segunda-feira, dezembro 5

Crónica de uma fidelidade (3)

Posted by Picasa Mural de Alcântara - Lisboa (entretanto destruído)
"Lembro-me de em determinado momento dessa madrugada de 25 de Novembro ter decidido sair do apartamento, no qual me tinha recolhido, vencido mas não convencido, ter rumado a casa, atravessando a cidade de ponta a ponta, de carro, apesar do estado de sítio que tinha sido, ou estava para ser decretado, com uma profunda angústia cravada no peito, fazendo todo o percurso sem ser incomodado por ninguém.
Dormi como um justo. Nessa noite tinha tomado a consciência difusa de que tudo o que pudesse fazer, daí em diante, seria somente um caminho para salvar as aparências de uma escolha passada sem aderência aos sentimentos e expectativas da maioria do povo português.
O vencedor havia sido o PS e o obreiro dessa vitória política da democracia representativa, em Portugal, foi Mário Soares. Como tenho dito sempre, não me arrependo das ideias, nem das acções que empreendi e nas quais participei, mas reconheço que a razão estava do outro lado."
(Texto integral no IR AO FUNDO E VOLTAR)

RENÉ CHAR

Posted by Picasa Primeiro de quatro posts acerca das últimas compras de livros estimulantes que não rimam com o comércio próprio da época natalícia. Nada de original para quem assume a célebre consigna de que estamos sempre, ao longo da nossa vida, a ler o mesmo livro. Exagero, ou talvez não!

René Char – “Le Marteau sans maître” – Gallimard – 2002 (segundo a edição de 1945, diferente da edição original de 1934). Esta é uma das primeiras obras de Char.
(1 de 4)

De encontro à evocação de Ernerto Sampaio, no Almocreve das Petas.

domingo, dezembro 4

"Caso Outreau" - Silêncio em Portugal

Posted by Picasa O “Caso Outreau” ocupou as primeiras páginas de toda a comunicação social francesa este fim-de-semana. Trata-se, para quem não saiba, de um caso de pedofilia altamente mediático, com cinco anos, e que chegou ao fim com a ilibação de todos os acusados. De facto, no passado dia 1 de Dezembro, os últimos 6 acusados foram ilibados.

Entretanto um deles suicidou-se e todos foram sujeitos a um “julgamento na praça pública” que não é difícil de imaginar para os portugueses.

O procurador-geral da República de Paris acaba por se deslocar ao tribunal para pedir desculpa. O Ministro da Justiça anunciou uma investigação, de alto a baixo, a todos os operadores judiciários envolvidos no processo. O primeiro-ministro francês vai receber, formalmente, todos os acusados no caso.

O “Le Monde” titulou no sábado, 3 de Dezembro passado, “Le fiasco d´Outreau impose une reforme de la justice pénale” – En debat Le role du juge d´instruction, la sanction des “erreurs grossières et manifestes”.

Em Portugal que eu tenha visto, ontem, sábado, nem o “Público”, nem o DN, faziam qualquer referência ao caso. Hoje, domingo, o “Público” nada. Talvez tenha havido, nos dias anteriores, alguma referência mas não vi nenhuma. Estranho fenómeno.

Quando em Portugal, desde há 3 anos, não se fala de outra coisa que não no caso “Casa Pia”, e não só, pois a pedofilia é o que “vende”, é, no mínimo, estranho que o epílogo do “Caso Outreau” não mereça uma atenção detalhada e aprofundada na comunicação social portuguesa. Explicações, precisam-se. Mas é, digamos, aterradora esta ausência de atenção e de informação. Ou será, no actual estado da justiça, tudo normal?

Vejam aqui um resumo do caso pelo lado do processo mediático:
Correcção: como A. Pais chamou a atenção, em comentário a este post, no "Público", de domingo passado, saíu um trabalho de Francisco Teixeira da Mota, acerca deste caso, intitulado "Derivas Judiciárias - I". Embora numa coluna de "especialidade", intitulada "Do Mundo da Justiça", é um trabalho razoavelmente detalhado e que promete continuar. Afinal o silêncio não é absoluto, mas quase.

SUSAN SONTAG

Posted by Picasa Susan Sontag

Do New York on Time

“Vale ler o artigo de David Rieff na revista do New York Times deste domingo sobre a morte da mãe dele, Susan Sontag. O título, Ilness as more than metaphor, a doença como mais do que metáfora, é glosa de doída ironia sobre o título de um dos livros mais lidos de Sontag, Ilness as metaphor, a doença como metáfora. Para quem perdeu a mãe, a doença e a morte são mais reais do que figuras de retórica. A verdade é que Susan Sontag não acreditava na morte - a dela, pelo menos.
Pra quem não sabe, ela foi uma das intelectuais mais influentes nos Estados Unidos e na Europa, nas últimas décadas. Em New York, era o centro em torno de quem o mundo intelectual e artístico girava.”

INTOLERÂNCIA

Posted by Picasa Intolerância de Inaky Ibeorlegui

Vasco Pulido Valente lança, hoje no “Público”, uma seta envenenada, contra Cavaco, certeira e clarividente.

Não seria capaz de ser mais assertivo. VPV retira ilações de uma frase de Cavaco, em entrevista à RTP (que não vi): “Anteontem, na RTP, Cavaco fez de repente um comentário que revela o homem”.

O comentário de Cavaco: “Duas pessoas (no caso ele próprio e Sócrates) têm (inevitavelmente) de concordar”.

O essencial da reflexão de VPV: “O fanatismo nunca falou por outras palavras e quem conserva um reflexo de independência e liberdade com certeza que as reconheceu pelo que elas são: a raiz da mais cega e absoluta intolerância.

Intolerância – é essa a palavra para caracterizar, no essencial, o dito cujo candidato e aqueles – que não sendo cegos ou ingénuos – o rodeiam. VPV, mortífero, conclui: “Quem quiser que escolha” Cavaco. Acrescento: mas depois não se queixem.

(Link para "O Público" pago, não disponível).

sábado, dezembro 3

O MEU TIO VENTURA

Posted by Picasa Fotografia que aponta o lugar de onde acabo de regressar

Neste breve ausência foi publicado no “Semanário Económico”, da passada sexta feira, o artigo com o título “O Meu Tio Ventura”.

Já tinha feito referência a que este artigo reproduz, parcialmente, o post intitulado “Reflexão Final”.

O artigo está ainda arquivado no IR AO FUNDO E VOLTAR.

quarta-feira, novembro 30

INTERLÚDIO

Posted by Picasa Fotografia de Bogdan Jarocki

Reproduzo a fotografia, inserida no post "Reflexão Final", a que se refere o artigo que deverá ser publicado na edição da próxima sexta feira do “Semanário Económico”. Volto sábado próximo.

O post pode ser visto, no seu formato original, aqui.

terça-feira, novembro 29

QUERIA

Posted by Picasa Imagem do New York on Time

Queria escrever num verso todos os versos
Uma resma de versos numa palavra singular
Uma antologia devia poder caber numa letra
Uma geração inteira de poetas num patamar

Queria fazer caber os gestos grandiloquentes
De um louco na cabeça de um homem vulgar
E o mundo andar aos solavancos para detrás
Dos montes onde nasce o rio e começa o mar

Lisboa, 5 de Abril de 2005

FERNANDO PESSOA

Posted by Picasa Fotografia de Hélder Gonçalves
MAGNIFICAT
Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida,
Quem tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma: será dia!

De Fernando Pessoa, Obras Completas:
Poesias de Álvaro de Campos, 1944
(7-11-1933)

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¿Cuándo es que pasará esta noche interna, el universo,
y yo, mi alma, tendré mi dia?
¿Cuándo es que despertaré de estar despierto?
No sé. El sol brilla alto,
Imposible de mirar.
Las estrellas pestañean frio,
Imposibles de contar.
El corazón pulsa ajeno,
Imposible de escuchar.
¿Cuándo es que pasará este drama sin teatro,
o este teatro sin drama,
y recorreré la casa?
¿Dónde?, ¿Cómo?, ¿Cuándo?
Gato que me mirás con ojos de vida,
que tenés allá en el fondo?
¡Es ese!, ¡Es ese!
Ese mandará como Josué parar el sol y yo despertaré,
Y entonces será de dia,
¡Sonreí, durmiendo, alma mia!

A Luta dos Sindicatos de Professores

Posted by Picasa Os sindicatos em geral e os professores, em particular, são hoje uma poderosa força conservadora. Ao contrário do que seria de esperar estão sempre contra as medidas do governo que apontam no sentido da melhoria da qualidade da educação em Portugal.

Toda a gente reclama, e com razão, que os professores devem ser colocados numa escola e aí permanecer durante um período de tempo considerável por razões óbvias e evidentes. Os problemas individuais que esta medida acarretará, para alguns professores, são infimamente menos gravosas do que a actual situação do “professor saltitante” de escola em escola todos os anos.

Simplifico a questão, como é óbvio, mas não é possível traçar um modelo de escola, de rede escolar, em suma, um sistema educativo à medida dos interesses particulares de um grupo estimável como é o dos professores.

Esta é só uma entre muitas questões que são alvo da contestação dos sindicatos de professores. Trata-se de moldar o sistema em prol de uma maior eficácia no combate ao insucessos e abandono escolares com medidas tão simples e elementares como alargar horários, garantir aulas de substituição, criar actividades não lectivas, garantir o serviço de uma refeição na escola, generalizar o ensino do inglês no 1º ciclo...

Todas as movimentações de contestação, tais como greves, boicotes e outras, se destinam a marcar posição contra uma política que, podendo ser contestável, como todas, tem a vantagem de comportar uma inestimável dimensão de bom senso, entendível pela sociedade.

Faltam, certamente, muitas outras medidas, em particular, no que respeita à qualificação dos conteúdos programáticos, metodológicos, humanos e materiais, ou seja, à promoção da qualidade.

Mas como me dizia, tempos atrás, um amigo sabedor da matéria em causa, a propósito das medidas encetadas na área da matemática, o problema é que uma parte significativa dos professores de matemática não sabe de matemática. É uma questão de ignorância pura e simples. Convenhamos que é uma tarefa ingrata desempenhar uma função para a qual se não tem as aptidões necessárias e suficientes.

Pegue-se no tema por este lado, o da qualidade, e saberemos o exacto estado da educação em Portugal.

Quem é quem ...

Posted by Picasa "Eu é que sou o Manuel Alegre"

Manuel João Vieira, apresentação da candidatura à presidência em Lisboa, 28-11-2005

segunda-feira, novembro 28

"Coragem na vida e talento nas obras ..."

Posted by Picasa “Gosto mais dos homens que tomam um partido do que das literaturas que não tomam partido. Coragem na vida e talento nas obras já não é nada mau. E, depois, o escritor só é comprometido quando quer. O seu mérito é o movimento. E se isso deve passar a ser uma lei, um ofício ou um terror, onde está então o mérito?

Parece que escrever hoje um poema sobre a Primavera é servir o capitalismo. Não sou poeta, mas fruiria sem rebuço uma semelhante obra se ela fosse bela. Serve-se o homem todo ou não se serve. E se o homem tem necessidade de pão e de justiça, e se é preciso fazer o necessário para satisfazer essa necessidade, não se deve esquecer que ele precisa também de beleza pura, que é o pão do seu coração. O resto não é sério.

Sim, eu desejá-los-ia menos comprometidos nas suas obras e um pouco mais na sua vida de todos os dias.”

Albert Camus

Caderno n.º 5 (Continuação) – 1948 – 1951. Tradução de António Ramos Rosa. Edição “Livros do Brasil”. (A partir de “Carnets II”, 1964, Éditions Gallimard).

Com o tempo o mandatário vira ... à direita


(admirável paciência de quem viu e ouviu o digníssimo dignitário do princípio ao fim. eu não fui capaz que se me atravessou uma azia mental tumultuosa e mudei de canal talvez para a bola ou para os anúncios. não que não tenha dado pela pose de confessionário mais do que de consultório e aquela descrição indescritível de quantos pacientes se lhe têm queixado dos males da nação. o digníssimo mandatário já foi do actual e é irmão do António das cartas de amor. dizem alguns que com as confissões de Filomena essas cartas são o que lhes dá o pão ázimo do natal … teria escrito acerca da prestação do sereníssimo algo de semelhante se tivesse a capacidade de sofrimento para assistir à abertura pública do celebro do neutro cirurgião deus me perdoe cheio de fé e ideias omissas para o bem da nação. Assim seja!)

Presidenciais: com o tempo o Messias vira besta.

Posted by Picasa Parece ser claro que se desenharam dois nacionalismos na disputa presidencial: um nacionalismo de direita, encarnado por Cavaco Silva, e um nacionalismo de esquerda, o “quadrado vazio” que Manuel Alegre tenta preencher.

Mário Soares, na verdade, o único verdadeiro patriota, com provas dadas, é esconjurado por aqueles que ele próprio defendeu, na primeira linha, no 25 de Novembro.

Falo com à-vontade pois, à época, estava do outro lado. É verdadeiramente vergonhoso o apagamento de Mário Soares da efeméride – mal amanhada – do 25 de Novembro de 1975. O que seria daqueles militares que se pavoneiam como heróis da vitória da democracia representativa – a chamada ala moderada – incluindo a esfinge que dá pelo nome de Ramalho Eanes – não fora o papel político desempenhado por Mário Soares.

Cavaco não desempenhou papel nenhum, em coisa nenhuma, verdadeiramente importante na história recente de Portugal. Governar 10 anos, com 1 milhão de contos a entrar no país, em cada dia, não é glória para ninguém. Sê-lo-ia se Portugal apresentasse, hoje, níveis de desenvolvimento socio-económico, no mínimo, semelhantes à vizinha Espanha cujo deficit das contas públicas anda ao nível dos 0%.
Alegre, além de poeta e deputado, sempre foi um ajudante de Mário Soares e nada mais.
Representa, nestas presidenciais, uma fracção do PS à qual se juntaram algumas personalidades e cidadãos de boa vontade.

O problema de Mário Soares é estar “entalado” entre dois nacionalismos, de sinais contrários, como no 25 de Novembro, estava “entalado” entre dois radicalismos de sinais opostos.

Soares, no fundo, é um internacionalista. Tem uma visão da Europa próxima do federalismo e uma visão do mundo que se opõe à luta entre todos os radicalismos, sejam de natureza económica, religiosa ou militar.

Os políticos paroquiais levam a melhor sobre os políticos universais. A imagem de um presidente messiânico – autoritário ou sonhador – que vende a panaceia da cura dos males da nação tem vantagens na conjuntura actual. A imagem de um velho político lutador pela justiça e liberdade tem a desvantagem de representar a realidade, pura e dura, dos males da nação arrostando com os malefícios dos efeitos imediatos das políticas destinadas a corrigi-los.

Soares é o candidato da situação. Todos os outros são candidatos da oposição. Irónico!
O problema é quando, mais tarde, passados, no máximo, dois anos todos se derem conta que afinal os males são os mesmos e o Messias, vencedor de hoje, amanhã, virou besta.

domingo, novembro 27

CÓRDOBA LEJANA Y SOLA

Posted by Picasa Ana Cristina Leite – S/T de la serie Sugar Cubes. 2003. [Acrílico, dibujo al carbón y resina sobre DM. 30 x 30 cm] – In Galeria ad hoc

(…)
Este céu passará e então
teu riso descerá dos montes pelos rios
até desaguar no nosso coração
(…)

Ruy Belo

CÓRDOBA LEJANA Y SOLA
"Aquele Grande Rio Eufrates"

Fernando Pessoa - nos 70 anos de sua morte

Posted by Picasa ACHO TÃO NATURAL QUE NÃO SE PENSE
Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas...
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente...
Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.

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Encuentro tan natural que no se piense
Que me pongo a reir a veces, solo,
No sé bien de qué, pero es de cualquier cosa
Que tenga que ver con que hay gente que piensa...
¿Qué pensará mi muro de mi sombra?
Pregúntome a veces esto hasta dar en mí
Por preguntarme cosas...
Y entonces me desagrado, y me incomodo
Como si diera en mí con un pie dormido...
¿Qué pensará esto de aquello?
Nada piensa nada.
¿Tendrá la tierra consciencia de las piedras y plantas que tiene?
Si ella la tuviera, que la tenga...
¿Qué me importa eso a mí?
Si yo pensara en esas cosas,
Dejaría de ver los árboles y las plantas
Y dejaría de ver la Tierra,
Para ver sólo mis pensamientos...
Entristecería y quedaría a oscuras.
Y así, sin pensar tengo la Tierra y el Cielo.

O Guardador De Rebanhos
Alberto Caeiro 13-03-1914

site de poesias coligidas de F E R N A N D O P E S S O A

(Nos 70 anos da morte de Pessoa - 29/11/1935-29/11/2005 - um poema de "O Guardador de Rebanhos", em edição bilingue português/castelhano, antes que me esqueça. Pensando em Galgata e em todos os falantes do espanhol).

Crónica de uma fidelidade (2)

Posted by Picasa Imagem daqui

Prosseguindo o percurso que explica a minha adesão à candidatura de Mário Soares remeto para a memória arquivada neste mesmo espaço. Aquando do 30º aniversário do 25 de Abril de 1974, o verdadeiro dia da libertação de Portugal e da vitória da democracia, relatei algumas facetas da minha participação pessoal nos acontecimentos.

Esse relato está disponível, no arquivo deste blogue, entre os dias 14 de Março e 28 de Abril de 2004. Ao contrário do que alguns poderão pensar é importante falar acerca da nossa memória pessoal embora, como sempre, se corram os riscos inerentes à tarefa.

(Continua)

sábado, novembro 26

GRAÇA MORAIS (2)

GIL VICENTE

Posted by Picasa Imagem daqui

Gil Vicente já foi (e é) uma paixão minha. Imaginem só! Pela mão do Dr. Emílio Campos Coroa participei como actor (e “faz tudo”), ainda no final do liceu, em muitas representações de peças de Mestre Gil.

Isto é um tema de cultura um pouquinho pesado assim do género daquela do Dr. Soares ter dito que era de toda a conveniência que o Presidente da República conhecesse os “Lusíadas”.

Todos aqueles que choramingam sobre o leite derramado da nossa falta de competitividade se fartaram de zurzir, mesmo através do silêncio, nas palavras de Soares. Se alguém se lembrasse de Gil Vicente cairia o Carmo e a Trindade. Já o disse, e repito, que é uma vergonha nacional não haver um teatro nacional (talvez o “Teatro Nacional”, que anda a fazer?...) que mantenha em cena, de forma permanente e continuada, o vasto e rico reportório de Gil Vicente.

Pensei fazer isso no INATEL mas não me deram tempo. Fiz até um esboço de projecto, que ficou no meu exclusivo conhecimento, acerca desse e de outros dois projectos que muito me entusiasmavam. Mas, bem vistas as coisas, à distância, como diria o povo, eram “pérolas a porcos”.

Pois hoje fui comprar os “Autos das Barcas!” O meu filho precisa de estudar o “Auto da Barca do Inferno”. Faz parte integrante do programa de português do 9º ano. E muito bem, acrescento eu.

Representei vezes sem conta, pelo “Círculo Cultural do Algarve”, “Os Autos das Barcas” que são três: “Auto da Barca do Inferno”, “Auto da Barca do Purgatório” e “Auto da Barca da Glória”. Desempenhava 3 personagens, um em cada uma das barcas, o que me dava uma trabalheira dos diabos, com a particularidade de nunca as cabeleiras me caberem na cabeça… Ficavam apertadas e faziam-me sentir desconfortável. Só aí descobri que tenho um perímetro de cabeça descomunal, mas o espectáculo tinha de continuar!

Pois fui ler, hoje, as “falas” em cada um dos meus personagens tendo em vista verificar quais os excertos que resistiram à usura do tempo e ainda se mantêm reconhecíveis por mim próprio na relação com a memória de um passado longínquo.

Na “Barca do Inferno” fazia de “Procurador”. Entrava carregado de livros e, deparando-se com o “Corregedor”, iniciava este diálogo, aliás muito actual …:

Corregedor: Ó senhor procurador!

Procurador: Beijo-vo-las mãos, Juiz!
Que diz este arrais? Que diz?

Diabo: Que sereis bom remador.
Entrai, bacharel doutor,
e ireis dando à bomba.

Procurador: E este barqueiro zomba?
Jogatais de zombador?
Essa gente que aí está,
para onde a levais?

Diabo: Para as penas infernais.

Procurador: Disse! Não vou eu para lá!
Outro navio está cá
muito melhor assombrado.

Diabo: Ora estais bem aviado!
Entrai, muitieramá!
(…)

(O Procurador foi parar ao Inferno …)


Na “Barca do Purgatório” fazia de Taful (Jogador), última personagem desta “Barca”, com diálogos muito mais interessantes dos quais alguns fragmentos me ficaram profundamente gravados na memória.

A cena inicia-se com a entrada do Taful.

Diabo: Ó meu sócio e meu amigo,
meu bem e meu cabedal!
Vós, irmão, ireis comigo,
que não temeste o perigo
da viagem infernal!

Taful: Eis aqui flux de um metal.

Diabo: Pois sabe que eu te ganhei.

Taful: Mostra se tens jogo tal.

Diabo: Baralha o jogo e partamos.

Taful: Paga, que eu não jogo em vão …
(…)


Na “Barca da Glória” desempenhava o papel de “Cardeal”, penúltimo a entrar em cena, trazido pela “Morte” e recordo uma “fala” extraordinária, demonstrativa do génio de Gil Vicente, em resposta à determinação do “Diabo” que se lhe dirige nestes termos:

Diabo: (…) E não quero declarar
mais coisas para dizer.
Determinai de embarcar,
e logo, sem dilatar,
que não tendes que arguir.
Sois perdido!
Ouvis aquel´ grão ruído
lá no lago dos leões?
Apurai bem o ouvido:
vós sereis ali comido
Pelos cães, pelos dragões.

Lição

Cardeal: Todo o homem que é nascido
de mulher tem breve a vida,
que quasi flos é saído,
e prestes logo abatido,
e sua alma perseguida.
E não pensamos,
quando na vida gozamos,
como dela nos partimos,
e como sombras passamos,
e com dores acabamos,
pois em dores já nascemos!
(…)

Texto reproduzido da 7ª edição de bolso da “Europa-América”, de “Os Autos das Barcas”, da responsabilidade de J. Tomaz Ferreira.

(Será um prazer representar, a sós, com o meu filho o “Auto da Barca do Inferno” – ele fará de “Diabo” e eu todas as restantes personagens.)

ABRIL EM LISBOA

Posted by Picasa Fotografia daqui

Pelas ruas ouve-se o silêncio estranho da espera
Ou será de quem desespera por esperar o dia
Que há-de vir de novo e lhes traga uma alegria

Pelas ruas rareia o movimento como um regresso
Ao passado que se não reconhece no presente
Os homens transformados na sua sombra ausente

Pelas ruas não se notam sinais do riso de mulheres
Nem os fumos de verão saídos dos seus decotes
E nada se parece com as cores dos dias felizes

Pelas ruas não vagueiam os cães nem as carroças
Puxadas a cavalo nem quase uma só bicicleta
E os cheiros são vagamente inodoros de vícios

Pelas ruas corre o vento e o sol por vezes abrasa
Nada faz dormir a natureza e levá-la para casa
É decerto impossível mesmo a golpes de espada

Pelas ruas caminho com pressa ou devagarinho
E olho com fervor aqueles que em certos dias
Me olham com atenção que em outros dias não

Pelas ruas ouve-se um silêncio estranho de espera
Do dia em que desfilem às arrecuas as fanfarras
Anunciando uma boa nova porque se desespera

Pelas ruas por vezes acontece a solidão das mãos
Estendidas mas nada de notícias de boas vindas
Nem braços de polícias sinaleiros nas esquinas

Pelas ruas secou o rio do formigueiro humano
Vejo filas de espera por um lugar no autocarro
Que é feito do teu coração cidade que eu amo?

Lisboa, 12 de Abril de 2005

GRANDEZA DO HOMEM

Posted by Picasa Fotografia de Hélder Gonçalves – RIA DE AVEIRO I

Somos a grande ilha do silêncio de deus
(…)

Ruy Belo

GRANDEZA DO HOMEM
"Aquele Grande Rio Eufrates"