme-se, os socialistas a solo, caso raro, mesmo único, na Europa. Logo me apetece, conhecendo a criatura, escrever também algo pois a conheço de tempos idos, e de todos os tempos, mesmo de muito antes de ter emergido na politica.
É de perfil autoritário, embora democrata, com uma falha de caráter na relação com a verdade. Estou a ser simpático ...
domingo, dezembro 3
PALPITES VII
Além de inúmeras desvantagens quais as vantagens do PS passar à oposição? Olhar as politicas públicas do lado de fora, permitindo-lhe exercitar a crítica, forjando a renovação de um ideário e programa progressistas/reformistas, testando, ao mesmo tempo, a capacidade de uma nova liderança; reposicionar-se para recuperar em próximas eleições o terreno perdido após o desgaste de muitos anos de governo (europeias, autárquicas, presidenciais); promover um processo de formação de quadros politicos dramaticamente abondonado nos últimos muitos anos. Dir-me-ão: e o poder? Respondo: de nada serve o poder se não soubermos o que fazer com ele!
sábado, dezembro 2
PALPITES VI
Ao abordar, discutindo em família, as alternativas partidárias tendo em vista as próximas eleições (e são muitas!), suscitam-se as questões mais relevantes a ter em conta na sociedade na qual nos integramos, de forma simples: paz civil, igualdade, emprego. Por outras palavras: preservar a integração internacional, desde logo na UE, assegurar a segurança, travar as desigualdades económicas e sociais, desde logo através de impostos progressivos, criar empregos cada vez mais qualificados e melhor remunerados. Estes poderiam ser os únicos pontos de um programa político progressista. O PS e o PSD asseguram a fidelidae ao essencial deste programa. Como fazer para prevenir as derivas anarco capitalistas (IL) e radical populistas (C)?
quinta-feira, novembro 30
PALPITES V
Curiosa a minha experiência destes últimos dias com amigos e companheiros de trabalho. A propósito da crise política. Quase sem exceção todos manifestam de forma aberta, ou velada, a expetativa de que o PS vencerá as eleições. Manifesto o meu cepticismo e os interlocutores mostram evidente deceção. Qual seria a melhor solução para a liderança do PS. Muitos defendem Carneiro. Contraponho Nuno Santos. Qual a diferença? Eu aposto no líder da oposição, eles no líder do governo.
quarta-feira, novembro 29
PALPITES IV
O golpe de estado que visa decapitar o PS é um contínuo de atos que prosseguirão até 10 de março. Anúncios em cima de anúncios, arquivamento de processos antigos, abertura de novos, buscas e indícios, um regabofe, em que tudo será de esperar... reduzir este processo ao PS talvez seja redutor, ele visa mais alto, levar ao poder a extrema direita, instilar o medo, limitar as liberdades e testar a fortaleza da democracia...
terça-feira, novembro 28
COISAS DIFÍCEIS, PARA LEMBRAR UMA DECISÃO RADICAL
Em 29 de Novembro de 1807, após um dia chuvoso, o príncipe d. João, d. Carlota, seus filhos, a rainha d. Maria I, vários outros parentes partiram em meio ao outono lisboeta. Do rio Tejo saíram as embarcações. Seguiram, além da família real, nobres, funcionários da Corte, ministros e políticos do Reino. Cerca de 15 mil pessoas. Os franceses ao chegarem à capital portuguesa em 30/11 ficaram a ver navios, frustrados com a não captura dos governantes lusos. Tudo o que era necessário para permanecer governando foi transportado. Insistia, entrementes, uma sensação dúbia: covardia ou esperteza? D. João estava angustiado. Seu país sendo atacado, o povo morrendo e ele seguindo viagem. Desconfortos psicológicos e físicos. Tormentas nos pensamentos e nos vagalhões dos mares que chegou a atrapalhar a travessia. Escassearam os víveres. Natal, Ano Novo e Dia de Reis se passaram. Então, a terra firme finalmente chegou. Em 22 de Janeiro de 1808 os barcos atracaram na antiga primeira capital do Brasil, a ensolarada Salvador. Porém, o abatido e cheio de dúvidas d. João após 54 dias no mar pisou o solo brasileiro apenas 24 hs depois. Foi o primeiro rei europeu a fazê-lo. Revisões nos navios, um pouco de descanso. Seguiram a viagem em 26 de Fevereiro. Dia 7 de Março a família real chegava ao destino final, a cidade do Rio de Janeiro.
CSI - uma criação de quem nunca se fala
Complemento Solidário para Idosos (CSI)
Decreto-Lei n.º 232/2005
de 29 de Dezembro
Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 2 de Dezembro de 2005. - José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa - Fernando Teixeira dos Santos - Alberto Bernardes Costa - Pedro Manuel Dias de Jesus Marques.
Promulgado em 19 de Dezembro de 2005.
Publique-se.
O Presidente da República, JORGE SAMPAIO.
segunda-feira, novembro 27
PALPITES III
O PSD congressou de agenda pretérita. Virou comício promocional. Como soe dizer-se tudo previsivel, e nenhum partido per si obterá maioria de mandatos. Quanto mais o PSD bater no futuro lider do PS menos espaço para alianças ao centro esquerda. Mais o PSD fica à merçê da extrema direita que será implacável.
domingo, novembro 26
PALPITES II
A direita saliva. Faz parte. Como já ouvi dizer, vai suceder algo engraçado: o PSD apresenta um lider velho, ontem acompanhado de outro ainda muito velho, o PS apresentará um lider novo, que a direita empurra para o lado do esquerdismo. Suspeito que ninguém, nem à direita nem à esquerda, se assusta ... com o chamado radicalismo.
sexta-feira, novembro 24
PALPITES I
Pedro Nuno vai ganhar a disputa interna no PS. É jovem e um tribuno formidável da escola dos velhos republicanos/socialistas. É a melhor solução para fazer oposição no próximo futuro.
25 novembro 1967
No dia 25 de novembro de 1967, era sábado, lembro-me de sair, era já tarde/noite, do ISCEF, pouco mais de um ano após ter iniciado os estudos naquela escola. Teria ido, certamente, participar numa reunião ou, mais prosaicamente, jantar na cantina da Associação de Estudantes. Ao sair devo ter feito o caminho de casa, um quarto alugado, ao cimo da Calçada da Estrela. Chovia muito, mas não estranhei porque, ao contrário de hoje, era normal chover nesta época do ano. Não levava qualquer resguardo para a chuva, que nem me pareceu excessiva, e caminhei colado às paredes até chegar ao destino. A minha perceção da chuva que caía naquela hora não me permitiu sequer imaginar as consequências que haveria de provocar. Chovia, simplesmente. Na manhã do dia seguinte, domingo, devo ter feito o caminho oposto, corriam as notícias de inundações em diversos sítios de Lisboa e arredores, e devo ter-me dirigido ao Técnico para me juntar à gigantesca mobilização estudantil que se organizou para avançar para as zonas mais atingidas em socorro das vitimas e no apoio à reparação dos estragos. O quartel general, que me lembre, havia sido montado no Técnico e deve ter sido a primeira vez que, à margem dos poderes instalados, com autonomia e mobilizando recursos próprios, se promoveu uma ação voluntária juvenil de grande envergadura à margem da politica oficial do regime. Foi um processo organizado que enquadrou a vontade espontânea de uma multidão de jovens estudantes ávidos de participação cívica e politica. Fui numa brigada para Alhandra munidos de meios rudimentares e lembro-mo com nitidez de nos afadigarmos a limpar ruas no meio da maior destruição que se possa imaginar. Retenho na memória o ambiente de caos e de tensão pois, afinal, estávamos a participar numa ação voluntária não autorizada que, naquela época, comportava riscos pessoais. Não havia medo, mas necessidade, e vontade de ação. Os meios para o socorro eram escassos, mas o que contava, de verdade, era participar, prestar solidariedade, ver com os próprios olhos in loco o que, de súbito, nos surgiu como uma calamidade de enormes proporções. Uma pá na lama, os destroços, uma palavra de conforto e incentivo, uma força coletiva que enfrentava sem medo a situação dramática de populações desprotegidas e, afinal, um regime decadente acobertado na ignorância, na censura e na repressão. No que me respeita ficou uma experiência sem dissabores. Não poderia imaginar que estávamos nas vésperas da queda de Salazar e da emergência, em 27 de setembro de 1968, do governo de Marcelo Caetano, menos de um ano depois daquelas trágicas inundações. Afinal aquela gigantesca ação voluntária havia de contribuir, de forma relevante, para o início do processo politico que desembocou no 25 de abril de 1974.
quinta-feira, novembro 23
A PROPÓSITO DOS HOLANDESES
"Os holandeses, oh!, são muito menos modernos! Têm tempo, repare neles. Que fazem? Ora bem, estes senhores vivem do trabalho daquelas senhoras. São, de resto, machos e fémeas, umas burguesíssimas criaturas que têm o costume de vir aqui, por mitomania ou estupidez. Em suma, por excesso ou falta de imaginação. De tempos a tempos, estes senhores puxam pela faca ou pelo revólver, mas não julgue que com muito empenho. O papel exige, eis tudo, e morrem de medo, disparando os últimos cartuchos. Posto o que, acho ainda mais moralidade neles que nos outros, aqueles que matam em família, pelo desgaste. Não notou ainda que a nossa sociedade está organizada neste género de liquidação? Já ouviu falar, naturalmente, daqueles minúsculos peixes dos cursos de água brasileiros que se lançam aos milhares sobre o nadador imprudente e o limpam, em alguns instantes, a pequenas bocadas rápidas, não deixando mais que um esqueleto imaculado? Pois bem, é essa a organização deles. «Quer uma vida limpa? Como toda a gente?» Dirá que sim, naturalmente. Como dizer que não? «De acordo. Vai ficar limpinho. Aqui tem um emprego, uma família, lazeres organizados.» E os dentes minúsculos cravam-se na carne até aos ossos. Mas sou injusto. Não é a organização deles que se deve dizer. Ela é a nossa, ao fim e ao cabo: é a ver quem limpará o próximo."
Albert Camus, in A Queda
quarta-feira, novembro 22
segunda-feira, novembro 20
LIBERDADE V
A sociedade dos negociantes pode definir-se como uma sociedade na qual as coisas desaparecem em proveito dos signos. Quando uma classe dirigente avalia as suas riquezas, já não pelo hectare de terra nem pelo lingote de oiro mas pelo número de cifras que idealmente correspondem a um certo número de operações de câmbio, dedica-se ao mesmo tempo a pôr uma certa espécie de mistificação como centro da sua experiência e do seu universo. Uma sociedade fundada nos signos é, na sua essência, uma sociedade artificial em que a realidade carnal do homem se acha mistificada. Ninguém então se admirará de que essa sociedade tenha escolhido, para dela fazer a sua religião, uma moral de princípios formais, e de que grave as palavras liberdade e igualdade tanto nas suas prisões como nos seus templos financeiros. Entretanto, não é impunemente que se prostituem as palavras. O valor hoje mais caluniado é certamente o valor da liberdade. Bons espíritos (…) fazem doutrina de ela não ser senão um obstáculo ao verdadeiro progresso. Mas se disparates tão solenes puderam ser proferidos foi porque, durante cem anos, a sociedade negociante fez da liberdade um uso exclusivo e unilateral, considerou-a mais como um direito do que como um dever e não receou pôr, tão frequentemente quanto pôde, uma liberdade de princípio ao serviço de uma opressão de facto.
Albert Camus, in Discursos da Suécia (Conferência de 14 de dezembro de 1957 - Universidade de Upsala).
domingo, novembro 19
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