sexta-feira, fevereiro 10

PORTUGAL SACRO-PROFANO

(…)
Ou volto a esses campos onde Deus é necessário,
à vida regulada pelo vento pelo sol e pelo sino,
aos nomes crus na cal das cruzes dos caminhos
onde às vezes na noite crescem passos enxertados primitivos
que põem frente a frente os olhos de dois homens
(…)

Ruy Belo

PORTUGAL SACRO-PROFANO – A charneca e a praia
Boca Bilingue

Em Torno da Imagem Fabricada

Posted by Picasa Ron Mueck

O movimento islâmico de protesto que invade as ruas, assalta as embaixadas, mata em atentados e preenche os horários nobres das televisões, é fabricado. A descoberta veio nas páginas de um jornal de referência americano. Os nossos cronistas, quais cães amestrados, seguem no rasto da notícia.

Novidade das novidades é tudo ser demasiado lento. As caricaturas foram publicadas há meses. O protesto fabricado demorou meses. A notícia denunciando a sedição islâmica demorou meses. Os serviços secretos ocidentais estão a funcionar mal? A Dinamarca? Porquê a Dinamarca?

Nada é espontâneo na política pura e dura a não ser a admiração daqueles que ainda acreditam na espontaneidade. A oriente e a ocidente fabricam-se ódios, mata-se para ocupar territórios e para aceder à exploração de recursos naturais cada vez mais escassos.

Os aliados já não são os mesmos dos tempos da II Guerra, nem os desavindos são os mesmos dos tempos da “guerra-fria”. Podem encontrar-se destroços de uns e de outros em ambos os lados da barricada de uma nova guerra não declarada.

“Tão natural como a sua sede” era um slogan publicitário e um dia, anos atrás, dizíamos de uma amiga que era “tão natural que até fazia impressão”! Acreditar na espontaneidade, na autenticidade, de alguém é quase uma heresia. Quanto mais na bondade da política, da diplomacia, dos negócios do petróleo e da disputa do “espaço vital” que as Nações sempre reclamam em nome do seu interesse vital.

O mais estranho é que ainda haja quem acredite que algum acontecimento, com direito às “primeiras páginas”, não seja fabricado para alcançar um fim que escapa à maioria. O mais que pode acontecer é que os inimigos de hoje sejam os amigos de amanhã e vice-versa.

Que estejamos, em permanente cerimonial de palavras, a celebrar a liberdade como uma abstracção que favorece o enriquecimento, sem causa, de uns poucos e favor da perpetuação da miséria da esmagadora maioria. Quem persegue os verdadeiros criminosos?

Ora vejam o caso do Bin Laden! O que será feito?


quinta-feira, fevereiro 9

LIBERDADE

Posted by Picasa Fotografia de Angèle

As injustiças resultantes da liberdade de imprensa, uma fórmula antiga para dizer a liberdade de expressão do pensamento, são mil vezes preferíveis à justiça praticada no silêncio dos gabinetes ou nos confessionários de todas as religiões.

Lembro os anos que passaram até que fosse do conhecimento público as atrocidades do holocausto. Os únicos cuidados que a liberdade precisa é que não a matem, a deixem respirar, mesmo que do seu exercício resulte a revolta dos defensores de todos os servilismos.

CEPTI – CIDADE

Posted by Picasa Fotografia daqui

Ao Augusto Figueiredo

Em 1953
atravessar a avenida só
para do outro lado
ficar a falar de Deus como se o conhecêssemos …
Ouvir cantar pneus
e continuar a supor que são sempre para os outros
todos os Pschitt! ignorantes
Fumar um cigarro entre duas dificuldades
como se fossem dedos
Ir a Paris dizer: - Que bem! …
e voltar por entre tambores cardíacos

Para uma cave de cobras e lagartos

a verificar que surge sempre

um iô-iô antes de uma guerra …

Fernando Lemos

In TECLADO UNIVERSAL – Poesias
Cadernos de Poesia – III Série – LISBOA – 1953 – FASC. 15

"A verdade ..."

Posted by Picasa Ron Mueck

“A verdade é que todo o homem inteligente, como o senhor bem sabe, sonha em ser um gangster e em imperar sobre a sociedade unicamente pela violência. Como isso não é tão fácil como a leitura de romances da especialidade o pode fazer crer, envereda-se geralmente pela política e corre-se para o partido mais cruel. Que importa, não é assim, humilhar o próprio espírito, se desse modo se consegue dominar o mundo inteiro? Eu descobria dentro de mim gratos sonhos de opressão.”

Albert Camus – “A Queda” (Sublinhados de Ana Alves)

quarta-feira, fevereiro 8

HONTE

Posted by Picasa Scarlett Johansson

«Toute société, et particulièrement la littérature, vise à faire honte à ses membres de leur vertus extrêmes »

Albert Camus

“Carnets – III” - Cahier nº VII (Mars 1951/Juillet 1954)
Gallimard

"CAROLICE"

Posted by Picasa Ron Mueck

"O ministro Alberto Costa era, pelos vistos, o único português que desconhecia que o sistema judicial sempre se foi mantendo de pé, bem ou mal, à custa da 'carolice' de magistrados e funcionários"

Manuel António Pina, "Jornal de Notícias", 08-02-2006

O autor da frase em epígrafe, destacada pelo Público, é um poeta consagrado. Não lhe conhecia dotes de conhecedor dos meandros da justiça. Lá terá as suas razões. Mas o que fica como reflexão é esta coisa extraordinária: é suposto que o sistema de justiça funcione na base da “carolice”?

Saberemos interpretar o que isso significa? Questão: como se podem formular juízos proporcionais, legais e, finalmente, justos implicando a liberdade e a vida dos cidadãos e das instituições num sistema assente na “carolice”? Como se pode fazer ironia e, de facto, condenar a acção de um ministro da justiça que combate a “carolice”?

Parece muito evidente que, um dia, a “carolice” haverá de dar lugar ao profissionalismo. Embora a "carolice" seja uma das mais estimáveis instituições nacionais será ela aconselhável na aplicação da justiça, seus preparos e sentenças?

GOSTAR

Posted by Picasa Fotografia de António José Alegria do Amistad

A propósito do post POLÉMIQUE, no qual Camus reflecte acerca das suas divergências com Sartre. Dois comentários aquele post que, excepcionalmente, reproduzo:
hfm: Sempre actual. (Uma desvelada atenção que agradeço e face à qual mantenho uma difícil reciprocidade).

Paulo J. Ribeiro: Sonhamos todos com um caminho... Que caminho? (Uma surpresa).

Camus, paradoxalmente, ou talvez não, mantém uma actualidade fascinante que quase se aplica a todas as crises que atravessam o nosso tempo.

Não somos, certamente, obrigados a tomar posição face a todos os acontecimentos que nos cercam tomando para nós as dores dos outros.

A mim basta-me manter fidelidade a um guião, não escrito, que me acompanha, desde o princípio, na construção deste blog e que sintetizei - com as desculpas por me citar a mim próprio - num comentário aqueles dois comentários:

O mundo mais seguro é o das obras de que gostamos. Das pessoas de que gostamos. Das ideias de que gostamos. Dos autores de que gostamos. Daquilo de que gostamos.

terça-feira, fevereiro 7

PT

Herberto Helder

Posted by Picasa "Lugar, lugares"

"Era uma vez um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno a ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. A parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo - diziam. E depois amavam-se depressa, e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.”

In Pentimento, excerto do Conto de Herberto Helder + Xilogravura de Goeldi

segunda-feira, fevereiro 6

"CE FUNESTE LANGAGE"

Posted by Picasa Ana Kerenina - Clifford Bailey

Levanta-te e caminha, hesitante palavra
sobre a aresta do mês onde até mesmo Deus
esquece e a crua luz sensivelmente lavra
através de caídos sucessivos véus

Sinal equivalente ao quente cais que canto
aqui na orla da manhã só prometida
a quem matou a morte e desconhece quanto
à morte se devia a ciência da vida

Já tudo o que passou parece imaginado
e Ana Karenina tem no olhar ausente
a estrada que se perde a cada passo andado

Ó palavra impossível cuja vizinhança
a outra, útil ou portátil, não consente,
abre o poema, símil da lábil criança

Ruy Belo

“CE FUNESTE LANGAGE”
In Boca Bilingue

O FIM

Posted by Picasa Ron Mueck

O contacto com a realidade do processo de modernização da administração pública provoca-me uma sensação dolorosa. No meio de tanta gente dedicada, outros tantos afadigam-se a falar mal de tudo e de todos.

Quanto mais e melhor se apresenta a obra mais se aguça o apetite destruidor dos circunstantes. É uma espécie de canto do cisne de uma época que já acabou. O problema é que muitos ainda a vivem como se não tivesse já morrido.

Para esses as mudanças que se avizinham vão ser uma surpresa desagradável. O mais dramático é que o modo de fazer a reforma da administração pública pode levar a prejudicar gente competente e honesta que não merece a humilhação de ser forçada a renunciar a uma vida de trabalho dedicada ao bem público.

domingo, fevereiro 5

POLÉMIQUE

Posted by Picasa Fotografia daqui

« Polémique T.M. (*) - Coquineries. Leur seule excuse est dans la terrible époque. Quelque chose en eux, pour finir, aspire à la servitude. Ils ont rêvé d´y aller par quelque noble chemin, plein de pensées. Mais il n´y a pas de voie royale vers la servitude. Il y a la tricherie, l´insulte, la dénonciation du frère. Après quoi, l´air des trente deniers. »

(*) Temps Modernes

Albert Camus

“Carnets – III” - Cahier nº VII (Mars 1951/Juillet 1954)
Gallimard

REGRESSO

Posted by Picasa Fotografia daqui

Regresso do Algarve à capital. Um descanso breve para a mente e, em particular, para os olhos após duas semanas de trabalho intenso neste projecto.

Uma visita à terra natal. A natureza do lugar, na minha cabeça, não mudou quase em nada. A vista da cidade, tomada da praia de Faro, mantém o perfil de uma mancha branca.

A diferença é que a cidade ganhou dimensão, no essencial, em altura. Mas, ao longe, os atropelos urbanísticos são suplantados pela claridade da luz que a ilumina. A mesma claridade que a memória retém dos tempos de criança.

Foram-se os cheiros à vegetação rasteira que medrava na areia e que quase foi varrida pela erosão do mar e pela incúria do homem. Quando passava da terra para o lado da costa, atrevessando a ria de barco a remos, o que mais me impressionava era o cheiro forte que emanava do coberto mediterrânico que cobria as dunas. Hoje resta a quietude da ria e o verde do sapal, de um lado e, do outro, o esplendoroso mar azul.

Desta vez não nevou em Faro como aconteceu de 1 para 2 de Fevereiro de 1954. O sol dominava a paisagem apesar do frio. A pacatez das gentes e do lugar não sofreram mudança.

Dominaram os árabes aqueles lugares durante muitos séculos. Quem diria, por estes dias, a abundância das notícias eivadas de sinais de ódio pelos antigos dominadores da minha terra. Os meus mais que prováveis ascendentes.

É o sul mais a sul que sempre me fascinou. Tudo permanece: a vista do mar, o cheiro da terra, o sol que baila no ar, a nostalgia das gentes...

sábado, fevereiro 4

A MÃO NO ARADO

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes [conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente
Ruy Belo
O Problema da Habitação

quinta-feira, fevereiro 2

INCÓGNITA

Posted by Picasa Van Gogh - O carteiro Roulin - 1888

Está disponível, no “Semanário Económico” e no IR AO FUNDO E VOLTAR, o artigo que intitulei: “Cavaco Silva: uma incógnita!” e que será publicado amanhã, dia 3 de Fevereiro, na edição em papel daquele semanário.

Aqui ficam os parágrafos de abertura.

“Mal seria que tendo manifestado o meu apoio, nestas páginas, à candidatura presidencial de Mário Soares, não voltasse ao tema após a eleição de Cavaco Silva.

Desde logo para afirmar, como mandam as regras do jogo democrático, que após o veredicto das urnas, a despeito das divergências políticas e das idiossincrasias pessoais, o candidato eleito passa a ser, como soe dizer-se, o Presidente de todos os portugueses.

Cavaco aguentou a investida das urnas. Ganhou com cerca de 64.000 votos de diferença face à soma dos votos obtidos pelos restantes candidatos. Bastava um só voto mas é, digam o que disserem, uma vitória escassa face às expectativas da direita. Mas em democracia por um voto se ganha, por um voto se perde.
Soares fez uma declaração de derrota à altura dos seus pergaminhos de democrata. Fiquei, apesar de tudo, confortado. Saber perder é uma grande virtude nas sociedades civilizadas. Honra seja feita.”

TEMPORA NUBILA

Posted by Picasa Léonard de Vinci (1452-1519)
Monna Lisa, 1503-1506 – Huile sur bois/ 77x53 cm – Louvre


(…)
Às flores imóveis vou no vento irrequieto
e regresso a um rosto onde nunca estou
mas passou entretanto tanto tempo
que quando à minha mesa volto não sou já quem dela se ausentou
(…)

Ruy Belo

TEMPORA NUBILA
O problema da Habitação

quarta-feira, fevereiro 1

FUI

Posted by Picasa Fotografia de Philippe Pache

Não me manietei. Dei-me totalmente e fui.
Aos deleites, que metade reais,
metade volteantes dentro da minha cabeça estavam,
fui para dentro da noite iluminada.
E bebi dos vinhos fortes, tal
como bebem os denodados do prazer.

[1913]

C. Kavafis
Tradução de Joaquim M. Magalhães e Nikos Pratsinis
Relógio d´Água

"Em que outros novos olhos..."

Posted by Picasa Van Gogh – Auto-retrato com chapéu de feltro - 1887-88

(…)
Em que outros novos olhos passageiro brilharás,
ó clandestino seguidor de Deus?
(…)

Ruy Belo

NO TÚMULO DE SARDANAPALO
O Problema da Habitação

terça-feira, janeiro 31

CORVOS

Posted by Picasa Van Gogh - Campos de trigo com corvos-1890(julho)

Passa exactamente hoje mais um ano (o terceiro) sobre a publicação de uma entrevista que concedi ao “Semanário Económico”.

A propósito da mesma, que serviu de pretexto ao ex-ministro Bagão Félix para me exonerar de presidente da direcção do INATEL, lembrei-me deste fragmento de Camus:

“Morale Pratique
Ne jamais faire appel aux tribunaux
Donner l´argent, ou le perdre. Ne jamais le faire fructifier, ni le rechercher, ni le réclamer.
Titre: Petit traité de morale pratique – ou (pour provoquer) d´aristrocratie quotidienne.”

Albert Camus

“Carnets – III” - Cahier nº VII (Mars 1951/Juillet 1954)
Gallimard