A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediàvelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma só noite comprida
num quarto só.
António Ramos Rosa
Cadernos de Poesia – Fascículo Nove – Segunda Série
Setembro de 1951
Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,
Editado por Eduardo Graça
quarta-feira, agosto 7
terça-feira, agosto 6
A Rosa de Hiroshima
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas,
Pensem nas meninas
Cegas inexatas,
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas,
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas.
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa, da rosa!
Da rosa de Hiroshima,
A rosa hereditária,
A rosa radioativa
Estúpida e inválida,
A rosa com cirrose,
A anti-rosa atômica.
Sem cor, sem perfume,
Sem rosa, sem nada.
Vinicius de Moraes
Mudas telepáticas,
Pensem nas meninas
Cegas inexatas,
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas,
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas.
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa, da rosa!
Da rosa de Hiroshima,
A rosa hereditária,
A rosa radioativa
Estúpida e inválida,
A rosa com cirrose,
A anti-rosa atômica.
Sem cor, sem perfume,
Sem rosa, sem nada.
Vinicius de Moraes
sábado, agosto 3
quinta-feira, agosto 1
quarta-feira, julho 31
terça-feira, julho 30
POLÍTICA - 13
Estranho verão como se anunciasse todas as transições, do
clima à política, indeciso e crispado, auspicioso pelo rasgão de Francisco nos
tecidos da ganância, desesperante pelos silêncios dos que descrêem e se
resguardam. A vida continua e todos os movimentos contraditórios se transformarão
em mudanças. Resta saber dos caminhos da justiça e da liberdade. Como regenerar
o regime democrático? A maioria está de acordo num ponto: é preciso reabilitar
a política e os seus protagonistas sem cedências ao populismo. Mas a expectativa
do empobrecimento geral enfraquece a democracia. E a simultânea assunção da
perda de independência, ou da sua drástica limitação, numa pátria aberta ao
mundo, expulsa o talento e retém a resignação. Talvez convocar as Cortes!
segunda-feira, julho 29
sexta-feira, julho 26
quinta-feira, julho 25
segunda-feira, julho 22
sexta-feira, julho 19
"Alocução aos Socialistas"
"Na política, como sabeis, o comportamento rectilíneo, sem argúcia alguma, - sincero, aberto, desartificioso, claro, - usa ser censurado, como sendo ingénuo: e, nessa sua qualidade de comportamento ingénuo, como prejudicial, ou pateta. Paciência. Seja. (…) Os essencialmente habilidosos (não faço empenho em negá-lo) alcançam a sua hora de simulacro e de vista. Mas é uma hora e nada mais; mas é simulacro, e só vista. Logo a seguir a esse instante, comunica-se-lhes o fogo da sua iluminação de artifício, e fica tudo em fumaça, que pouco depois não é nada."
"Aos nossos socialistas, quanto a mim, compete-lhes resistirem ao tradicional costume de se empregarem espertezas e competições de pessoas para apressar o momento em que há-de chegar ao poder…"
"Antes de tudo, buscai prestigiar-vos ante a nação inteira pelo timbre moral da vossa alma cívica; porque (como acreditais, creio eu) não é indispensável conquistar o poder para se influir de facto na orientação do estado."
"Não tenhais a ânsia de vos alcandorar no poleiro com prejuízo das qualidades a que se tem chamado "ingénuas". As habilidades dissipam-se; os caracteres mantêm-se."
"Não existam ciúmes e invejas recíprocas entre os vários componentes da vossa grei socialista: nem tampouco os ciúmes, nem tampouco as invejas, para com os homens que compõem as outras facções da esquerda. Seja vosso lema a unidade. Por mim, quero trabalhar pela unidade, pelo entendimento recíproco, pela existência de convivência amável entre os homens políticos de orientações discordes. Incorrigivelmente "ingénuo", fraterno, cordial."
António Sérgio, In "Alocução aos Socialistas", No Banquete do Primeiro de Maio de 1947.
Veja aqui
"Aos nossos socialistas, quanto a mim, compete-lhes resistirem ao tradicional costume de se empregarem espertezas e competições de pessoas para apressar o momento em que há-de chegar ao poder…"
"Antes de tudo, buscai prestigiar-vos ante a nação inteira pelo timbre moral da vossa alma cívica; porque (como acreditais, creio eu) não é indispensável conquistar o poder para se influir de facto na orientação do estado."
"Não tenhais a ânsia de vos alcandorar no poleiro com prejuízo das qualidades a que se tem chamado "ingénuas". As habilidades dissipam-se; os caracteres mantêm-se."
"Não existam ciúmes e invejas recíprocas entre os vários componentes da vossa grei socialista: nem tampouco os ciúmes, nem tampouco as invejas, para com os homens que compõem as outras facções da esquerda. Seja vosso lema a unidade. Por mim, quero trabalhar pela unidade, pelo entendimento recíproco, pela existência de convivência amável entre os homens políticos de orientações discordes. Incorrigivelmente "ingénuo", fraterno, cordial."
António Sérgio, In "Alocução aos Socialistas", No Banquete do Primeiro de Maio de 1947.
Veja aqui
quinta-feira, julho 18
terça-feira, julho 16
AS EVIDÊNCIAS - XXI
Este é o último soneto de "As Evidências” [1955]. Nos “Diários” de Jorge de Sena, livro publicado por Mécia, surgem referências explícitas ao estado de espírito do autor aquando da escrita dos últimos sonetos datadas de 17 de Abril de 1954.
“Dias de abatimento incrível, ao fim dos quais lutei com os sonetos dos deuses. Repentinamente, ontem surgiu o soneto do mal. E, hoje, suave e sem rima, completei, ou antes, escrevi todo, o soneto dos deuses (XIX). (…) Mas o que eu tenho sofrido vivendo, para depois me “purgar” no sofrimento de escrever abstracto, essencial, de uma vez para sempre!
Chegando a casa, li à Mécia o soneto. Depois, fui copiá-lo para o escritório. Foi escurecendo. E, de súbito, num transe medonho que não me permitiu acender a luz, saiu inteiro o que suponho ser o último soneto da série.”
Cendrada luz enegrecendo o dia,
tão pálida nos longes dos telhados!
Para escrever mal vejo, e todavia
a dor libérrima que a mão me guia
essa me vê, conforta meus cuidados.
Ao fim terrível que me espera extenso,
nenhum conforto poderei pedir.
Da liberdade o desdobrado lenço
meu rosto cobrirá. Nem sei se penso
ou pensarei quando de mim fugir.
Perdem-se as letras. Noite, meu amor,
ó minha vida, eu nunca disse nada.
Por nós, por ti, por mim, falou a dor.
E a dor é evidente – libertada.
16-4-1954
Jorge de Sena
“Dias de abatimento incrível, ao fim dos quais lutei com os sonetos dos deuses. Repentinamente, ontem surgiu o soneto do mal. E, hoje, suave e sem rima, completei, ou antes, escrevi todo, o soneto dos deuses (XIX). (…) Mas o que eu tenho sofrido vivendo, para depois me “purgar” no sofrimento de escrever abstracto, essencial, de uma vez para sempre!
Chegando a casa, li à Mécia o soneto. Depois, fui copiá-lo para o escritório. Foi escurecendo. E, de súbito, num transe medonho que não me permitiu acender a luz, saiu inteiro o que suponho ser o último soneto da série.”
Cendrada luz enegrecendo o dia,
tão pálida nos longes dos telhados!
Para escrever mal vejo, e todavia
a dor libérrima que a mão me guia
essa me vê, conforta meus cuidados.
Ao fim terrível que me espera extenso,
nenhum conforto poderei pedir.
Da liberdade o desdobrado lenço
meu rosto cobrirá. Nem sei se penso
ou pensarei quando de mim fugir.
Perdem-se as letras. Noite, meu amor,
ó minha vida, eu nunca disse nada.
Por nós, por ti, por mim, falou a dor.
E a dor é evidente – libertada.
16-4-1954
Jorge de Sena
segunda-feira, julho 15
POLITICA - 12
Nestes dias de crise política por toda a Europa democrática,
do centro à periferia, do Norte protestante, ao sul Católico, evito citar nomes
de países, todos com suas virtudes e defeitos, forças e fraquezas, belezas e
horrores, um amplo território habitado por povos com culturas e tradições
antigas, prefiro o diálogo à ruptura, a busca racional de entendimentos à
cedência emocional que trás consigo a derrocada da conquista da paz numa Europa
martirizada por duas guerras sangrentas no século XX.
Sei que escrevo palavras banais, num cantinho recôndito da blogosfera, sem outro poder senão o de uma voz entre milhões de vozes tentadas a ceder ao vozear populista que não poupa nada nem ninguém que se levante em defesa do bom senso dos acordos civilizados que não são mais do que o traçar da fronteira dos princípios e valores que a comunidade, representada pelos partidos, em democracia, aceita partilhar como razoáveis numa sociedade cidadã.
Que não se cansem os que aceitam dialogar, quiçá negociar, os democratas, persistindo no caminho que encetaram, rejeitando as chantagens daqueles que sob a capa da defesa da liberdade têm no cerne da sua ideologia a negação da liberdade. Que não temam, ao mesmo tempo, denunciar a injustiça de propostas que aprofundem a transferência brutal de riqueza da parte mais fraca das sociedades para aqueles que buscam capturar a política em favor da alta finança.
O que precisamos hoje, acima de tudo, é de política, a verdadeira, que restaure a confiança do povo nos eleitos em defesa dos seus ideais. Difícil? Tudo o que sempre fez avançar o mundo e as sociedades foi difícil! Aqui fica o meu testemunho em defesa do diálogo, provavelmente o mais difícil exercício em tempos de carência e crispação.
Sei que escrevo palavras banais, num cantinho recôndito da blogosfera, sem outro poder senão o de uma voz entre milhões de vozes tentadas a ceder ao vozear populista que não poupa nada nem ninguém que se levante em defesa do bom senso dos acordos civilizados que não são mais do que o traçar da fronteira dos princípios e valores que a comunidade, representada pelos partidos, em democracia, aceita partilhar como razoáveis numa sociedade cidadã.
Que não se cansem os que aceitam dialogar, quiçá negociar, os democratas, persistindo no caminho que encetaram, rejeitando as chantagens daqueles que sob a capa da defesa da liberdade têm no cerne da sua ideologia a negação da liberdade. Que não temam, ao mesmo tempo, denunciar a injustiça de propostas que aprofundem a transferência brutal de riqueza da parte mais fraca das sociedades para aqueles que buscam capturar a política em favor da alta finança.
O que precisamos hoje, acima de tudo, é de política, a verdadeira, que restaure a confiança do povo nos eleitos em defesa dos seus ideais. Difícil? Tudo o que sempre fez avançar o mundo e as sociedades foi difícil! Aqui fica o meu testemunho em defesa do diálogo, provavelmente o mais difícil exercício em tempos de carência e crispação.
sexta-feira, julho 12
AS EVIDÊNCIAS - XX
Erguem-se as tríades: são mais que deuses,
e menos que verdade de os haver.
De Deus a dupla face em face à vida
é só por elas que a evitamos ser,
quando a não vemos senão dupla, triste
daquele humano gesto de que existe
a sempre imagem trina de O perder,
cindido o amor, no espelho reflectida.
E ao espelho se engrisalham os cabelos
e as rugas cavam-se das eras idas
sobre a vidraça como gotas de água.
Ouvem-se os ecos de outros ecos belos.
E Deus, reflexo silencioso, os deuses
guardam liberto de ser dupla mágoa.
28-4-1954 [curiosamente no dia do meu aniversário.]
e menos que verdade de os haver.
De Deus a dupla face em face à vida
é só por elas que a evitamos ser,
quando a não vemos senão dupla, triste
daquele humano gesto de que existe
a sempre imagem trina de O perder,
cindido o amor, no espelho reflectida.
E ao espelho se engrisalham os cabelos
e as rugas cavam-se das eras idas
sobre a vidraça como gotas de água.
Ouvem-se os ecos de outros ecos belos.
E Deus, reflexo silencioso, os deuses
guardam liberto de ser dupla mágoa.
28-4-1954 [curiosamente no dia do meu aniversário.]
quinta-feira, julho 11
terça-feira, julho 9
EVIDÊNCIAS - XIX
Perdidas uma a uma as coisas todas,
os corpos e as estrelas, flores e rios
na construção do espírito sonhado,
humanamente vos haveis unido,
para de além de tudo ainda regerdes
apenas pó a ser cindido um dia,
que o que ficava, dissoluto o mundo,
a morte humana assim éreis num só,
ó deuses, formas de existir, presença,
tão sempre jovens e dourados mortos
de morte que é sol-posto ou madrugada,
ó deuses do universo! – a tarde cai,
e, em vagas vozes de crianças rindo,
cindido tudo, ó deuses, regressai.
16-4-1954
Subscrever:
Mensagens (Atom)