domingo, janeiro 27

Anna Netrebko

Poemas para Lili

Pia, pia, pia
O mocho.
Que pertencia
A um coxo.
E meteu o mocho
Na pia, pia, pia...

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Levava eu um jarrinho
P'ra ir buscar vinho
Levava um tostão
P'ra comprar pão:
E levava uma fita
Para ir bonita.

Correu atrás
De mim um rapaz:
Foi o jarro p'ra o chão,
Perdi o tostão,
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!

Se eu não levasse um jarrinho,
Nem fosse buscar vinho,
Nem trouxesse uma fita
Pra ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia.

Fernando Pessoa

sexta-feira, janeiro 25

Para mí corazón ...

Para mí corazón...

Para mi corazón basta tu pecho,
para tu libertad bastan mis alas.
Desde mi boca llegará hasta el cielo
lo que estaba dormido sobre tu alma.

Es en ti la ilusión de cada día.
Llegas como el rocío a las corolas.
Socavas el horizonte con tu ausencia.
Eternamente en fuga como la ola.

He dicho que cantabas en el viento
como los pinos y como los mástiles.
Como ellos eres alta y taciturna.
Y entristeces de pronto, como un viaje.

Acogedora como un viejo camino.
Te pueblan ecos y voces nostálgicas.
Yo desperté y a veces emigran y huyen
pájaros que dormían en tu alma.

......................

Para o meu coração...

Para meu coração basta o teu peito
para a tua liberdade as minhas asas.
Da minha boca chegará até ao céu
o que dormia sobre a sua alma.

És em ti a ilusão de cada dia.
Como o orvalho tu chegas às corolas.
Minas o horizonte com a tua ausência
Eternamente em fuga como a onda.

Eu disse que no vento ias cantando
como os pinheiros e como os mastros.
Como eles tu és alta e taciturna.
E ficas logo triste, como uma viagem.

Acolhedora como um velho caminho.
Povoam-te ecos e vozes nostálgicas.
Eu acordei e às vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam na tua alma.

Pablo Neruda
“Vinte Poemas de Amor e
Uma Canção Desesperada”
Tradução de Fernando Assis Pacheco

Publicações D. Quixote

quarta-feira, janeiro 23

SONETO

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
... Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: - Mais servira, se não fora
Pera tão longo amor tão curta a vida!

Luís de Camões

(Edição de Lobo Soropita, de 1595
In Obras Completas - Círculo de Leitores)

domingo, janeiro 20

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

“SUBMÚLTIPLOS”

Na escala convencional
Me vou microdividindo
Na velha base decimal.
Eis-me micro-eu
Nano-eu e pico-eu
Fento-eu e atto-eu…
Depois… acabou-se a convenção
Os eus mais pequenos
Já não têm nome…
Vou ver se lhes arranjo um pro-nome
Pois sim! Serão:
Nileus
Embora apercebíveis
E, sempre, até mais ver,
Sempre divisíveis.
Se nileus não é pronome
É lá com os gramáticos.
Mas, meus Senhores!
Sejamos práticos!!

“Descompasso”, Círculo de Poesia – Nova Série
Moraes Editores, Lisboa, 1986


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JOSÉ BLANC DE PORTUGAL
(Lisboa, 1914 – 2000, Lisboa)

Licenciou-se em Ciências Geológicas pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, tendo trabalhado, como meteorologista, no Serviço Meteorológico Nacional. A carreira científica levou-o de Lisboa às ilhas atlânticas (Açores, Madeira e Cabo Verde) e dali a Angola e Moçambique.

Poeta, ensaísta, crítico literário e musical, investigador. No campo da investigação científica, directamente relacionada com a profissão, publicou vários estudos, nomeadamente a monografia Introdução ao Estudo das Correntes de Jacto (1955). Como crítico musical, colaborou em diversas publicações, e foi crítico literário na Emissora Nacional.

Foi uma das figuras literárias portuguesas de mais vasta cultura (em vários domínios) tendo sido adido cultural no Rio de Janeiro (1973-78) e vice-presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (1978-82).

Mas foi sobretudo como poeta que a sua personalidade mais se destacou. Foi fundador e co-director dos Cadernos de Poesia, em todas as séries, entre 1940 e 1953, tendo publicado ali alguns dos seus mais importantes poemas.

Estreou-se com o volume “Parva Naturalia” (1960, Prémio Fernando Pessoa), a que se seguiram “O Espaço Prometido” (1960), “Anticrítico” (1960, obra de reflexão ensaística), “Odes Pedestres” (1965, Prémio Casa da Imprensa), “Descompasso” (1987) e “Enéadas (1989).


 

sábado, janeiro 19

Julia Fischer

Mar Português

Ó mar salgado, quanto do téu sal
São lâgrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valéu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo déu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa