sexta-feira, outubro 4

5 de OUTUBRO

Toda a noite ouço o estampido brutal do canhão, que por vezes chega ao auge, para depois cair sobre a cidade um silêncio mortal, um silêncio pior. Que se passa? Distingo o assobio das granadas, e de quando em quando, um despadaçar de beiral que cai à rua. E isto dura até de madrugada. De manhã as tropas do Rossio rendem-se e os marinheiros desembarcam na Alfândega. Às oito e meia está proclamada a República. Passa aqui na Rua de S. Mamede um resto de Caçadores 5, soldados exaustos, entre populares que os aclamam.

O rei fugiu. Um genro do Cayola, oficial de Infantaria 16, contou ao Maximiliano: Acompanham-no no parque das Necessidades o Sabugosa, o Faial, o Tarouca e o Ravara. Um deles dizia-lhe: - Vossa Majestade já fez o que tinha a fazer. – O rei estava lívido e num gesto maquinal tirava e metia os anéis nos dedos.

Um farmacêutico da Ericeira assegurou que o viu chegar a Mafra dentro dum automóvel. O D. Afonso embarcou no Estoril, mostrando aos que o acompanharam até ao fim uma carteira com duzentos mil réis. – É o que levo ... – A D. Amélia partiu também de Sintra para Mafra. Tinha-se espalhado entre o povo que fora a raínha quem mandara assassinar o dr. Bombarda. Se a apanham matam-na.


Raúl Brandão

Memórias “O meu diário”– Volume II
Perspectivas & Realidades

quinta-feira, outubro 3

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (5)

OS DEVERES DA AMIZADE AJUDAM A SUPORTAR OS PRAZERES DA SOCIEDADE

A frase em título, respigada dos meus sublinhados dos Cadernos, é uma das que mais me marcou, aquando da primeira leitura da obra de Camus, pelos meus 20 anos, era ele somente um pouco mais velho, como autor, do que eu como seu leitor. Aquela frase contém todo um programa de vida, que tentei tomar como meu, e sublinhei-a a traço grosso. Sei, hoje, como o esquecimento mata as ilusões da juventude. Mas nunca me esqueci dessa leitura inaugural de Camus, através dos Cadernos, e entendi, mais tarde, o significado profundo da sua obra que, ao longo dos anos, fui sendo capaz de ler, e reler, penetrando mais fundo no âmago da sua interpretação dos acontecimentos do seu tempo e da visão de um homem confrontado com o absurdo da existência.

PABLO NERUDA

"E numa certa manhã tudo ardia,
numa manhã o fogo
saltava da terra
devorando os seres,
e ardia,
havia pólvora,
e sangue.
Bandidos com aviões e mouros,
bandidos com anéis nos dedos e duquesas,
bandidos com frades negros e suas bendições
vinham pelo céu matar crianças,
e o sangue delas escorria pelas ruas
sem ruído algum, corria como sangue de criança.

Chacais que seriam alvo de desprezo de outros chacais,
pedras que o cardo seco morderia
e cuspiria, víboras que as próprias víboras abominariam!

Face a face com vocês vi o sangue
da Espanha erguer-se
para afogá-los em uma onda
de orgulho e de facas!

Generais
traidores:
vejam minha casa morta,
vejam a Espanha alquebrada:
de todas as casas sai um metal
que arde,
em vez de flores,
mas de cada oco da Espanha
a Espanha emerge
e de cada criança morta sai um rifle
com olhos,
e de cada crime nascem balas
que um dia encontrarão o caminho
do coração de vocês.

E vocês me perguntarão:
por que os poemas dele
não falam de sonhos, e de folhas
e dos grandes vulcões de sua terra natal.

Venham e vejam o sangue nas ruas,
venham e vejamo sangue nas ruas,
venham e vejam o sangue nas ruas!"

Pablo Neruda

(Excerto do poema “Explico Algunas cosas” de Pablo Neruda, citado por Harold Pinter na Conferência de atribuição do Prémio Nobel da Literatura.)
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Explico algunas cosas

Preguntaréis: ¿Y dónde están las lilas?
¿Y la metafísica cubierta de amapolas?
¿Y la lluvia que a menudo golpeaba
sus palabras llenándolas
de agujeros y pájaros?

Os voy a contar todo lo que me pasa.
Yo vivía en un barrio
de Madrid, con campanas,
con relojes, con árboles.
Desde allí se veía
el rostro seco de Castilla
como un océano de cuero.
Mi casa era llamada
la casa de las flores, porque por todas partes
estallaban geranios: era
una bella casa
con perros y chiquillos.

Raúl, ¿te acuerdas?
¿Te acuerdas, Rafael?
Federico, ¿te acuerdas
debajo de la tierra,
te acuerdas de mi casa con balcones en donde
la luz de junio ahogaba flores en tu boca?
¡Hermano, hermano!

Todo
eran grandes voces, sal de mercaderías,
aglomeraciones de pan palpitante,
mercados de mi barrio de Argüelles con su estatua
como un tintero pálido entre las merluzas:
el aceite llegaba a las cucharas,
un profundo latido
de pies y manos llenaba las calles,
metros, litros, esencia
aguda de la vida,
pescados hacinados,
contextura de techos con sol frío en el cual
la flecha se fatiga,
delirante marfil fino de las patatas,
tomates repetidos hasta el mar.

Y una mañana todo estaba ardiendo
y una mañana las hogueras
salían de la tierra
devorando seres,
y desde entonces fuego,
pólvora desde entonces, y desde entonces
sangre.
Bandidos con aviones y con moros,
bandidos con sortijas y duquesas,
bandidos con frailes negros bendiciendo
venían por el cielo a matar niños,
y por las calles la sangre de los niños
corría simplemente, como sangre de niños.

¡Chacales que el chacal rechazaría,
piedras que el cardo seco mordería escupiendo,
víboras que las víboras odiarían!

¡Frente a vosotros he visto la sangre
de España levantarse
para ahogaros en una sola ola
de orgullo y de cuchillos!

Generales
traidores:
mirad mi casa muerta,
mirad España rota:
pero de cada casa muerta sale metal ardiendo
en vez de flores,
pero de cada hueco de España
sale España,
pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos,
pero de cada crimen nacen balas
que os hallarán un día el sitio
del corazón.

Preguntaréis: ¿por qué su poesía
no nos habla del sueño, de las hojas,
de los grandes volcanes de su país natal?

¡Venid a ver la sangre por las calles,
venid a verla sangre por las calles,
venid a ver la sangre por las calles!

Pablo Neruda
De España en el corazón

quarta-feira, outubro 2

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (4)

“Je comprends ici ce qu´on appelle gloire: le droit d´aimer sans mesure. Il n´y a qu´un seul amour dans ce monde. Étreindre un corps de femme, c´est aussi retenir contre soi cette joie étrange qui descend du ciel vers la mer.»

Albert Camus, in “Noces à Tipasa” - Argel 1938


Stèle en mémoire des "Noces à Tipaza" d'Albert Camus

terça-feira, outubro 1

POLITICA - 20

Um dia após as eleições autárquicas os comentadores invadiram os écrans. É natural. Peroram acerca dos resultados e tudo o mais. São de todas as qualidades e feitios os comentadores com mais ou menos vulto em credibilidade e audiência. São úteis os comentadores pois preenchem o tempo e no nosso país, em regra, não falam mal dos políticos nem lançam a politica na lama. Na apreciação dos resultados destas eleições persiste para mim um enigma e atrevo-me a entrar num terreno que nem conheço muito bem mas intuo como relevante na vida dos partidos e das suas lideranças. Ora supondo que o PS, apesar de perder votos face às anteriores eleições autárquicas, ganhou 149+1 presidências de Câmara num total de 308, ou seja, quase metade, e os resultados são alicerçados, no caso do PS, em escolhas pelas concelhias partidárias dos candidatos, como pode alguém ameaçar a liderança de Seguro? As concelhias são a base de apoio dos líderes partidários. Ganhando quase metade das presidências em outros tantos concelhos, gostemos ou não de Seguro, o resultado destas autárquicas foram o melhor terreno eleitoral para o reforçar como líder do PS. Os partidos, vencedores ou vencidos, são a base da democracia e pela parte que me toca não confio, sem prejuízo dos seus méritos, nos chamados candidatos independentes. Antes prefiro um candidato partidário que assume com honra a derrota do que um independente a dar lições de moral do alto do palanque da vitória.   

segunda-feira, setembro 30

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (3)


.“São raros aqueles que continuam a ser pródigos depois de terem adquirido os seus meios. Esses são os reis da vida, que se devem saudar com discrição.”

(…)

“ – a miséria é uma fortaleza sem ponte levadiça.”

(…)

“De resto, como fazer compreender que uma criança pobre pode por vezes ter vergonha sem nunca invejar coisa alguma?”

(…)

“E, à noite, deitado, morto de cansaço, no silêncio do quarto onde a mãe dormia levemente, ainda ouvia uivar dentro dele o tumulto e furor do vento que amaria ao longo de toda a vida.”

(…)

“ … a criança morrera naquele adolescente magro e vigoroso, de cabelos revoltos e olhar arrebatado, que trabalhara todo o Verão para levar um salário para casa e acabava de ser nomeado guarda-redes titular da equipa do liceu e, três dias antes, saboreara pela primeira vez, quase desfalecido, o contacto com a boca de uma jovem.”

In “O Primeiro Homem”, de Albert Camus.

domingo, setembro 29

Frank O´Hara (Lana Turner has collapsed!)




Lana Turner has collapsed!
I was trotting along and suddenly
it started raining and snowing
and you said it was hailing
but hailing hits you on the head
hard so it was really snowing and
raining and I was in such a hurry
to meet you but the traffic
was acting exactly like the sky
and suddenly I see a headline
LANA TURNER HAS COLLAPSED!
there is no snow in Hollywood
there is no rain in California
I have been to lots of parties
and acted perfectly disgraceful
but I never actually collapsed
oh Lana Turner we love you get up

1962


Poema
Lana Turner desmaiou!
Eu deambulava e de repente
começou a chover e a nevar
e tu disseste que caía granizo
mas o granizo acerta na cabeça
com força por isso estava a nevar
e a chover e eu tinha tanta pressa
ia ao teu encontro mas o tráfego
comportava-se exactamente como o céu
e subitamente vi um cabeçalho
LANA TURNER DESMAIOU!
não há neve em Hollywood
não há chuva na Califórnia
eu estive numa data de festas
e portei-me de forma desgraçada
mas nunca tive um desmaio
oh Lana Turner amamos-te levanta-te

Frank O'Hara

In “Vinte e Cinco Poemas à Hora do Almoço”
Assiro & Alvim
Tradução de José Alberto Oliveira
Fotografia de Helder Gonçalves

VOTAR SEMPRE



VOTAR FOI DESDE SEMPRE PARA MIM PERTENÇA DO SAGRADO. MAIS DO QUE UMA ESCOLHA LIVRE DE REPRESENTANTES, COM SEUS DEFEITOS E VIRTUDES, UMA PARTILHA DO PODER EM COMUNIDADE.

ASSIM FOI SEMPRE MESMO NAS ELEIÇÕES CONDICIONADAS, E VICIADAS, ANTES DO 25 DE ABRIL (VOTEI EM 1969 E PARTICIPEI NA AÇÃO POLÍTICA, PELA PRIMEIRA VEZ, NA "CAMPANHA" DE 1965 ...).

VOTEI EM TODAS AS ELEIÇÕES DESDE O 25 DE ABRIL DE 1974 E, EM CADA UMA, SEJA QUAL FOR A SITUAÇÃO DO "ÂNIMO" E DA "RIQUEZA", SEJA DO LADO DO PODER OU DA OPOSIÇÃO, SINTO-ME COMO UM COMBATENTE ARMADO SIMPLESMENTE DE UMA VIBRANTE VONTADE DE PARTICIPAR.

sábado, setembro 28

BARBARA HANNIGAN

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (2)


Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.
É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.
É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!

sexta-feira, setembro 27

ANTÓNIO COSTA

Reproduzo, na íntegra, o post de outubro de 2009 a propósito das eleições autárquicas do próximo domingo em coerência com o sentido do meu voto. Desta forma poderei continuar a orgulhar-me de ter votado em todas as eleições democráticas realizadas em Portugal desde o 25 de abril de 1974. Com respeito pelos adversários, vencedores ou vencidos, o mais importante é afirmar, em cada eleição, pelo exercício do voto livre a confiança no regime democrático.
  

A vitória, por maioria absoluta, de António Costa, em Lisboa, significará, no plano político nacional, a vitória do PS nas eleições autárquicas. Se tal acontecer, apesar de todas as leituras, desde as heranças do passado, passando pelos genes políticos do candidato, até aos sinais de novos alinhamentos da esquerda no futuro, será uma vitória política do PS com expressão nacional. Em Lisboa vencerá, nesse caso, a renovação dos autarcas (pois Costa é, em todos os sentidos, o rosto de uma nova liderança autárquica), fundada numa aliança política original de esquerda. Costa conseguiu o milagre de criar uma coligação política informal assente num consenso programático, da esquerda radical à direita moderada, sem lançar ao lixo, antes pelo contrário, o PS tornando-o numa plataforma de encontro de vontades e de fusão de políticas modernizadoras. Mas para que esta experiência frutifique é preciso que António Costa ganha nas urnas. E PARA QUE GANHE É PRECISO VOTAR ANTÓNIO COSTA, OU SEJA, PS. VAMOS A ISSO!

quinta-feira, setembro 26

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (1)

C’est pourquoi les vrais artistes ne méprisent rien ; ils s’obligent à comprendre au lieu de juger. Et, s’ils ont un parti à prendre en ce monde, ce ne peut être que celui d’une société où, selon le grand mot de Nietzsche, ne régnera plus le juge, mais le créateur, qu’il soit travailleur ou intellectuel.

Albert Camus, Discours de réception du Prix Nobel de littérature, prononcé à Oslo, le 10 décembre 1957

quarta-feira, setembro 25

O CORVO

1
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

2
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais
- Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

3
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

4
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

5
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais
- Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

6
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

7
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

8
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

9
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

10
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhão também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

11
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

12
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

13
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

14
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

15
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

16
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Édem de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

17
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse.
"Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

18
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

Edgar Allan Poe, Tradução de Fernando Pessoa


segunda-feira, setembro 23

ANTÓNIO RAMOS ROSA

CORPO DE ALMA

Se foste corola ou barco,
mas quando?
minha irmã,
minha leve amante, minha árvore,
que o mundo levantava
na inocência absoluta
do instante.
Alta estavas no amplo e recolhida
como uma lâmpada,
alta estavas na varanda branca.
Se acaso ainda podes ser aroma
dos meus olhos,
corpo no corpo,
retiro e substância, linha alta
da delícia,
nada te pedirei na minha ânsia
de puro espaço,
de azul imediato,
de luz para o olvido e o deserto.

António Ramos Rosa
No dia da sua morte. Poeta maior
da língua portuguesa e da minha cidade
de Faro.

In “Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa”
de Eugénio de Andrade. “Campo das Letras".

sexta-feira, setembro 20

QUANDO ELAS DESPERTAM

Procura guardá-las, Poeta,

por poucas que sejam de guardar,

do teu amar as visões.

Coloca-as no meio ocultas nas tuas frases.

Procura detê-las, Poeta,

quando em tua cabeça elas despertam,

de noite ou na luz crua do meio-dia.





KONSTANDINOS KAVAFIS

Tradução de Jorge de Sena

POLÍTICA - 19

A propósito do que se tem passado com a comunicação social nas eleições autárquicas com votação marcada para o dia 29 de Setembro. A luta política exige intervenção e debate públicos, contraditório, opiniões diversas e divergentes, com o mínimo de peias burocráticas. Ninguém se assusta, em democracia, com uma boa discussão, um discurso inflamado, uma proclamação panfletária. As televisões afastaram-se, ou foram afastadas, de promover debates entre os candidatos. As eleições são um momento especial para dar a conhecer os programas das candidaturas que se propõem governar e cada uma o fará a seu jeito. Sejam eleições nacionais, entre nós legislativas ou europeias, ou locais (autárquicas), ou regionais, como no caso das que se disputam nas regiões autónomas dos Açores e Madeira, a voz dos candidatos tem que ser ouvida pelos cidadãos eleitores. Não vale a pena fingir que não se passa nada a este respeito no caso das presentes eleições em que os candidatos são numerosos e disputam o voto em círculos eleitorais designados por concelhos e freguesias. Estas são, porventura, as mais genuínas eleições no nosso sistema democrático. Mas têm merecido uma flagrante desvalorização por boa parte dos fazedores de opinião, meios de comunicação social e CNE que ao pretender aplicar uma lei obsoleta em favor da justiça coarcta e ofende o mais sagrado valor da liberdade. O meu protesto.

quarta-feira, setembro 18

A LIBERDADE -2

« Non, on ne construit pas la liberté sur les camps de concentration, ni sur les peuples asservis des colonies, ni sur la misère ouvrière ! Non, les colombes de la paix ne se perchent pas sur les potences, non, les forces de là liberté ne peuvent pas mêler les fils des victimes avec les bourreaux de Madrid et d’ailleurs. De cela, au moins, nous serons désormais bien sûrs comme nous serons sûrs que la liberté n’est pas un cadeau qu’on reçoit d’un État ou d’un chef, mais un bien que l’on conquiert tous les jours, par l’effort de chacun et l’union de tous. »
 
ALBERT CAMUS, in allocution prononcée à la Bourse du Travail de Saint-Etienne, 10 mai 1953.

segunda-feira, setembro 16

A LIBERDADE


“Revolta
Finalmente, escolho a liberdade. Pois que, mesmo se a justiça não for realizada, a liberdade preserva o poder de protesto contra a injustiça e salva a comunidade.
A justiça num mundo silencioso, a justiça dos mundos destrói a cumplicidade, nega a revolta e devolve o consentimento, mas desta vez sob a mais baixa das formas. É aqui que se vê o primado que o valor da liberdade pouco a pouco recebe. Mas o difícil é nunca perder de vista que ele deve exigir ao mesmo tempo a justiça, como foi dito.
Dito isto, há também uma justiça, ainda que muito diferente, fundando o único valor constante na história dos homens que só morreram bem, quando o fizeram pela liberdade.
A liberdade é poder defender o que não penso, mesmo num regime ou num mundo que aprovo. É poder dar razão ao adversário."
 
Albert Camus, in Cadernos

 
Cinco comentários acerca de uma palavra sobre a qual merece a pena refletir: a liberdade.
 
Um comentário atrevido ao trecho do grande Camus

A liberdade não é um valor absoluto e integral. Ela não se verifica pela sua existência ou pela sua ausência, mas revela-se na sua maior ou menor substância, e essa substância não está, essencialmente, no poder agir e afirmar o que se pensa, mas na densidade que envolve esse pensar e esse agir. Por isso é um absurdo chamarmos livres às sociedades em que vivemos, porque elas poderão ser mais ou menos livres que outras mas nunca livres em absoluto. Mas absurdo maior é chamarmos livre a uma sociedade em que o pensamento nunca como antes foi tão condicionado por tão poderosos instrumentos de alienação, despossuindo o homem da sua verdadeira essência, tornando-o um ser uniformizado e unidimensional. Moral, necessidades, estilos de vida são induzidos por esses poderosos intrumentos fabricadores do conformismo e do senso-comum numa escala nunca vista.


A esta ideia absoluta de liberdade vem atrelada a ideia de democracia, como organização social e política que a garante. Também ela, aqui, tomada como categoria definitiva e única - a democracia, e não como categoria relativa - esta democracia. Se a democracia perdeu hoje, indiscutivelmente, substância também a perdeu a liberdade, tendo sido ambas remetidas para os seus aspectos formais.
O pior desta democracia é esta ilusão de liberdade.
Isto acontece porque o chamado desenvolvimento favorece as desigualdades sociais e a centralização do conhecimento, do poder e da riqueza. O combate pela justiça é, por isso, o verdadeiro chão onde pode germinar a liberdade. Ao contrário do que dizem, a igualdade social é que pode libertar a individualidade, ao contrário da desigualdade opressora que produz a unidimensionalidade e uniformidade humana. Todos os actos de justiça alargam o espaço da liberdade, ainda que possam restringir o direito ilegítimo de alguns, que é grosseiro designar como cerceamento da liberdade.

Resumindo, inverteria, passe o atrevimento, a prioridade dos termos usados por Camus. Escolho a justiça porque sem ela a liberdade não passa de uma vã e perigosa formalidade, e só com a sua (da justiça) realização progressiva poderá a liberdade ganhar substância. Náo existem actos de justiça atentatórios do valor substancial da liberdade.
Abraço. Carlos Pratas
*
Sobre esta questão complexa todas as simplificações são perigosas. Quando se cataloga ou se acusa deve dizer-se porquê. Duas notas :

1 o comunismo sempre foi património do ideário libertário. Identificá-lo com o totalitarismo, sem mais, é uma facilidade que dá jeito mas não abona no rigor de quem o faz;

2 é uma originalidade conciliar o ideário libertário com o pensamento social-democracia e a defesa da democracia burguesa.
*

O comentário anterior é meu apesar de me ter esquecido de assinar. Escrevi-o como resposta imediata ao comentário do EG que me surpreendeu pelos termos em que foi feito. Acrescento um último esclarecimento:

Nunca defendi posições totalitárias e sempre combati aqueles que falando em nome do comunismo têm muito a ver com o totalitarismo e pouco com o comunismo.. Penso que é tarefa maior resgatar essa ideia original de uma sociedade de plena igualdade e liberdade. Podia inventar-se outra palavra mas essa representa um património de luta de emancipação dos oprimidos e explorados.
Quanto à Democracia, defendo uma outra mais ampla e participada e não esta (por isso não tenho votado) que se faz de um poder cada vez mais delegado e, por isso, abre espaço para florescerem soluções de cariz autoritário. Carlos Pratas
*
Esta citação dos “cadernos” de Camus é o assunto, e a síntese de “O homem revoltado” (1951). Uma das mais importantes reflexões do séc. XX. Todo o livro (O homem revoltado), a que Camus empresta o brilho literário que lhe é característico, se desenvolve para chegar à síntese aqui “postada”. Como se sabe, essa síntese, e o suporte que a fundamenta, ocasionou uma violenta controvérsia, e esteve na base do também violento rompimento entre Camus e Sarte. Rompimento que só viria a ser reparado após a morte de Camus, no vibrante elogio "post mortem" que Sarte lhe dedicou.
Um comentário a um “post” não se presta a grandes aprofundamentos. Mas esta questão é essencial, em certo sentido é a questão, e quero deixar o meu contributo.
A história da “revolta” desenvolvida por Camus no livro não cauciona aquela síntese, pese o esforço produzido nesse sentido. Esse esforço é carrilado na oposição entre o “revolucionário” e o “revoltado”. Através dessa ideia central, Camus tentou chegar à oposição entre justiça e liberdade; ou, o que vai dar ao mesmo, à sua hierarquização, numa escala de valores. Admitida essa oposição, ou essa hierarquização, ou, o que vai dar ao mesmo, à sua possibilidade, é fácil a interpelação de uma escolha: escolhe um dos termos. Camus faz a sua escolha.
Todo o problema reside na admissão dessa oposição. Admitida ela, a questão torna-se irresolúvel, porque, ao contrário da pretensão de Camus, a escolha de um dos termos não resolve o problema. Antes prolonga, indefinidamente, o equívoco.
A solução só pode residir na negação da oposição entre justiça e liberdade. Na assunção da tese de que a liberdade sem justiça é meramente formal, exterior aos mecanismos sociais, e, como muito bem assinalou CP, assassina dela própria: na essência, reduz-se à caricatura dela própria, à liberdade de uma minoria explorar a maioria, à redução do indivíduo a um “replicador” do senso comum, esse mesmo que é o sustentáculo ideológico daquela exploração. E repare-se: se não há justiça, é porque alguém oprime alguém; será admissível conceber que essa opressão possa realizar-se em liberdade? Parece óbvio que não. Nas sociedades “livres” contemporâneas, qual a medida da capacidade de protesto, que fundamenta a escolha de Camus, do assalariado ou do desempregado? E qual a medida da capacidade de recurso que o explorado na sua força de trabalho encontra na justiça “independente” e “cega”? Por outro lado, na assunção da tese de que justiça sem liberdade (aqui entendida como a liberdade, sem peias de qualquer espécie, de plena expansão das possibilidades individuais e colectivas) se transforma numa justiça dirigida, e, nessa qualidade, portadora inevitável de diferenciações sociais, de poderes arbitrários e de novas, que se revelam afinal velhas, formas de exploração.
(CONT)
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A negação da oposição entre a liberdade e a justiça pode sintetizar-se deste modo: não há liberdade sem justiça, não há justiça que se cumpra sem liberdade. Escolher uma, admitindo o abandono da outra, como quem escolhe um bem maior, face a um bem menor, significa, no fim e ao cabo, negar ambas. Deste modo, essa escolha torna-se pérfida, e ilusória.
Todavia, sobra um aspecto fundamental, argutamente sinalizado pelo CP: porque é intrínseca à realidade social, a realização da justiça, no que tem de movimento individual e colectivo, favorece a realização da liberdade; pelo contrário, e porque é extrínseca àquela realidade, a expansão da liberdade formal, no que tem de estagnação e de alienação individuais e colectivas, obstaculiza a realização da justiça.
A plena reunião da liberdade e da justiça é a utopia da humanidade. O encontro fraterno do revolucionário com o revoltado. Dessa utopia estão muito mais próximos os movimentos libertários e colectivos que têm na raiz a exigência da justiça, do que a sociedade de liberdade formal, classista, decadente, podre e condenada, em que vivemos. A época actual não poderia ser, a este respeito, mais demonstrativa.
Não se trata de uma questão de balanço entre dois termos. Esse balanço não é controlável, e romperá sempre, tendo como resultado inevitável a negação de ambos os termos. Trata-se de uma questão de intransigência. Intransigência na defesa dos dois termos. É a única posição que poderá, de facto, sustentar quer um, quer outro.

Miguel Teotónio Pereira

sábado, setembro 14

Tudo vale a pena se a alma não é pequena ...

                                                                    Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.