sábado, março 26


Dorso
terso
morno
denso
Corpo
nu

Horto
Berço
Torso
tenso
Torre
Tu

David Mourão-Ferreira


Num mundo que já não crê no pecado, é o artista que está encarregado da pregação. Mas se as palavras do padre produziam efeito era porque o exemplo as alimentava. O artista esforça-se por se tornar num exemplo. Eis porque o fuzilam ou o deportam, com grande escândalo seu. E depois a virtude não se aprende tão depressa como o manejo da metralhadora. O combate é desigual.
Cito Camus a propósito da tragédia de Bobby Fischer
Fotografia de Hélder Gonçalves

ELEGIA DAS ÁGUAS NEGRAS
PARA CHE GUEVARA

Atado ao silêncio, o coração ainda
pesado de amor, jazes de perfil,
escutando, por assim dizer, as águas
negras da nossa aflição.

Pálidas vozes procuram-te na bruma;
de prado em prado procuram
um potro, a palmeira mais alta
sobre o lago, um barco talvez
ou o mel entornado da nossa alegria.

Olhos apertados pelo medo
aguardam na noite o sol onde cresces,
onde te confundes com os ramos
de sangue do verão ou o rumor
dos pés brancos da chuva nas areias.

A palavra, como tu dizias, chega
húmida dos bosques: temos que semeá-la;
chega húmida da terra: temos que defendê-la;
chega com as andorinhas
que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.

Cada palavra tua é um homem de pé,
cada palavra tua faz do orvalho uma faca,
faz do ódio um vinho inocente
para bebermos, contigo
no coração, em redor do fogo.

Eugénio de Andrade

1971






sexta-feira, março 25

O "Público" Faz-se Pagar

O “Público” vai começar a cobrar pelo acesso à sua versão em papel em condições ainda mal esclarecidas.

É um modelo já adoptado, por exemplo, pelo “Expresso” e muito utilizado no acesso às publicações em papel de todos os países.

Por mim não vou assinar. Por vezes reproduzo as suas notícias mas, em boa verdade, não preciso do “Público” para nada. Eles também não precisam de mim. É o negócio deles e que lhes faça bom proveito.

É interessante a coincidência desta decisão com a entrada em funções do governo socialista. Nos tempos da Dra. Manuela Ferreira Leite não de lembraram da coisa.

Aproveito para divulgar o JORNALISMO E COMUNICAÇÃO onde catrapisquei esta notícia.

Breves Despedidas

“Lê-se no «Público» que o antigo (bela palavra) ministro da Defesa Paulo Portas resolveu ter como último acto público a atribuição de medalhas da Defesa Nacional, criadas pelo Governo de Durão Barroso em 2002 (e ainda dizem que o homem nunca fez nada por Portugal).

Curiosamente, o antigo ministro resolveu condecorar o seu antigo (que bela palavra) ministro das Finanças, Bagão Félix (o que só lhe fica bem) e, surpresa das surpresas ou talvez não, deu mais uma medalha ao antigo (que belíssima palavra) embaixador americano em Portugal Frank Carlucci.

O que fez Frank Carlucci por Portugal nos últimos tempos que justifique esta medalha? Ou melhor, o que fez o Grupo Carlyle por Portugal nos últimos tempos que justifique esta medalha (a não ser tratar-nos como uma coutada)? Ou melhor, o que fez o Grupo Carlyle nos últimos tempos por Paulo Portas que justifique esta medalha (perguntar não ofende)?

Recorde-se que já Santana Lopes, a mando e em substituição do (defunto) Barroso, tinha aproveitado uma ida a Nova Iorque para, num intervalo discreto, condecorar o mesmo Frank Carlucci (isto foi há meses) com uma daquelas medalhas grandes e pesadas do Presidente da República, tendo o mesmo Presidente da República aceite a sugestão do (defunto) Barroso para condecorar Carlucci. Porquê agora?”

Extracto do artigo “Breves Despedidas”, de Clara Ferreira Alves, publicado, hoje, na “Única”, revista do Expresso.

Versão integral, que vale a pena, no IRAOFUNDOEVOLTAR.

GUERNICA

Compacto
cego

ao ar

falta-lhe só o gume.

Eugénio de Andrade

O Dr. Bagão Ainda Governa (3)

O governo socialista já governa.

O anterior governo fica “destapado”. O que se vai sabendo das suas acções é aterrador. Mais tarde se perceberá melhor o sentido da acção de alguns dos seus ministros.

Nicolau Santos, no “Expresso”, a propósito de “Um negócio demasiado nebuloso” escreve:

Há que dizer-se das coisas o somenos que elas são, escreveu Natália Correia. E o mínimo que se pode dizer é que Daniel Sanches e Bagão Félix foram demasiado imprudentes ao assinar este contrato com a Sociedade Lusa de Negócios. Será que não se interrogaram porque os melhores fabricantes europeus, como a Nokia, EADS e Siemens, que levantaram o caderno de encargos, se recusaram a apresentar propostas? Será que não tiveram conhecimento que o mesmo sistema poderia ser fornecido por 200 milhões de euros?

Às vezes, há coisas tão nebulosas, que não só o novo Governo as deve deitar para o caixote de lixo e começar tudo de novo, como investigar as razões de quem decidiu.

DA IGNORÂNCIA

A mão
que entregava à tua
os primeiros sinais de verão
já não sabe o caminho - é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante. Ou ignorar
fosse todo o saber.

Eugénio de Andrade

Governo e Crítica

É verdade que o PS nunca tinha alcançado uma maioria absoluta em eleições legislativas. A maioria absoluta de deputados no parlamento não dispensa, como foi afirmado, pelo primeiro-ministro, a audição dos partidos minoritários nas questões essenciais da governação. Essa vontade não pode, no entanto, constranger o partido do governo de afirmar os seus valores e a sua ideologia.

O pior erro que o PS poderia cometer seria o de abdicar de se afirmar como partido de causas assentes nos valores da esquerda que se podem sintetizar em duas palavras antigas para uma esquerda moderna: justiça e liberdade.

O governo pode “governar ao centro”, encontrar soluções de governação de natureza social-democrata na área social, adoptar posturas liberais de esquerda, na área da economia, concertar negócios e conceber benefícios que atraiam o investimento estrangeiro, assumir o primado de uma função reguladora e defensora dos consumidores e por aí fora, obtendo, momentaneamente, o apoio daqueles que ainda dias atrás fustigavam os socialistas com as críticas mais ferozes.

Mas o PS, sendo a base de apoio do governo, não pode deixar de ser um partido crítico do próprio governo.

Tudo o que agora são medidas reluzentes e sorrisos radiosos nas faces dos membros do governo se transformarão, a médio prazo, em penosas justificações de insucessos e atrasos e em faces crispadas no momento das respostas às perguntas implacáveis das oposições e da comunicação social.

Tudo o que na fase inicial da governação são despesas virtuosas se transformará, na fase seguinte, em desperdícios evitáveis na boca dos opositores da governação socialista.

Mais valia ao governo dispor de um PS que afirmasse a sua autonomia com uma postura de crítica construtiva desde o início. Vêm estas palavras a propósito da prestação de Jorge Coelho no programa “Quadratura do Círculo”, na SIC Notícias, da noite passada e de muitas outras atitudes de apoio entusiástico e voluntarista que têm surgido nestes primeiros dias da acção do governo.

Ao governo o que é do governo, ao partido do governo o que é do partido do governo. Ao governo cabe cumprir o seu programa, ao partido do governo compete, naturalmente, apoiá-lo sem descurar a vigilância crítica desde a primeira hora.

O ambiente político, nesta fase inicial, não tem apontado para esta dialéctica saudável o que, na minha opinião, pode pressagiar um enfraquecimento do governo a médio prazo. Mais valia começar desde já a preparar o terreno para as dificuldades da concretização de muitas das medidas anunciadas e de outras medidas difíceis que aí virão.

O país real, que dá pelo nome de Portugal, é exactamente o mesmo que no dia 19 de Fevereiro de 2005. Mudou o governo, o que já não é nada pouco, mas não mudaram as dificuldades, os constrangimentos e, como consequência, as condições objectivas da governação. Cuidado que a memória das gentes é curta, a gratidão morreu solteira e o pecúlio escasso.

“Diário do Governo” – 6

quinta-feira, março 24


LÍNGUA DOS VERSOS

Língua;
língua da fala;
língua recebida lábio
a lábio; beijo
ou sílaba;
clara, leve, limpa;
língua
da água, da terra, da cal;
materna casa da alegria
e da mágoa;
dança do sol e do sal;
língua em que escrevo;
ou antes: falo.

Eugénio de Andrade

O Dr. Bagão Ainda Governa (2)

No Expresso online surge a notícia "Impostos sobem ainda este ano". Mas o aspecto mais importante está no último parágrafo, que sublinho, dando conta que o défice implícito do Orçamento de Estado/2005 está nos 7%. O Dr. Bagão ainda governa!

"O GOVERNO vai apresentar em Maio um Orçamento Rectificativo, que contempla um conjunto de medidas fiscais destinadas a fazer face à «situação particularmente difícil» e ao «irrealismo» do Orçamento do Estado para 2005. O Ministério das Finanças não descarta que entre essas medidas esteja contemplada a subida de alguns impostos e o congelamento de despesas.

Os impostos que fazem entrar dinheiro imediatamente nos cofres públicos são essencialmente o IVA, imposto sobre combustíveis (ISP) e Imposto Automóvel (IA). Quanto aos cortes nas despesas serão detalhados no Programa Plurianual de Redução da Despesa Corrente (PPRDC), a apresentar pelo Governo dentro de seis meses e visando um horizonte de quatro anos.


Estas medidas visam responder ao défice implícito do Orçamento do Estado/2005, que está nos 7% devido a: crescimento económico 50% abaixo do previsto; preço do barril de petróleo acima dos 39 dólares; não contemplação dos encargos de 500 milhões de euros com as SCUT; 250 milhões de euros da dotação provisional para aumentos salariais; suborçamentação dos serviços, mais 1.700 milhões de euros; medidas extraordinárias de 2.300 milhões de euros; contas da Saúde."

O Dr. Bagão Ainda Governa

O Dr. Bagão Félix ainda publica legislação, despachos e portarias.

Um dia destes recebi uma citação das finanças com ameaça de penhora de bens. Como descrevi num post anterior fui a correr às finanças saber de que se tratava. Era uma quantia irrisória que resultou, conforme me foi dito, de um acerto provocado por questões informáticas. Não havia, de facto, dívida alguma. A quantia era pequena e para evitar o calvário das reclamações a que o contribuinte se sujeita paguei.

Mas, a partir de agora, olharei os funcionários das finanças como patrões com interesse directo nos resultados das cobranças. Como responsáveis directos pelos erros e omissões. Desconfiarei sempre da boa fé das suas contas. Não perdoarei as desatenções e as esperas. Nenhum erro se pode perdoar a quem dele pode beneficiar.

ENQUANTO HÁ FORÇA



Enquanto há força
No braço que vinga
Que venham ventos
Virar-nos as quilhas
Seremos muitos
Seremos alguém
Cantai rapazes
Dançai raparigas
E vós altivas
Cantai também

Levanta o braço
Faz dele uma barra
Que venha a brisa
Lavar-nos a cara
Seremos muitos
Seremos alguém
Cantai rapazes
Dançai raparigas
E vós altivas
Dançai também

José Afonso

quarta-feira, março 23

Gracias a la vida



Gracias a la vida (Mercedes Sosa)

Gracias a la vida que me ha dado tanto
me dio dos luceros que cuando los abro
perfecto distingo lo negro del blanco
y en el alto cielo su fondo estrellado
y en las multitudes el hombre que yo amo

Gracias a la vida que me ha dado tanto
me ha dado el sonido y el abecedario
con él, las palabras que pienso y declaro
madre, amigo, hermano
y luz alumbrando la ruta del alma del que estoy amando

Gracias a la vida que me ha dado tanto
me ha dado la marcha de mis pies cansados
con ellos anduve ciudades y charcos
playas y desiertos, montañas y llanos
y la casa tuya, tu calle y tu patio

Gracias a la vida que me ha dado tanto
me dio el corazón que agita su marco
cuando miro el fruto del cerebro humano
cuando miro el bueno tan lejos del malo
cuando miro el fondo de tus ojos claros

Gracias a la vida que me ha dado tanto
me ha dado la risa y me ha dado el llanto
así yo distingo dicha de quebranto
los dos materiales que forman mi canto
y el canto de ustedes que es el mismo canto
y el canto de todos que es mi propio canto

Gracias a la vida, gracias a la vida

(Agradecendo à Colombina)

Faz-me cócegas

Um exercício de descontracção.

Subtraído do Azenhas do Mar.

terça-feira, março 22


DO SUL

O branco branquíssimo do muro;
a beleza concreta, acidulada,
do rigoroso espírito do sul.

Eugénio de Andrade


Haverá quem ache estranho as minhas deambulações pelas memórias, pelos antepassados, pelos caminhos e lugares da infância.
Essa estranheza não me estranha. Mas nenhum percurso se faz sem passado, sem enlaçar outros percursos, sem comunicação, sem resposta mesmo quando nos julgamos imortais.
Alguém, além de nós, que nos compreenda e acredite é o maior anseio do homem.
Creio nos meus porque sei que me acompanham sempre mesmo quando parece que os não acompanho.
Poucos desses estão fora da família natural. Nela reside o segredo da minha crença no futuro do homem.

Fotografia de Hélder Gonçalves

Em homenagem às corporações da justiça.

Em homenagem às corporações farmacêuticas.

No Cimo do Monte

Subi este fim-de-semana ao cimo do monte onde brilha a casa
dos meus avós maternos José Fernandes de Brito (7/11/1891- 12/10/1979)
e Rosa da Conceição Marques (1/1/1892 - 7/12/1984)
no sítio de Sinagoga, Santo Estêvão, Tavira. Do terraço,
ao alto, pintado de branco puro, avista-se a costa algarvia,
de lés a lés, desde Espanha às cercanias de Olhão.
Muita terra, arvoredos, céu azul, lugares camponeses,
aldeias piscatórios e as praias todas. No sentido do norte o
barrocal com a sua vegetação característica a que sempre ouvi
chamar de mato. Tomei o compromisso, para com a minha mãe,
de manter aquela casa, através das gerações, para que os vindouros
possam nela rever-se na vida dos seus antepassados camponeses.
Para que com essa memória se não perca o sentido do tempo e
da honra da pertença a uma família camponesa honrada e a um
povo e dela se possa imaginar até a vista das sandálias que a minha
mulher um dia fotografou abandonadas numa daquelas praias à
distância de um golpe de olhar à mistura com as copas das árvores.