terça-feira, novembro 5

7 de novembro de 2013 – O Renascimento de Albert Camus

Paul Valéry, desdenhando das biografias, escreveu um dia: “Ainda que pouco saibamos sobre Homero, permanece para nós intacta a beleza marítima da Odisseia”. Mas o exemplo de Homero, talvez rapsodo de textos alheios, não parece adequar-se à vida e obra de Albert Camus. Sabida a vida de Albert Camus nos damos conta de que alguns autores fazem também da vida uma obra. Quase nada na sua vida é provável, quase tudo é a demonstração de uma alargada coerência estilística que vai do pensamento ao gesto, do gesto à palavra, e da forma da palavra ao conteúdo da palavra. E por isso quanto mais sabemos sobre a vida de Albert Camus mais ela nos persuade da verdade da obra. E da urgência de a lermos, se andamos sedentos de verdade.  
 
1913-1917- Albert Camus argelino, pelo nascimento, filho de emigrantes, nasceu pobre. A sua mãe, Catherine Sintès, era de ascendência espanhola (Baleares) e seu pai, Lucien Camus, de ascendência francesa. O pai morreu em 11 de outubro de 1914, no hospital militar de Saint-Brieuc, depois de ter sido gravemente ferido na Batalha de Marne. A família muda-se para o bairro Belcout, em Argel. 
 
1918-1923 - Camus frequenta a escola comunal de Belcourt tendo chamado a atenção de Louis Germain, seu professor, que admirando as qualidades do seu jovem aluno e apercebendo-se da vontade da família para que abandonasse os estudos por motivos económicos, intercedeu junto da avó de Camus (a verdadeira matriarca da família) para que lhe fosse permitido prosseguir. A diligência foi bem-sucedida e, em 1923, Camus ingressa, como bolseiro, no liceu Bugeaud, em Argel. 
 
1924-1931 - Frequenta o curso liceal nunca tendo esquecido o seu mestre Louis Germain a quem dedicará os Discursos da Suécia, pronunciados em dezembro de 1957, por ocasião da entrega do Prémio Nobel da Literatura. Segue Filosofia, tendo como professor Jean Grenier, um notável escritor, cuja influência se revelará decisiva na formação intelectual e humana de Camus. Pelos seus 17 anos, em 1930, atingido pela tuberculose, é acolhido em casa de seu tio Gustave Acault, dono de um talho, franco-mação, homem de uma cultura invejável, em cuja vasta e eclética biblioteca, Camus toma contacto com os clássicos e lê obras de Balzac, Victor Hugo, Émile Zola, Anatole France e de outros autores. Quando, em 1946, lhe anunciam a morte do tio Gustave confia a Jean Grenier: “Foi o único homem que me fez imaginar o que poderia ser um pai.” Em 1931, é obrigado a abandonar a paixão pelo futebol, de que chegou a ser praticante numa equipa da Universidade de Argel, devido aos primeiros sinais da tuberculose, doença que o impedirá naquele ano de fazer as provas de acesso à Faculdade. 
 
1932-1935 - Prepara a sua licenciatura em filosofia na Universidade de Argel. Publica alguns artigos na revista Sud. Jean Grenier publica As Ilhas. Em 1933 Camus perfaz 20 anos e Hitler sobe ao poder. Em 16 de junho de 1934, Camus casa-se, pelo civil, com Simone Hié. Nesse mês, obtém o certificado de Psicologia e, em novembro de 1934, o Certificado de Estudos Literários Clássicos. O ano de 1935 revela-se fecundo: obtém o certificado de Filosofia Geral e História da Filosofia. Começa a escrever L´Envers et l´Endroit e, em maio, inicia a escrita dos Cadernos e funda o Teatro do Trabalho. Compõe, “em coletivo”, a peça Revolta nas Astúrias e, por influência de Jean Grenier, no outono de 1935, adere ao Partido Comunista Argelino. 
 
1936 - Em abril, é proibida a representação de Revolta nas Astúrias, mas a peça é publicada pela editora Charlot; em maio, Camus obtém o Diploma de Estudos Superiores em Filosofia com uma tese intitulada Metafísica Cristã e Neoplatónica: Plotino e Santo Agostinho; nesse mesmo mês, a Frente Popular vence as eleições em França; a 17 de julho, tem início a Guerra Civil Espanhola que o marcou profundamente e na qual toma, declaradamente, o partido dos republicanos. Mais tarde será condecorado pelo governo espanhol republicano, no exílio, numa peculiar cerimónia, em que comparece sozinho; realizou uma viagem, marcante, à Europa Central e separou-se de Simone Hié. 
 
1937 - Edita, em Argel, com uma tiragem reduzida, L´Envers et l´Endroit; elabora o projeto para La Mort heureuse e trabalha na redação de Noces; doente, parte para Paris, Marselha e visita o norte de Itália, deixando nos Cadernos notáveis apontamentos desta visita; de regresso à Argélia, recusa o lugar de professor em Sibi-bel-Abbès (Orão); o Teatro do Trabalho passa a chamar-se Teatro da Equipa. Em agosto de 1937, é excluído do Partido Comunista, acusado de “trotskista”. Encontra, pela primeira vez, Francine Faure, sua futura mulher. 
 
1938 - Concluindo Noces, toma notas para Calígula e trabalha, intensamente, na atividade teatral, destacando-se uma adaptação de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, na qual interpretará o papel de Ivan Karamazov. Conhece Pascal Pia, redator-chefe do novo jornal Alger Républicain, do qual se torna redator. Faz a apresentação do primeiro número da revista Rivages. 
 
1939 - Publicou, em Argel, Noces, nas edições Charlot; a França e a Inglaterra declaram, a 3 de setembro, guerra à Alemanha; o seu alistamento voluntário no exército é recusado por razões de doença. Proibição do Soir Républicain que havia sucedido ao Alger Républicain. 
 
1940 - Camus parte, em 14 de março, para Paris, onde se junta a Pascal Pia, assumindo funções no secretariado da redação do Paris-Soir. No dia 1º de Maio, escreve numa carta a Francine: “Acabei o meu romance […] Sem dúvida, não terminei o meu trabalho”. Tratava-se de L´Étranger. Nos inícios de junho, face à iminência da ocupação de Paris pelos alemães, Camus acompanha a redação do Paris-Soir para Clermont-Ferrand, instalando-se, em setembro, na cidade de Lyon; em novembro, junta-se-lhe Francine Faure e, a 3 de Dezembro, casam em Lyon, tendo como testemunhas Pascal Pia e três tipógrafos do jornal; logo de seguida, no final do ano, é despedido, regressando à Argélia, Orão. 
 
1941 - Este regresso forçado à Argélia, para junto dos familiares da mulher, em Orão, cidade que detestava, coincidiu com uma época de dificuldades materiais; a 21 de fevereiro, escreve nos Cadernos: “Acabei Sísifo. Os três Absurdos estão terminados”. Faz circular o manuscrito de O Estrangeiro; em abril, regressa a Argel e, em novembro, O Estrangeiro é aceite pela equipa de leitura da editora Gallimard. 
 
1942 - Sofre uma recaída da tuberculose e, a meio de agosto, muda-se para as terras altas de Auvergne; em maio, é publicado pela Gallimard, L´Étranger, acabado de imprimir em 21 de abril, que continua a ser o livro mais vendido das edições Gallimard, a que se segue, em outubro, a publicação, pela mesma editora, de Le Mythe de Sisyphe. Escreve La Peste; a 8 de novembro, as tropas aliadas desembarcam em Marrocos e na Argélia, separando-o da mulher, que havia regressado à Argélia no mês anterior; reencontrar-se-ão somente após a Libertação. 
 
1943-1944 - Estabelece contacto com o movimento clandestino da Resistência Combat; em junho de 1943 conhece Sartre, em Paris, aquando da estreia da peça As Moscas; encontra-se com Claude Bourdet, do Comité Nacional da Resistência, assumindo funções, cada vez mais importantes, no jornal Combat que o levaram a assumir, no início de 1944, a direção do jornal; a 6 de junho, as tropas aliadas desembarcam na Normandia; em junho, Le Malentendu sobe à cena, sob a direção de Marcel Herrand. O seu empenhamento no teatro, de que tanto gostava, propicia a paixão pela atriz Maria Casarès, com a qual manterá um longo relacionamento amoroso; em 21 de agosto, é editado o primeiro número legal do jornal Combat com um editorial assinado, pela primeira vez, com o nome de Camus, intitulado: Le Combat continue …; 25 de Agosto é o dia da libertação de Paris e Camus intitula o seu editorial La Nuit de la Vérité; a partir de 31 de agosto escreve no Combat uma série de notáveis artigos acerca da liberdade de imprensa. 
 
1945 - No pós-guerra, Camus desenvolveu uma intensa atividade jornalística e política; uma das suas mais relevantes tomadas de posição refere-se ao lançamento da primeira bomba atómica sobre Hiroshima, a 6 de agosto, tendo, dois dias depois, publicado um editorial referindo “as terríveis perspetivas que se abrem à humanidade”; a 5 de setembro, nascem os seus filhos gémeos, Catherine e Jean. Representação de Calígula no teatro Hébertot e publicação, pela Gallimard, de Lettres à un Ami Allemand, em memória de René Leynaud. 
 
1946 - Em março/junho, viaja para os Estados Unidos e Canadá; pelo outono nasce uma mútua, e profunda, amizade com René Char (“Char que eu amo como a um irmão”- dirá a Pierre Berger), que, para Camus, era mais do que um poeta, um resistente, o Capitão Alexandre da Resistência, chefe do “maquis”; em novembro, escreveu uma série de oito artigos para o Combat, reunidos sob o título Nem vítimas nem carrascos. Reescreve La Peste. 
 
1947 - A 3 de junho, Camus abandona o jornal Combat, cuja redação se havia dividido a propósito da criação por De Gaulle do RPF (Rassemblement du Peuple Français); no dia 10 do mesmo mês, é publicado La Peste, edição da Gallimard: é o seu primeiro grande sucesso editorial tendo sido vendidos, entre julho e setembro, 96.000 exemplares, e com ele obterá o “Prémio dos Críticos”. 
 
1948 – Em janeiro, termina a redação de L´État de Siège, no qual trabalhará ainda em julho; em outubro, esta peça sobe à cena, com encenação de Jean-Louis Barrault, tendo constituído um tremendo fracasso, tanto para a crítica como para o público. 
 
1949-1951 - Em julho/agosto de 1949, Camus realiza uma longa viagem à América do Sul, para proferir uma série de Conferências; regressa gravemente doente; durante a viagem, concluira a peça Les Justes que, em dezembro, sobe à cena, com encenação de Paul Oettly, tendo Serge Reggiani e Maria Casarés nos principais papéis. Segundo as suas próprias palavras, tratou-se de um semi-sucesso. No ano de 1950, além da publicação de Actuelles, Chroniques 1944-1948, Camus recupera da doença. Em 1951, termina a redação de L´Homme Révolté, publicado em outubro, pela Gallimard, desencadeando então uma forte polémica que ganhará sobretudo expressão no ano seguinte. Camus aborda, de forma desassombrada, para o seu tempo, a questão dos totalitarismos: “o fascismo é a glorificação do carrasco por ele próprio; o comunismo, mais dramático, a glorificação do carrasco pelas vítimas”. 
 
1952 - Alguns dias antes da saída do livro, Camus dissera a Oliver Todd, seu biógrafo: “Apertemos as mãos. Porque daqui a alguns dias não haverá muita gente para me apertar a mão”. Camus sabia que a liberdade de pensamento nem sempre é bem aceite. Em L´Homme Révolté, Camus realiza um esforço sério para compreender o seu tempo, ousando condenar não só a barbárie nazi, mas também o Goulag, contra a opinião dos seus amigos da esquerda sob a hegemonia do Partido Comunista Francês. Em maio, na revista Temps Modernes, Francis Jeanson, a mando de Sartre, publica um artigo violento, e insultuoso, contra o ensaio de Camus, que responde dirigindo-se ao diretor da revista, ou seja, ao próprio Sartre, levando ao corte de relações entre ambos. Em dezembro, Camus publica Post-sciptum, texto no qual procura explicar as razões que o tinham levado a escrever L´Homme Révolté. Recusa-se a colaborar com a UNESCO, em protesto contra a admissão da Espanha franquista na organização. 
 
1953 - Camus desenvolve intensa atividade no campo teatral e toma posições públicas de protesto contra a prisão, na Argentina, de Victoria Ocampo, contra a intervenção da União Soviética em Berlim Leste e contra a repressão, pela polícia de Paris, de manifestantes da África do Norte; a Gallimard publica o volume Actuelles II (1948-1953); surge nos Cadernos a primeira referência ao esboço do que viria a ser a sua última obra, Le Premier Homme. Sua mulher Francine dá sinais de uma grave depressão. 
 
1954 - O estado depressivo de Francine agrava-se e Camus vive um período de grande cansaço e desilusão; a Gallimard publica L´Été, na coleção Les Essais; profere intervenções públicas a favor de sete tunisinos condenados à morte; a 7 de maio, escreve nos Cadernos: “Queda de Dien Bien Phu. Como em 40, sentimento partilhado de vergonha e de fúria”; em setembro, Francine apresenta melhoras; viagens à Holanda e a Itália, para uma série de conferências, enquanto eclode, na Argélia, a luta armada de libertação. 
 
1955 - Em fevereiro, viaja para a Argélia, visitando as regiões atingidas por um violento tremor de terra no ano anterior enquanto a crise política argelina se agrava, tendo sido instaurado, por Edgar Faure, Presidente do Conselho, o “estado de emergência”; em abril/maio, realiza um sonho antigo: a viagem à Grécia, onde profere uma série de conferências. Em julho/agosto, visita, de novo, a Itália; em Julho escreveu, no L´Express, dois longos artigos - Terrorisme et Répression e L´Avenir Algérien - acerca da situação argelina, apelando à realização de uma conferência com vista a alcançar uma solução política, uma “espécie de nação mista, na qual franceses e árabes viveriam livremente e em igualdade de direitos em solo argelino”; entretanto, a situação política agrava-se na Argélia e, no 1º de outubro, escreve Lettre à un Militant Algérien e outros artigos acerca da situação argelina, nos quais defende uma conciliação entre os interesses em presença, afirmando que “a Argélia não é a França” mas que nela vivem um milhão de franceses; a escalada da guerra na Argélia tornara-se insuportável para Camus que viveu a “infelicidade argelina como uma tragédia pessoal “. Apoia a Frente Republicana e o programa eleitoral de Mendes-France. Em novembro, publica, no Le Monde libertaire, L´Espagne et le Donquichottisme. 
 
1956 - Numa última tentativa de conciliação no conflito argelino, que se agravava dia a dia, Camus viaja para a Argélia, onde lança, perante uma assembleia tensa e conturbada, um dramático apelo em prol de uma trégua que poupasse os civis: “ (…) porque mesmo o mais decidido entre vós conserva no meio da confusão da luta um recanto do seu coração, no qual, eu sei bem, não se conforma com o assassínio e o ódio e sonha com uma Argélia feliz. É a esse recanto em cada um de vós, franceses e árabes, que nós apelamos”. Olivier Todd, no final da sua biografia, Albert Camus, une Vie, (Gallimard, 1996), escreverá depois que “face ao problema argelino, Camus foi legalista e moralista (...) ele queria para a Argélia o que alguns, com Nadine Gordimer à cabeça, sonharam para a África do Sul: a coexistência na igualdade de direitos; dois povos numa só nação e um estado de direito multirracial”. Mas tal sonho tornara-se irrealizável na Argélia. Em maio, a Gallimard publica La Chute; em 2 de julho, Camus assina um texto de protesto contra a repressão em Poznan (Polónia); em 4 de novembro, as tropas soviéticas entram em Budapeste, esmagando a insurreição húngara; responde ao apelo dos escritores húngaros e pede à ONU que mande retirar as tropas da URSS da Hungria: Pour une démarche commune à l´ONU des intellectuels européens” (Franc-Tireur). 
 
1957 - Em março, discursa na Sala Wagram contra a intervenção na Hungria (Kadar a eu son jour de peur) e publica, pela Gallimard, L´Exil et le Royaume. Mas este é o ano do Nobel da Literatura que lhe seria atribuído, em 16 de outubro, “pelo conjunto de uma obra que lança luz sobre os problemas que se colocam, nos nossos dias, à consciência do homem”. A reação de Camus à notícia ficou registada nos Cadernos, no dia 17 de outubro, com uma pungente referência à sua infância pobre, lembrando a mãe: “O Nobel. Estranho sentimento de abatimento e melancolia. Aos 20 anos, pobre e nu, conheci a verdadeira glória. A minha mãe.” Mas, logo no dia 19, nos mesmos Cadernos, o reverso da medalha: “Assustado com tudo o que me acontece e que eu não pedi. E para cúmulo ataques tão baixos que me deixam apertado o coração”. René Char, por sua vez, de coração aberto, exulta, numa carta dirigida a Camus: “Espero bem, creio que consta o que será certo. Assim, a certeza do que circula na imprensa incita-me sem reservas a regozijar-me e a achar que esta quinta-feira, dia 17 de outubro de 1957, é para mim o melhor, o mais esplendoroso, sim o melhor dia de há muito, entre tantos dias de desespero. Peço-lhe que aceite, para memória deste dia, esta pequena caixa que me salvou a vida quando combatia na resistência, e que eu desde então conservei como uma relíquia verdadeiramente íntima”. No outono, publicou, pela Calmann-Lévy, Réflexions sur la peine capitale, na Suécia, a partir de 9 de dezembro, proferia, além do discurso de aceitação do Prémio Nobel, duas conferências, em Estocolmo e Upsala; na primeira das quais, interpelado por um jovem argelino, profere uma célebre, e polémica, frase: ”Creio na justiça, mas defenderia a minha mãe antes da justiça”. 
 
1958 - Com o dinheiro do Prémio Nobel compra uma casa em Lourmarin. Sua mãe recusa sair da Argélia e Camus decide abster-se de qualquer intervenção direta no conflito argelino. Em janeiro, publica, na Gallimard novamente, Discours de Suède e, em junho, Actuelles III, Chroniques algériennes (1939-1958). Em março/abril, visita a Argélia e, em junho, doente, regressa à Grécia. Trabalha na adaptação teatral de Os Possessos, de Dostoievski, que sobe à cena, em janeiro do ano de 1959, com encenação do próprio Camus. 
 
1959 - No mês de março, nova visita à Argélia, para ver a mãe, recentemente operada; começa a escrever, finalmente, Le Premier Homme, a que dedica todo o ano; apresentação de Possédés em Veneza, assim como em França e noutros países; a 14 de dezembro tem o seu derradeiro encontro público, com estudantes estrangeiros em Aix-en-Provence, no qual em resposta à pergunta: “Considera-se um intelectual de esquerda?”, responde: “Não estou certo de ser um intelectual. Quanto ao resto, sou pela esquerda, apesar de mim, e apesar dela”. 
 
1960 - No dia 3 de janeiro, Camus parte da sua casa de Lourmarin, onde havia passado o fim de ano, de regresso a Paris, no Facel Vega conduzido por Michel Gallimard. Francine Camus fizera a viagem de comboio na qual deveria ter sido acompanhada por Camus; no dia seguinte, no prosseguimento da viagem, o carro despista-se, numa longa reta, em Villeblevin, perto de Montereau, embatendo num plátano, provocando a morte imediata de Camus e, cinco dias mais tarde, a de Michel Gallimard. Na pasta de couro de Camus, encontrava-se, além de diversos objetos pessoais, o manuscrito de Le Premier Homme, um romance inacabado, cento e quarenta e quatro páginas que sua mulher Francine haveria de dactilografar e sua filha, Catherine, fixaria em texto, publicado pela Gallimard, na primavera de 1994. 
 
Albert Camus está sepultado em Lourmarin. 
  
Eduardo Graça 
 
[Publicado na edição do passado sábado do Expresso pelo Centenário do nascimento de Albert Camus.]
 

sábado, novembro 2

CAMUS E O LIVRO QUE QUEREMOS LEVAR PARA UMA ILHA HABITADA

“Que livro levarias para uma ilha deserta?”

Muitos respondem que a Bíblia, talvez porque é uma biblioteca num só livro. Umberto Eco optava pela lista telefónica, para poder inventar com aquelas personagens um número infinito de histórias. Outros, mais pragmáticos, um manual de Como se faz uma canoa. Todas as respostas nos dizem afinal que o ser humano é gregário: dá-se mal com a solidão e, quando se vê sem companheiros de aventura, gosta de os criar. Como fazia Robinson Crusoé até encontrar Sexta-feira, içando regularmente a bandeira inglesa na ilha fora do mapa.

A resposta pode ser ligeira e em nada nos comprometer. Talvez mais difíceis de escolher (e muito mais comprometedores) sejam os livros que queremos guardar na nossa ilha habitada. Uma ilha sim, aquele círculo de lugares, coisas e pessoas entre os quais moramos todos os dias e a partir do qual avistamos o resto do mundo, se formos ao cais. A sobreposição de factos, de tempos e de espaços que existe na vida real depressa nos leva a esquecer o quão importante é guardar algumas coisas, poucas, algumas pessoas, amigas, alguns livros, escolhidos. Vivemos com o que nos põem à frente, muitas vezes sem nos preocuparmos com o pó que foi naturalmente tapando as rosas que recebemos, os amigos que já não vemos, os livros que já não lemos. Até que um pequeno abalo sísmico na nossa ilha habitada nos abre uma brecha na paisagem. É sempre por causa dos abalos que refletimos no que é importante guardar. Eu sei que levo pelo menos um livro de Albert Camus comigo, apesar de não estar na moda em Portugal. A ilha em que eu habito não lê agora muito os autores franceses e não gosta de ler coisas que ponham (mais) problemas. A ilha anda a ler romance histórico: que é uma forma de enganar a memória atirando os problemas para trás. Fazemos mal, se esquecermos Albert Camus. É um autor francês que deve ser lido em período de abalos. Camus é importante na medida em que nos obriga a questionar os velhos clichés e a identificar as novas falácias. Camus é urgente, na medida em que nos interroga e nos incomoda, levando-nos a ver para além da ilha, círculo vicioso e absurdo em que habitamos.

Vê-se bem a marca do livro de Camus na mala com que ando pela vida. Só não consigo ver bem o título, talvez porque eu vá mudando o livro, mantendo a editora. Tenho quase a certeza de que é A Queda. Acorda-me do sono mortal da indiferença. Levei-o quando estive em Amesterdão. Para que me aparecesse de novo Clamence, juiz-penitente, e ele me fosse acusando das minhas cobardias, confessando as suas. Para que ele me alerte para as formas rituais de dignificação dos vícios: “Até amanhã, pois, meu caro senhor e compatriota. Não, agora facilmente atina com o caminho; deixo-o nesta ponte. Nunca passo, de noite, numa ponte. É a consequência de um voto. Suponha, no fim de contas, que alguém se atira à água. Das duas uma, ou o senhor o segue, para o tirar, ou o abandona à sua sorte e os mergulhos retidos causam por vezes estranhas cãibras”…

Ou talvez seja O Estrangeiro. Releio agora sem professor, admirando cada vez mais a conotação indelével das coisas ditas com simplicidade. Disseram-me seca a frase “Hoje, a mamã morreu”. Mas se assim fosse, porquê a ternura da palavra “mamã”? Tento variantes: “Hoje, a minha mãe morreu”, mais seco. “Hoje, a mãe morreu”: mais seco ainda? O que é hoje evidente em Meursault é o percurso iniciático de um homem que aprende a sair da indiferença que nunca foi absoluta. O Estrangeiro é a história do caminho que vai do “para mim tanto faz” ao “não” final, forma extrema de compromisso solitário. Ensinou-me que Camus não é um filósofo do absurdo, mas um filósofo anti-absurdo, na medida em que constrói os sentidos da vida a partir da consciência indelével do absurdo.

Não, talvez sejam as Núpcias. Ou O Verão. Nestas obras reaprendo a vitalidade da Natureza, vitalidade engenhosa, resistente, teimosa, ardilosa. Somos como as ruínas de Tipasa, o vento de Djémila, a cidade babélica de Argel, o deserto afinal habitado. Somos ainda o tronco daquelas amendoeiras que resistem à neve do Inverno, e ainda a neve que resiste ao vento, e a flor que nasce de um tronco que parece morto, ainda antes da primavera despontar. Camus recorda-nos a democracia da beleza: “Bem pobres são aqueles que precisam de mitos. Descrevo e digo: ‘Isto é vermelho, azul, verde. Isto é o mar, as montanhas, as flores.’ Tenho eu necessidade de falar de Dioniso para dizer que gosto de esmagar bolas de lentiscos debaixo do meu nariz?”

Bem pobres somos nós, que precisamos de mitos. E de livros que nos recordem o essencial. Mais pobres ficaremos se os não buscarmos.

Maria Luísa Malato

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

[Hoje publicado na Atual, separata do Expresso, de um conjunto de textos que, a título gracioso, foram elaborados para celebrar o Centenário do nascimento de Albert Camus - uma parceria informal entre a Prof.ª Maria Luísa Malato e eu próprio.]

sexta-feira, novembro 1

PALOMA SAN BASILIO

TRABALHAR NA CIDADE

O mundo está repleto de notícias que cada um de nós absorve numa minimíssima parte. As nossas cidades maiores, pequenas metrópoles à sua dimensão, como Lisboa, não estão preparadas, no que tange aos transportes públicos, para o trabalho das ...gentes. Isto não é notícia nenhuma senão mera nota de rodapé acerca do quotidiano. Ora se um jovem que começou a trabalhar na 2ª feira passada (hélas!) carece de pegar ao trabalho às 7 da manhã na zona da Pampulha (quem não souber onde é que procure, se lhe interessar) e mora em Telheiras, mesmo sem greve do Metro, não chega ao Cais do Sodré a tempo de, mesmo a pé, chegar ao seu destino ...a horas... pois o Metro só inicia a função às 6,30 horas. Se pensar no autocarro terá que se deslocar a pé até Entrecampos apanhar um autocarro que o transporta até ao Cais do Sodré a que se segue uma nova caminhada até ao local de destino. Os transportes públicos na cidade estão preparados para a utilização do automóvel ou para os trabalhadores com horário das 9 às 19 ou das 10 às 20. Assim não chegamos ao destino!

quinta-feira, outubro 31

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (21)

Sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberto em relação a todos pela excelente razão que me considerava sem igual. Julguei-me sempre mais inteligente do que ninguém, disse-lhe eu, mas também mais sensível e mais destro, atirador de escol, volante inigualável, e melhor amante. (…) Não me reconhecia senão superioridades, o que explicava a minha benevolência e a minha serenidade. Quando me ocupava de outrem, era pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia a meu favor: eu subia um degrau no amor a mim mesmo. 

Com algumas outras verdades, descobri a pouco e pouco estas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, nem com grande nitidez. Tive, antes de mais, de recuperar a memória. (…) Até ali, tinha sido sempre ajudado por uma espantosa faculdade de esquecimento. Esquecia tudo e em primeiro lugar as minhas resoluções. No fundo, nada contava. Guerra, suicídio, amor, miséria, prestava-lhes atenção, é certo, quando as circunstâncias a isso me obrigavam, mas de uma maneira cortês e superficial.

(…) Eu não era lá de muito bom estofo para perdoar as ofensas, mas acabava sempre por esquecê-las. E, se alguém se julgasse detestado por mim, não se livrava de se ver saudado com um largo sorriso. Consoante a sua natureza, admirava então a minha grandeza de alma ou desdenhava a minha baixeza, sem pensar que a minha razão era mais simples: eu tinha esquecido até o seu nome. 

                                                         Albert Camus, in A Queda

segunda-feira, outubro 28

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (20)

Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres. 

É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo. 

É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!
 
Albert Camus, in A Queda
 

domingo, outubro 27

LOU REED - QUE VIVA!

ANIVERSÁRIO

No dia de 23º aniversário do meu filho Manuel recoloco uma fotografia de quando eu próprio teria a idade que ele tem hoje. Os traços mantêm-se, no essencial, e trespassam as gerações. Ele vai começar a trabalhar, por opção própria, num tempo em que são escassas as oportunidades de trabalho grassando o desemprego jovem. Buscou esse caminho, sem ajudas nem encómios, e todos os esforços e sacrifícios valem a pena na construção de um futuro no qual o trabalho será uma das experiências mais importantes. É uma coincidência interessante e o meu mais profundo desejo é que seja feliz.  
 
[A fotografia foi obtida aquando de uma representação da peça "Histórias para serem contadas" do argentino Osvaldo Dragun.]  

sábado, outubro 26

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (19)

É verdade, o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média chamavam o «desconforto»? Em geral, esqueciam-nos aí para o resto da vida. Esta cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficientemente alta para se poder estar de pé, nem suficientemente larga para se poder estar deitado. Tinha-se de adoptar o género tolhido, viver em diagonal; o sono era uma queda, a vigília um acocoramento. Meu caro, havia génio, e eu peso as minhas palavras, neste achado tão simples. Todos os dias, pelo imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, o condenado sabia que estava culpado e que a inocência consiste em nos espreguiçarmos gostosamente. Pode imaginar nesta cela um frequentador dos cimos e das cobertas dos navios? O quê? Podia-se viver nesta cela e ser-se inocente? Improvável, altamente improvável! Ou então o meu raciocínio caía pela raiz. Que a inocência seja forçada a viver corcunda, recuso-me a considerar por um único segundo esta hipótese. De resto, nós não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos. Cada homem atesta o crime de todos os outros, eis a minha fé e a minha esperança. 

Albert Camus, in A Queda
Adicionar legenda

Anna Netrebko

Jean Sibelius

sexta-feira, outubro 25

LIBERDADE - uma vez mais

Vivemos no interior de uma espécie de grande intervalo entre um passado/presente, marcado pelo mais longo período de paz na Europa, e um futuro pleno de incógnitas. Podemos-nos acomodar, cada um à sua maneira, na espera paciência que surjam soluções que tudo mudem menos o que não interessa a cada um de nós que mude. Mas as grandes mudanças, uma das quais parece crescer debaixo de nossos pés, não se compadecem com o recato das omissões. Uma das escolhas centrais que cada um de nós será chamado a fazer, como sempre acontece, é entre a liberdade e a tirania. E mais do que uma questão filosófica, que se pode e deve debater, a questão da liberdade é uma questão da prática quotidiana. Multiplicam-se os sinais de alarme que ecoam das notícias e se sucedem a cada passo das nossas vidas. Cada um, e todos, cuidemos antes de mais de não deixar passar em silêncio, e sem denúncia, mesmo nos mais pequenos círculos de amigos, todos os sinais que prenunciem limitações à liberdade. E tantos são eles!

quarta-feira, outubro 23

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (18)

« … Acontece-me, por vezes, ao voltar de uma dessas curtas tréguas que nos deixa a luta comum, pensar em todos os recantos da Europa que conheço bem. É uma terra magnífica, feita de sacrifícios e de história. Revejo as peregrinações que fiz com todos os homens do Ocidente. As rosas nos claustros de Florença, as tulipas douradas de Cracóvia, o Hradschin com os seus paços mortos, as estátuas contorcidas da ponte Karl sobre Ultava, os delicados jardins de Salzburgo. Todas essas flores, essas pedras, essas colinas e essas paisagens onde o tempo dos homens e o tempo da natureza confundiram velhas árvores e monumentos! A minha memória fundiu essas imagens sobrepostas para delas formar um rosto único: o da minha pátria maior. Algo me oprime quando penso, então, que sobre esse rosto enérgico e atormentado paira, desde alguns anos, a vossa sombra. E no entanto, há alguns desses lugares que você visitou comigo. Eu não imaginava, nessa altura, que fosse um dia necessário defendê-los contra os vossos. E agora ainda, em certos momentos de raiva e desespero, lamento que as rosas possam ainda crescer no claustro de São Marcos, os pombos lançar-se em bandos da catedral de Salzburgo e os gerânios vermelhos germinarem incessantemente nos pequenos cemitérios da Silésia.

Mas, noutros momentos, e são esses os verdadeiros, sinto-me feliz que assim seja. Porque todas as paisagens, todas as flores e todos os trabalhos, a mais antiga das terras, vos demonstram, em cada Primavera, que há coisas que não podereis abafar no sangue. […] Sei assim que tudo na Europa, a paisagem e a alma, vos rejeitam serenamente, sem ódios desordenados, mas com a força calma das vitórias. As armas de que dispõe o espírito europeu contra as vossas são as mesmas que nesta terra sempre renascente fazem crescer as searas e as corolas. O combate em que nos empenhamos possui a certeza da vitória, porque é teimoso como a Primavera. … »

Albert Camus, Cartas a um Amigo Alemão

DOURO DE MIE ALMA



Ah! riu de ls mius amores!
Guardian de las streilhas.
Quanto gusto de ti
I de ls tous ancantos!
Que buòno vê
Ber las ailas a bolar.
Ls paixaricos a cantar.
Las fáias a assomar …
Oubir, scuitar …
Ls cachones a fungar.
Niébros i carrascos a silbar.
Pastores sues fraitas a tocar
L’auga a caminar
Sien parar …
Pa l mar eimenso …
A chorar …
Ah! Douro de mie alma!
Tu tenes, boç.
Sós fuônte de bida.
D’einergie i riqueza.
L sangre de la tiêrra.
Como tu.
Nun hai eigual.
Sós la lhuç de Miranda.
Lhuç de Pertual!

Domingos Raposo

(Em língua mirandesa.)

terça-feira, outubro 22

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (17)

Je comprends ici ce qu´on appelle gloire: le droit d´aimer sans mesure. Il n´y a qu´un seul amour dans ce monde. Étreindre un corps de femme, c´est aussi retenir contre soi cette joie étrange qui descend du ciel vers la mer.

Albert Camus, in “Noces à Tipasa”

Na fotografia María Casares, atriz, uma grande paixão da sua vida.

segunda-feira, outubro 21

PABLO NERUDA

                                                            "E numa certa manhã tudo ardia,
numa manhã o fogo
saltava da terra
devorando os seres,
e ardia,
havia pólvora,
e sangue.
Bandidos com aviões e mouros,
bandidos com anéis nos dedos e duquesas,
bandidos com frades negros e suas bendições
vinham pelo céu matar crianças,
e o sangue delas escorria pelas ruas
sem ruído algum, corria como sangue de criança.

Chacais que seriam alvo de desprezo de outros chacais,
pedras que o cardo seco morderia
e cuspiria, víboras que as próprias víboras abominariam!

Face a face com vocês vi o sangue
da Espanha erguer-se
para afogá-los em uma onda
de orgulho e de facas!

Generais
traidores:
vejam minha casa morta,
vejam a Espanha alquebrada:
de todas as casas sai um metal
que arde,
em vez de flores,
mas de cada oco da Espanha
a Espanha emerge
e de cada criança morta sai um rifle
com olhos,
e de cada crime nascem balas
que um dia encontrarão o caminho
do coração de vocês.

E vocês me perguntarão:
por que os poemas dele
não falam de sonhos, e de folhas
e dos grandes vulcões de sua terra natal.

Venham e vejam o sangue nas ruas,
venham e vejamo sangue nas ruas,
venham e vejam o sangue nas ruas!"

Pablo Neruda

(Excerto do poema “Explico Algunas cosas” de Pablo Neruda, citado por Harold Pinter na Conferência de atribuição do Prémio Nobel da Literatura.)
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Explico algunas cosas

Preguntaréis: ¿Y dónde están las lilas?
¿Y la metafísica cubierta de amapolas?
¿Y la lluvia que a menudo golpeaba
sus palabras llenándolas
de agujeros y pájaros?

Os voy a contar todo lo que me pasa.
Yo vivía en un barrio
de Madrid, con campanas,
con relojes, con árboles.
Desde allí se veía
el rostro seco de Castilla
como un océano de cuero.
Mi casa era llamada
la casa de las flores, porque por todas partes
estallaban geranios: era
una bella casa
con perros y chiquillos.

Raúl, ¿te acuerdas?
¿Te acuerdas, Rafael?
Federico, ¿te acuerdas
debajo de la tierra,
te acuerdas de mi casa con balcones en donde
la luz de junio ahogaba flores en tu boca?
¡Hermano, hermano!

Todo
eran grandes voces, sal de mercaderías,
aglomeraciones de pan palpitante,
mercados de mi barrio de Argüelles con su estatua
como un tintero pálido entre las merluzas:
el aceite llegaba a las cucharas,
un profundo latido
de pies y manos llenaba las calles,
metros, litros, esencia
aguda de la vida,
pescados hacinados,
contextura de techos con sol frío en el cual
la flecha se fatiga,
delirante marfil fino de las patatas,
tomates repetidos hasta el mar.

Y una mañana todo estaba ardiendo
y una mañana las hogueras
salían de la tierra
devorando seres,
y desde entonces fuego,
pólvora desde entonces, y desde entonces
sangre.
Bandidos con aviones y con moros,
bandidos con sortijas y duquesas,
bandidos con frailes negros bendiciendo
venían por el cielo a matar niños,
y por las calles la sangre de los niños
corría simplemente, como sangre de niños.

¡Chacales que el chacal rechazaría,
piedras que el cardo seco mordería escupiendo,
víboras que las víboras odiarían!

¡Frente a vosotros he visto la sangre
de España levantarse
para ahogaros en una sola ola
de orgullo y de cuchillos!

Generales
traidores:
mirad mi casa muerta,
mirad España rota:
pero de cada casa muerta sale metal ardiendo
en vez de flores,
pero de cada hueco de España
sale España,
pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos,
pero de cada crimen nacen balas
que os hallarán un día el sitio
del corazón.

Preguntaréis: ¿por qué su poesía
no nos habla del sueño, de las hojas,
de los grandes volcanes de su país natal?

¡Venid a ver la sangre por las calles,
venid a verla sangre por las calles,
venid a ver la sangre por las calles!

Pablo Neruda
De España en el corazón

domingo, outubro 20

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (16)

Albert Camus era um apaixonado pelo futebol e só não foi praticante “a sério” por razões de saúde. Era guarda redes, ao que dizem, dos bons e a escolha do lugar tem uma comezinha razão de natureza económica. É que lhe permitia gastar menos as solas das botas que a avó inspeccionava, minuciosamente, da cada vez que chegava a casa.

C'est le football qui lui a laissé les meilleurs souvenirs. Il jouait comme gardien de but dans la cour du lycée, et aussi le dimanche dans l'équipe junior du RUA, le Racing Universitaire Algérois. Certes, il n'a jamais joué dans la grande équipe première du RUA, celles des frères Couard et de Faglin. Mais il a écrit sur le foot des pages savoureuses. Il a d'abord joué un an à l'Association Sportive de Montpensier à cause d'un " ami velu " qui avait voulu suivre une fille qui dansait mal. Alors Albert s'est inscrit au Racing Universitaire puisqu'on y jouait " scientifiquement ". Il a raconté des matches mémorables contre l'O.H.D., le club d'Hussein-Dey, où les avants essayaient de l'impressionner en lui montrant le cimetière tout proche; et contre Boufarik, où il avait un avant surnommé Pastèque qui le chargeait furieusement. " Le football, a dit Gabriel Conesa, c'était notre religion ". Et Camus d'ajouter : " Ce que je sais de plus sûr sur la morale des hommes, c'est au sport que je le dois, c'est au RUA que je l'ai appris ". Et encore dans " La Chute " : " Avec le théâtre, le stade est le seul endroit au monde où je me sens innocent ".

sábado, outubro 19

VINICIUS DE MORAIS - DIA DO CENTENÁRIO

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
 
Vinicius de Morais
 

POUPANÇA

Eu nasci no tempo da escassez, sou um “baby boomer”, ou seja, nascido no período imediatamente posterior à 2ª Grande Guerra.

Os meus pais eram camponeses remediados que "emigraram" para a cidade, logo após o casamento, em busca de uma vida melhor. O meu pai enveredou pelo comércio e no tempo da guerra acumulou riqueza que, à sua escala, permitiu que a família alcançasse um padrão de vida próprio da “classe média” da época.

Apercebi-me da existência do dinheiro por ver o meu pai fazer as contas da receita do dia. Eram muitas moedas que separava e juntava fazendo rolos em papel com quantias certas, escriturando, ao mesmo tempo, as importâncias que somava à mão.

Os rolos eram criteriosamente organizados e, depois de separada uma parte para as despesas da casa, depositados no Banco. Até à alta adolescência não me cabia qualquer parte desse bolo. Não havia mesada.

Os anos 40/50 do século passado foram uma época de uma espécie de “aforro forçado” e aprendi que o dinheiro era um bem sagrado e raro, destinado mais à poupança que ao consumo. Somente na alta adolescência, já em outra fase dos negócios da família, me foi permitido o acesso ao dinheiro. Acesso livre e sem restrições.

Curiosamente sempre me deram, em família, o privilégio desse acesso sem necessidade de qualquer controle, já que havia um contrato não escrito fundado na confiança. Nunca ninguém me ralhou por gastar de mais, nem se condoeu por gastar de menos.

O aforro assumiu, como contraparte à moderação do consumo por opção própria, a face mais importante da minha educação financeira.

Uma das questões centrais que se colocam às organizações de todas as naturezas, mesmo as que lidam com atividades do chamado não mercado (entre as quais as organizações que atuam na área social), é a autossustentabilidade.

Ainda antes da questão da poupança, mas em interligação com ela, surge a necessidade de cuidar de prover de forma criteriosa à cobertura dos encargos e dos riscos de toda e qualquer atividade ou negócio. Assume, de novo, uma importância central a questão do crédito, pela escassez e preço do mesmo, devolvendo à agenda dos gestores questões antigas, e que alguns julgavam obsoletas, como a do valor do capital próprio, a capacidade de gerar excedentes, ou lucros, para afetar a reservas, a solvabilidade, a confiança como valor de mercado, a solidariedade como valor humano do que alguns começam a apelidar de valores da economia social de mercado.

Os valores e princípios da economia social solidária, entre os quais avultam os da cooperação e da solidariedade, têm ganho “direito de cidade”, assomam nos discursos e preocupações dos economistas de referência, explodem em notoriedade com as intervenções públicas do Papa Francisco (de leitura obrigatória!), relativizando o valor do dinheiro e resgatando o valor do Homem.

Neste contexto de mudança, de contornos ainda mal definidos, a escassez associada à valorização do fator trabalho gera, como todos os especialistas sabem, uma revalorização da poupança associada à necessidade de cuidar cada vez com mais cuidado e atenção da autossustentabilidade.

Não sou capaz de dar conselhos de poupança mas tão-somente de sugerir um investimento mais forte, duradouro e estruturado na educação para um consumo criterioso e moderado, não só por imposição de critérios políticos de austeridade macro, com profundas implicações micro, mas, mais importante, por imperativos de uma filosofia de vida em sociedade orientada no combate ao desperdício e à plena utilização dos recursos disponíveis.

[Um testemunho para a revista digital do Montepio acerca do tema poupança no qual introduzo uma pequena correção pois podia dar a ideia que os meus pais emigraram para o estrangeiro e o que queria dizer é que "emigraram" para a cidade.]

quinta-feira, outubro 17

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (15)

Calígula. O gládio e o punhal.

“Creio que não me compreenderam bem anteontem quando ataquei o sacrificador com o maço com que ele ia matar a bezerra. No entanto era muito simples. Por uma vez, quis alterar a ordem das coisas – para ver, em suma. O que vi, é que nada mudou. Um pouco de espanto e de pavor nos espectadores. Quanto ao resto, o sol pôs-se à mesma hora. Concluí que era indiferente alterar a ordem das coisas.”
Mas por que motivo um dia o sol não nascerá a oeste?

*

Id. (Ptolémée). Mandei-o matar porque não havia razão para que ele fizesse um casaco mais belo que o meu. De facto não havia razão. Claro que também não havia razão para que o meu casaco fosse o mais belo. Mas ele não estava consciente disso e, visto que eu era o único a ver claro, é normal que obtivesse vantagens.

*
Dom Quixote e La Pallice.

La Pallice. – Um quarto de hora antes da minha morte, ainda estava com vida. Isso bastou para a minha glória. Mas essa glória é usurpada. A minha verdadeira filosofia é que um quarto de hora após a minha morte, já não estarei com vida.

Dom Quixote. – Sim. Combati moinhos de vento. Pois é profundamente indiferente combater moinhos de vento ou gigantes. A tal ponto indiferente que é fácil confundi-los. Tenho uma metafísica míope.

In Cadernos (Caderno nº 3 – Abril 1939/Fevereiro 1942) - Albert Camus – Edições Livros do Brasil

CARLOS DE OLIVEIRA

"Dêem-me a terra, mesmo poluída."
“Lá em baixo, onde as avenidas desaguam no rio (afluentes de alcatrão em pedra), os esgotos, o lixo pela água dentro. Mais adiante cemitérios de comboios, a ferrugem cor de chocolate espesso e uma tímida erva selvagem nos reiles carcomidos. O hidrovião, de súbito, poisado a meio da estrada marginal, com gaivotas sobre as asas desmanteladas. Outros dois suspensos nas breves rampas de lançamento, enquanto a aragem fluvial lhes desenha manchas de óxido na fuselagem, esquecidos à beira do cais cheio de lodo, limos, detritos encrostados na alvenaria, e apesar disso a água dum azul claríssimo. Por enquanto. Depois o extenso gradeamento do parque militar. Mais detritos. A manhã desolada. Centenas de viaturas podres, jipes, tanques, milhares de pneus abandonados, pirâmides negras de borracha, e (ao voltarmos) milhões de estrelas no firmamento. Dêem-me a terra, mesmo poluída. Este carbono pulmonar, onde contudo adeja ainda a nossa ração de oxigénio. Toda a tarde o calor turvo no horizonte, que nos lembrava o halo silencioso de um incêndio. Árvores em fogo. Três nuvens rectilíneas de céu a céu, três traços de fumo deixados pelos jactos de uma patrulha. Urbanização nas alturas. Como é que a tua beleza, Gelnaa, há-de sobreviver sem uma máscara antigás?”

Carlos de Oliveira, In “O Aprendiz de Feiticeiro”.  (Um ecologista "avant la lettre").

terça-feira, outubro 15

ALBERT CAMUS (CENTENÁRIO) - 14

Não se pode dizer que já não há piedade, não, deuses do céu, nós não cessámos de falar nela. Simplesmente, já não se absolve ninguém. Sobre a inocência morta pululam os juízes, os juízes de todas as raças, os de Cristo e os do Anticristo, que são, aliás, os mesmos, reconciliados no «desconforto».
Aquele que adere a uma lei não teme o julgamento que o reinstala numa ordem em que crê. Mas o maior dos tormentos humanos é ser julgado sem lei. Nós vivemos, porém, neste tormento.
Uma pessoa das minhas relações dividia os seres em três categorias: os que preferem não ter nada que esconder a serem obrigados a mentir, os que preferem mentir a não ter nada que esconder e, finalmente, os que amam ao mesmo tempo a mentira e o segredo. Deixo à sua escolha o compartimento que me convém.
Que importa, no fim de contas? As mentiras não conduzem finalmente à via da verdade? E as minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tenderão todas para o mesmo fim, não terão o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas se, nos dois casos, são significativas do que fui e do que sou?

Albert Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) in Cadernos de Camus

GOSTO

Gosto que me tomes
me abras
me invadas

Me voltes e tornes
me envolvas
e faças

Gosto que me entornes
me abraces
me lavres

Me beijes e bebas
me enlaces
e largues

Gosto que me voltes
me pegues
me mates

Me dês um nó
cego
e depois me desates


In Inquietude – Poesia Reunida

domingo, outubro 13

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (13)

Quando soube da atribuição do Prémio Nobel “pela sua importante obra literária, que foca com penetrante seriedade os problemas que se colocam nos nossos dias à consciência dos homens”, Albert Camus escreveu nos Cadernos: Prémio Nobel: estranho sentimento de desânimo e melancolia. Aos vinte anos, pobre e nu, conheci a verdadeira fama”.


Camus afirmou então que o Prémio deveria ter sido atribuido a André Malraux e manifestou dúvidas acerca da sua própria capacidade e força criadora que sempre o atormentaram. Após o anúncio da atribuição do Nobel sujeitou-se a ataques odiosos, que o não deixaram indiferente e comentou: “Assustado com aquilo que me acontece e que não pedi. E, para cúmulo, ataques tão infames que o coração se me aperta.”(Cadernos).

Mas Camus, segundo todos os testemunhos, não podia, nem queria, recusar o Prémio. Telefonou, de imediato, à mãe, que sempre viveu na Argélia, como que a agradecer à sua origem a honra que lhe tinha batido à porta. Escreveu a Jean Grenier, o seu professor e mentor intelectual : “(…) quando recebi a notícia, o meu primeiro pensamento foi, depois de minha mãe, dirigido ao senhor. Sem o senhor, sem essa mão efectuosa que estendeu à criança pobre que eu era, sem a sua instrução e o seu exemplo nada disto tinha acontecido.” (citado a partir de Roger Quilliot).

René Char, um amigo de todas as horas, não cabia em si de contente e manifesta esse contentamento de várias formas incluindo um artigo publicado, logo em 26 de Outubro de 1957, no Figaro littéraire, intitulado “Je veux parler d’ un ami”.

No ínicio de Dezembro de 1957 Camus partiu com a mulher, Francine, para Estocolmo e, em todas as suas aparições em público, tinha a consciência que devia estar preparado para ser atacado a propósito da sua discrição a respeito do conflicto na Argélia que estava no auge.

Albert Camus , a 10 de Dezembro de 1957, recebeu das mãos do Rei Gustavo VI da Suécia o diploma e, no banquete que se seguiu, proferiu o seu discurso de agradecimento. Logo num dos dias seguintes escreveu a Jean Grenier descrevendo, de forma sintética, o que sentia: “A corrida acaba, o touro está morto, ou quase.

Albert Camus – discurso de 10 de Dezembro de 1957

Dircurso pronunciado, segundo a tradição, na Câmara Municipal de Estocolmo, no fim do banquete que encerrava as cerimónias da atribuição dos Prémios Nobel. (Versão integral em francês.)

Alguns excertos:

Je ne puis vivre personnellement sans mon art. Mais je n'ai jamais placé cet art au-dessus de tout. S'il m'est nécessaire au contraire, c'est qu'il ne se sépare de personne et me permet de vivre, tel que je suis, au niveau de tous. L'art n'est pas à mes yeux une réjouissance solitaire. Il est un moyen d'émouvoir le plus grand nombre d'hommes en leur offrant une image privilégiée des souffrances et des joies communes.
(...)
C'est pourquoi les vrais artistes ne méprisent rien ; ils s'obligent à comprendre au lieu de juger. Et s'ils ont un parti à prendre en ce monde ce ne peut être que celui d'une société où, selon le grand mot de Nietzsche, ne règnera plus le juge, mais le créateur, qu'il soit travailleur ou intellectuel.

(...) l'écrivain peut retrouver le sentiment d'une communauté vivante qui le justifiera, à la seule condition qu'il accepte, autant qu'il peut, les deux charges qui font la grandeur de son métier : le service de la vérité et celui de la liberté. Puisque sa vocation est de réunir le plus grand nombre d'hommes possible, elle ne peut s'accommoder du mensonge et de la servitude qui, là où ils règnent, font proliférer les solitudes. Quelles que soient nos infirmités personnelles, la noblesse de notre métier s'enracinera toujours dans deux engagements difficiles à maintenir : le refus de mentir sur ce que l'on sait et la résistance à l'oppression.
(...)
Ces hommes, nés au début de la première guerre mondiale, qui ont eu vingt ans au moment où s'installaient à la fois le pouvoir hitlérien et les premiers procès révolutionnaires, qui furent confrontés ensuite, pour parfaire leur éducation, à la guerre d'Espagne, à la deuxième guerre mondiale, à l'univers concentrationnaire, à l'Europe de la torture et des prisons, doivent aujourd'hui élever leurs fils et leurs œuvres dans un monde menacé de destruction nucléaire.
(...)
Chaque génération, sans doute, se croit vouée à refaire le monde. La mienne sait pourtant qu'elle ne le refera pas. Mais sa tâche est peut-être plus grande. Elle consiste à empêcher que le monde se défasse.
(...)
Je n'ai jamais pu renoncer à la lumière, au bonheur d'être, à la vie libre où j'ai grandi. Mais bien que cette nostalgie explique beaucoup de mes erreurs et de mes fautes, elle m'a aidé sans doute à mieux comprendre mon métier, elle m'aide encore à me tenir, aveuglément, auprès de tous ces hommes silencieux qui ne supportent, dans le monde, la vie qui leur est faite que par le souvenir ou le retour de brefs et libres bonheurs.

Ramené ainsi à ce que je suis réellement, à mes limites, à mes dettes, comme à ma foi difficile, je me sens plus libre de vous montrer pour finir, l'étendue et la générosité de la distinction que vous venez de m'accorder, plus libre de vous dire aussi que je voudrais la recevoir comme un hommage rendu à tous ceux qui, partageant le même combat, n'en ont reçu aucun privilège, mais ont connu au contraire malheur et persécution. Il me restera alors à vous en remercier, du fond du cœur, et à vous faire publiquement, en témoignage personnel de gratitude, la même et ancienne promesse de fidélité que chaque artiste vrai, chaque jour, se fait à lui-même, dans le silence.