quarta-feira, outubro 9

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (9)

Há rostos que se casam estreitamente com uma parte inteira dos nossos impulsos e com os quais comunicamos tão bem desde o princípio, que se torna impossível pensar séria e justamente diante deles, mas unicamente falar docemente, silenciosamente, utilizando palavras gastas e baças, às quais só o sentimento de uma íntima cumplicidade confere um novo valor.

Albert Camus, in Escritos de Juventude - “O PÁTIO” (Abril de 1933):

segunda-feira, outubro 7

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (8)



 
A um mês do dia em que se celebra o centenário do nascimento de Albert Camus (7/11/1913) aqui vos deixo algumas imagens ilustrando a sua dedicação, e amor, pelo teatro (e pelas mulheres), pelos filhos (gémeos), pelos amigos (na fotografia com Char) e pelo jornalismo.

domingo, outubro 6

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (7)

Tanto tempo passado, como decifrar os caminhos do meu encontro com Albert Camus? Sou levado a crer que me seduziu o ambiente mediterrânico que trespassa a sua escrita. Talvez me tenha atraído o autor existencialista, que hoje sei não ter sido, ou a sua atracção pelo tema do suicídio, ou o alcance político que o apego à defesa da liberdade assume no seu pensamento e acção cívica.
 
 
O que sei é que um dia pelos meus vinte anos, ou talvez dezanove, cursando um curso superior da área das ciências económicas, caíram-me nas mãos os três pequenos volumes dos Cadernos editados, em Portugal, na Colecção Miniatura, pela Livros do Brasil. Devo tê-los comprado por iniciativa própria, buscando o mero prazer da leitura, impulsionado pela curiosidade de conhecer um autor/personagem, oriundo do sul, como eu, atraído pela sua escrita concisa, demasiado perfeita, segundo alguns detractores, feita de fragmentos que se sobrepõem e interagem.
 
A minha memória navega por entre uma nebulosa repleta de impressões fortes mas difusas. A escrita fragmentada ajudou, certamente, no entusiasmo da escolha e os sublinhados, a traço grosso, que os livros estoicamente suportaram, testemunham a cronologia íntima de um leitor frente ao objecto do seu desejo.

No Cadernos I, ao cimo, na página 25, escrevi, a esferográfica azul, em perfeito alinhamento gráfico com a palavra Abril, “ – 3 – 1968 – Faro – Cais”. O texto sublinhado de Camus cuja leitura datei diz mais acerca da minha escolha que todas as palavras que possa escrever:
 
“Primeiros dias de calor. Sufocante. Todos os animais estão deitados. Quando o dia começa a declinar, a natureza estranha da atmosfera por cima da cidade. Os ruídos que nela se elevam e se pedem como balões. Imobilidade das árvores e dos homens. Pelas esplanadas mouros de conversa à espera que venha a noite. Café torrado, cujo aroma também se eleva. Hora suave e desesperada. Nada para abraçar. Nada onde ajoelhar, louco de reconhecimento.”

Esta, como outras das minhas escolhas de juventude, podia ser uma escolha actual. As minhas escolhas actuais vão mais além mas encaminham-se, quase sempre, para uma faceta da reflexão de Camus em que olha a mãe natureza e os outros homens com assumido desprendimento pelas coisas materiais sempre deixando transparecer um problema nunca resolvido na sua vida: a sua relação com o sucesso. Como transparece no texto final do Caderno nº 1:

“ (…) Não é necessário entregarmo-nos para parecer mas apenas para dar. Há muito mais força num homem que não parece senão quando é preciso. Ir até ao fim, é saber guardar o seu segredo. Sofri por estar só, mas por ter guardado o meu segredo venci o sofrimento de estar só. E hoje não conheço maior glória que viver só e ignorado. Escrever, minha profunda alegria! (…)”

O prazer dos meus reencontros com Camus renasce quando afloram à memória os momentos felizes da minha juventude, vivida sob o céu azul nas terras do sul, entre uma sinfonia de abraços apertados como se cada dia fora a despedida do mundo, o último dia, o primeiro do último abraço, aquele que marca o prazer de tudo começar. Quente a juventude, rebelde a paixão.

“ … a criança morrera naquele adolescente magro e vigoroso, de cabelos revoltos e olhar arrebatado, que trabalhara todo o Verão para levar um salário para casa e acabava de ser nomeado guarda-redes titular da equipa do liceu e, três dias antes, saboreara pela primeira vez, quase desfalecido, o contacto com a boca de uma jovem.” *

Como tantos outros leitores apaixonados também sinto que em cada livro leio sempre o mesmo livro e, passados 50 anos sobre a trágica morte de Camus, sou capaz de ouvir os seus passos por entre as suas palavras e a actualidade do seu pensamento não deixa nunca de me surpreender:

« Aquilo a que chama cepticismo das novas gerações – mentira. Desde quando o homem que recusa acreditar no mentiroso é o céptico”*
 
*«O Primeiro Homem»

Publicado em As Artes entre as Letras, edição de 11 de Agosto de 2010

Scarlett Johansson



                                                       Scarlett Johansson

sexta-feira, outubro 4

5 de OUTUBRO

Toda a noite ouço o estampido brutal do canhão, que por vezes chega ao auge, para depois cair sobre a cidade um silêncio mortal, um silêncio pior. Que se passa? Distingo o assobio das granadas, e de quando em quando, um despadaçar de beiral que cai à rua. E isto dura até de madrugada. De manhã as tropas do Rossio rendem-se e os marinheiros desembarcam na Alfândega. Às oito e meia está proclamada a República. Passa aqui na Rua de S. Mamede um resto de Caçadores 5, soldados exaustos, entre populares que os aclamam.

O rei fugiu. Um genro do Cayola, oficial de Infantaria 16, contou ao Maximiliano: Acompanham-no no parque das Necessidades o Sabugosa, o Faial, o Tarouca e o Ravara. Um deles dizia-lhe: - Vossa Majestade já fez o que tinha a fazer. – O rei estava lívido e num gesto maquinal tirava e metia os anéis nos dedos.

Um farmacêutico da Ericeira assegurou que o viu chegar a Mafra dentro dum automóvel. O D. Afonso embarcou no Estoril, mostrando aos que o acompanharam até ao fim uma carteira com duzentos mil réis. – É o que levo ... – A D. Amélia partiu também de Sintra para Mafra. Tinha-se espalhado entre o povo que fora a raínha quem mandara assassinar o dr. Bombarda. Se a apanham matam-na.


Raúl Brandão

Memórias “O meu diário”– Volume II
Perspectivas & Realidades

quinta-feira, outubro 3

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (5)

OS DEVERES DA AMIZADE AJUDAM A SUPORTAR OS PRAZERES DA SOCIEDADE

A frase em título, respigada dos meus sublinhados dos Cadernos, é uma das que mais me marcou, aquando da primeira leitura da obra de Camus, pelos meus 20 anos, era ele somente um pouco mais velho, como autor, do que eu como seu leitor. Aquela frase contém todo um programa de vida, que tentei tomar como meu, e sublinhei-a a traço grosso. Sei, hoje, como o esquecimento mata as ilusões da juventude. Mas nunca me esqueci dessa leitura inaugural de Camus, através dos Cadernos, e entendi, mais tarde, o significado profundo da sua obra que, ao longo dos anos, fui sendo capaz de ler, e reler, penetrando mais fundo no âmago da sua interpretação dos acontecimentos do seu tempo e da visão de um homem confrontado com o absurdo da existência.

PABLO NERUDA

"E numa certa manhã tudo ardia,
numa manhã o fogo
saltava da terra
devorando os seres,
e ardia,
havia pólvora,
e sangue.
Bandidos com aviões e mouros,
bandidos com anéis nos dedos e duquesas,
bandidos com frades negros e suas bendições
vinham pelo céu matar crianças,
e o sangue delas escorria pelas ruas
sem ruído algum, corria como sangue de criança.

Chacais que seriam alvo de desprezo de outros chacais,
pedras que o cardo seco morderia
e cuspiria, víboras que as próprias víboras abominariam!

Face a face com vocês vi o sangue
da Espanha erguer-se
para afogá-los em uma onda
de orgulho e de facas!

Generais
traidores:
vejam minha casa morta,
vejam a Espanha alquebrada:
de todas as casas sai um metal
que arde,
em vez de flores,
mas de cada oco da Espanha
a Espanha emerge
e de cada criança morta sai um rifle
com olhos,
e de cada crime nascem balas
que um dia encontrarão o caminho
do coração de vocês.

E vocês me perguntarão:
por que os poemas dele
não falam de sonhos, e de folhas
e dos grandes vulcões de sua terra natal.

Venham e vejam o sangue nas ruas,
venham e vejamo sangue nas ruas,
venham e vejam o sangue nas ruas!"

Pablo Neruda

(Excerto do poema “Explico Algunas cosas” de Pablo Neruda, citado por Harold Pinter na Conferência de atribuição do Prémio Nobel da Literatura.)
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Explico algunas cosas

Preguntaréis: ¿Y dónde están las lilas?
¿Y la metafísica cubierta de amapolas?
¿Y la lluvia que a menudo golpeaba
sus palabras llenándolas
de agujeros y pájaros?

Os voy a contar todo lo que me pasa.
Yo vivía en un barrio
de Madrid, con campanas,
con relojes, con árboles.
Desde allí se veía
el rostro seco de Castilla
como un océano de cuero.
Mi casa era llamada
la casa de las flores, porque por todas partes
estallaban geranios: era
una bella casa
con perros y chiquillos.

Raúl, ¿te acuerdas?
¿Te acuerdas, Rafael?
Federico, ¿te acuerdas
debajo de la tierra,
te acuerdas de mi casa con balcones en donde
la luz de junio ahogaba flores en tu boca?
¡Hermano, hermano!

Todo
eran grandes voces, sal de mercaderías,
aglomeraciones de pan palpitante,
mercados de mi barrio de Argüelles con su estatua
como un tintero pálido entre las merluzas:
el aceite llegaba a las cucharas,
un profundo latido
de pies y manos llenaba las calles,
metros, litros, esencia
aguda de la vida,
pescados hacinados,
contextura de techos con sol frío en el cual
la flecha se fatiga,
delirante marfil fino de las patatas,
tomates repetidos hasta el mar.

Y una mañana todo estaba ardiendo
y una mañana las hogueras
salían de la tierra
devorando seres,
y desde entonces fuego,
pólvora desde entonces, y desde entonces
sangre.
Bandidos con aviones y con moros,
bandidos con sortijas y duquesas,
bandidos con frailes negros bendiciendo
venían por el cielo a matar niños,
y por las calles la sangre de los niños
corría simplemente, como sangre de niños.

¡Chacales que el chacal rechazaría,
piedras que el cardo seco mordería escupiendo,
víboras que las víboras odiarían!

¡Frente a vosotros he visto la sangre
de España levantarse
para ahogaros en una sola ola
de orgullo y de cuchillos!

Generales
traidores:
mirad mi casa muerta,
mirad España rota:
pero de cada casa muerta sale metal ardiendo
en vez de flores,
pero de cada hueco de España
sale España,
pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos,
pero de cada crimen nacen balas
que os hallarán un día el sitio
del corazón.

Preguntaréis: ¿por qué su poesía
no nos habla del sueño, de las hojas,
de los grandes volcanes de su país natal?

¡Venid a ver la sangre por las calles,
venid a verla sangre por las calles,
venid a ver la sangre por las calles!

Pablo Neruda
De España en el corazón

quarta-feira, outubro 2

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (4)

“Je comprends ici ce qu´on appelle gloire: le droit d´aimer sans mesure. Il n´y a qu´un seul amour dans ce monde. Étreindre un corps de femme, c´est aussi retenir contre soi cette joie étrange qui descend du ciel vers la mer.»

Albert Camus, in “Noces à Tipasa” - Argel 1938


Stèle en mémoire des "Noces à Tipaza" d'Albert Camus

terça-feira, outubro 1

POLITICA - 20

Um dia após as eleições autárquicas os comentadores invadiram os écrans. É natural. Peroram acerca dos resultados e tudo o mais. São de todas as qualidades e feitios os comentadores com mais ou menos vulto em credibilidade e audiência. São úteis os comentadores pois preenchem o tempo e no nosso país, em regra, não falam mal dos políticos nem lançam a politica na lama. Na apreciação dos resultados destas eleições persiste para mim um enigma e atrevo-me a entrar num terreno que nem conheço muito bem mas intuo como relevante na vida dos partidos e das suas lideranças. Ora supondo que o PS, apesar de perder votos face às anteriores eleições autárquicas, ganhou 149+1 presidências de Câmara num total de 308, ou seja, quase metade, e os resultados são alicerçados, no caso do PS, em escolhas pelas concelhias partidárias dos candidatos, como pode alguém ameaçar a liderança de Seguro? As concelhias são a base de apoio dos líderes partidários. Ganhando quase metade das presidências em outros tantos concelhos, gostemos ou não de Seguro, o resultado destas autárquicas foram o melhor terreno eleitoral para o reforçar como líder do PS. Os partidos, vencedores ou vencidos, são a base da democracia e pela parte que me toca não confio, sem prejuízo dos seus méritos, nos chamados candidatos independentes. Antes prefiro um candidato partidário que assume com honra a derrota do que um independente a dar lições de moral do alto do palanque da vitória.   

segunda-feira, setembro 30

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (3)


.“São raros aqueles que continuam a ser pródigos depois de terem adquirido os seus meios. Esses são os reis da vida, que se devem saudar com discrição.”

(…)

“ – a miséria é uma fortaleza sem ponte levadiça.”

(…)

“De resto, como fazer compreender que uma criança pobre pode por vezes ter vergonha sem nunca invejar coisa alguma?”

(…)

“E, à noite, deitado, morto de cansaço, no silêncio do quarto onde a mãe dormia levemente, ainda ouvia uivar dentro dele o tumulto e furor do vento que amaria ao longo de toda a vida.”

(…)

“ … a criança morrera naquele adolescente magro e vigoroso, de cabelos revoltos e olhar arrebatado, que trabalhara todo o Verão para levar um salário para casa e acabava de ser nomeado guarda-redes titular da equipa do liceu e, três dias antes, saboreara pela primeira vez, quase desfalecido, o contacto com a boca de uma jovem.”

In “O Primeiro Homem”, de Albert Camus.

domingo, setembro 29

Frank O´Hara (Lana Turner has collapsed!)




Lana Turner has collapsed!
I was trotting along and suddenly
it started raining and snowing
and you said it was hailing
but hailing hits you on the head
hard so it was really snowing and
raining and I was in such a hurry
to meet you but the traffic
was acting exactly like the sky
and suddenly I see a headline
LANA TURNER HAS COLLAPSED!
there is no snow in Hollywood
there is no rain in California
I have been to lots of parties
and acted perfectly disgraceful
but I never actually collapsed
oh Lana Turner we love you get up

1962


Poema
Lana Turner desmaiou!
Eu deambulava e de repente
começou a chover e a nevar
e tu disseste que caía granizo
mas o granizo acerta na cabeça
com força por isso estava a nevar
e a chover e eu tinha tanta pressa
ia ao teu encontro mas o tráfego
comportava-se exactamente como o céu
e subitamente vi um cabeçalho
LANA TURNER DESMAIOU!
não há neve em Hollywood
não há chuva na Califórnia
eu estive numa data de festas
e portei-me de forma desgraçada
mas nunca tive um desmaio
oh Lana Turner amamos-te levanta-te

Frank O'Hara

In “Vinte e Cinco Poemas à Hora do Almoço”
Assiro & Alvim
Tradução de José Alberto Oliveira
Fotografia de Helder Gonçalves

VOTAR SEMPRE



VOTAR FOI DESDE SEMPRE PARA MIM PERTENÇA DO SAGRADO. MAIS DO QUE UMA ESCOLHA LIVRE DE REPRESENTANTES, COM SEUS DEFEITOS E VIRTUDES, UMA PARTILHA DO PODER EM COMUNIDADE.

ASSIM FOI SEMPRE MESMO NAS ELEIÇÕES CONDICIONADAS, E VICIADAS, ANTES DO 25 DE ABRIL (VOTEI EM 1969 E PARTICIPEI NA AÇÃO POLÍTICA, PELA PRIMEIRA VEZ, NA "CAMPANHA" DE 1965 ...).

VOTEI EM TODAS AS ELEIÇÕES DESDE O 25 DE ABRIL DE 1974 E, EM CADA UMA, SEJA QUAL FOR A SITUAÇÃO DO "ÂNIMO" E DA "RIQUEZA", SEJA DO LADO DO PODER OU DA OPOSIÇÃO, SINTO-ME COMO UM COMBATENTE ARMADO SIMPLESMENTE DE UMA VIBRANTE VONTADE DE PARTICIPAR.

sábado, setembro 28

BARBARA HANNIGAN

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (2)


Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.
É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.
É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!

sexta-feira, setembro 27

ANTÓNIO COSTA

Reproduzo, na íntegra, o post de outubro de 2009 a propósito das eleições autárquicas do próximo domingo em coerência com o sentido do meu voto. Desta forma poderei continuar a orgulhar-me de ter votado em todas as eleições democráticas realizadas em Portugal desde o 25 de abril de 1974. Com respeito pelos adversários, vencedores ou vencidos, o mais importante é afirmar, em cada eleição, pelo exercício do voto livre a confiança no regime democrático.
  

A vitória, por maioria absoluta, de António Costa, em Lisboa, significará, no plano político nacional, a vitória do PS nas eleições autárquicas. Se tal acontecer, apesar de todas as leituras, desde as heranças do passado, passando pelos genes políticos do candidato, até aos sinais de novos alinhamentos da esquerda no futuro, será uma vitória política do PS com expressão nacional. Em Lisboa vencerá, nesse caso, a renovação dos autarcas (pois Costa é, em todos os sentidos, o rosto de uma nova liderança autárquica), fundada numa aliança política original de esquerda. Costa conseguiu o milagre de criar uma coligação política informal assente num consenso programático, da esquerda radical à direita moderada, sem lançar ao lixo, antes pelo contrário, o PS tornando-o numa plataforma de encontro de vontades e de fusão de políticas modernizadoras. Mas para que esta experiência frutifique é preciso que António Costa ganha nas urnas. E PARA QUE GANHE É PRECISO VOTAR ANTÓNIO COSTA, OU SEJA, PS. VAMOS A ISSO!

quinta-feira, setembro 26

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (1)

C’est pourquoi les vrais artistes ne méprisent rien ; ils s’obligent à comprendre au lieu de juger. Et, s’ils ont un parti à prendre en ce monde, ce ne peut être que celui d’une société où, selon le grand mot de Nietzsche, ne régnera plus le juge, mais le créateur, qu’il soit travailleur ou intellectuel.

Albert Camus, Discours de réception du Prix Nobel de littérature, prononcé à Oslo, le 10 décembre 1957

quarta-feira, setembro 25

O CORVO

1
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

2
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais
- Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

3
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

4
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

5
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais
- Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

6
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

7
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

8
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

9
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

10
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhão também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

11
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

12
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

13
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

14
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

15
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

16
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Édem de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

17
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse.
"Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

18
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

Edgar Allan Poe, Tradução de Fernando Pessoa


segunda-feira, setembro 23

ANTÓNIO RAMOS ROSA

CORPO DE ALMA

Se foste corola ou barco,
mas quando?
minha irmã,
minha leve amante, minha árvore,
que o mundo levantava
na inocência absoluta
do instante.
Alta estavas no amplo e recolhida
como uma lâmpada,
alta estavas na varanda branca.
Se acaso ainda podes ser aroma
dos meus olhos,
corpo no corpo,
retiro e substância, linha alta
da delícia,
nada te pedirei na minha ânsia
de puro espaço,
de azul imediato,
de luz para o olvido e o deserto.

António Ramos Rosa
No dia da sua morte. Poeta maior
da língua portuguesa e da minha cidade
de Faro.

In “Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa”
de Eugénio de Andrade. “Campo das Letras".