segunda-feira, abril 17

Capitão Teófilo Bento

Foi o Capitão Teófilo Bento que me contactou no início de 1974. Não sei já através de quem chegou até mim. Talvez tenha sido depois da tentativa frustada do golpe das Caldas da Rainha, em 16 de Março. Falamos num carro estacionado próximo do 2º GCAM, no Campo Grande, onde cumpria o serviço militar como oficial miliciano. Ele queria saber se havia algum oficial miliciano de confiança no Quartel-General em Lisboa. Tratava-se de um ponto fraco na rede de oficiais que preparavam o golpe. Não havia ninguém que eu conhecesse. Mas, após este encontro, fiquei com a certeza acerca da inevitabilidade do golpe o que, até esse dia, era uma mera convicção. Estava, de facto, em marcha uma acção de envergadura para derrubar o regime. Desta vez era mesmo a sério. Mantive a maior descrição. Não falei a ninguém acerca desse encontro. Mas tomei as minhas providências. O ambiente era de medir forças dentro dos quartéis. Após o fracassado "Golpe das Caldas" todos os movimentos eram observados e o ar que se respirava estava povoado de ameaças.

As duas mortes do MES

A sessão final do I Congresso, calorosa e colorida, o símbolo do MES em pano de fundo, desenhado com os pés descalços dos militantes calcando a tinta vermelha, escondia a ruptura que todos assumimos com mais ou menos amargura. Pela minha parte não falei nem subi ao palco. O argumento da minha recente saída do serviço militar e a invocada necessidade de salvaguardar, por razões de segurança, alguns dirigentes da exposição pública, ajudaram a compor a argumentação que me "salvou" desse sacrifício que a minha timidez natural também favorecia. Tinha sido o nome mais votado para a Direcção o que pude verificar, pessoalmente, no momento do escrutínio. Mas a lógica colectivista já se tinha imposto, na prática, às afirmações individuais e todos a aceitamos sem questionar o sentido dos acontecimentos. Assisti a essa sessão de encerramento nos bastidores da Aula Magna, a sós, na companhia de Jorge Sampaio. Posso agora dizê-lo sem constrangimentos: sentia-me um vencedor derrotado e o meu coração estava destroçado. Foi a primeira morte do MES. Mas a vida tinha de continuar e não deixei de ser solidário, até ao fim, com todos os que julgaram, em boa fé, que o melhor caminho era aquele que a maioria tinha acabado de escolher. Essa solidariedade assumida, de forma colectiva e responsável, até ao fim, continua presente na convocatória para o jantar de extinção do MES, datada de 31 de Julho de 1981, na qual se afirmava: "Pretende-se assim extinguir o MES, política e públicamente, com a dignidade que a sua rica experiência merece, assegurando, ao mesmo tempo, um destino útil para o seu património." Os contactos deveriam ser efectuados para o subscritor destas notas e para A. Borges da Gama, dos quais se indicavam os contactos pessoais para recolha das necessárias inscrições prévias. A data apontada para a reunião, que deveria assumir a forma de "almoço ou jantar", era 4 ou 5 de Outubro de 1981. Acabou por ser jantar e realizou-se no dia 7 de outubro.
Na cópia da convocatória que tenho na minha posse, certamente por ter sido dirigida a um destinatário muito íntimo, escrevi, à mão: "Com mil lágrimas mas com um olhar seco que nestas coisas é preciso. Para tomares conhecimento." E assim, de forma digna e original, o MES morreu pela segunda vez. Bem hajam todos os que nele acreditaram.

domingo, abril 16

Do MES à "Nova Esquerda"

Nas reuniões e discussões prévias ao I Congresso lembro-me de ter, em diversos momentos, divagado a sós, angustiado pela percepção da "quadratura do círculo" que constituía, naquelas circunstâncias, conciliar a democracia representativa com a democracia directa, ou "poder popular". Uma síntese impossível. Era necessário ganhar tempo, mas a gestão do tempo não era o nosso forte, nem o "espírito da época" favorecia as esperas sábias e pacientes. As revoluções criam uma especial escala do tempo em que nos sentimos atraídos pela acção e a acção exige mais acção. A única saída possível para tornar o MES um Partido útil, na construção da democracia representativa e participativa, tinha-se esfumado com o desenlace daquele Congresso. Os que romperam prepararam pacientemente a sua integração no PS. Os que ficaram, por convicção ideológica ou devoção a amizades autênticas, forjadas nas lutas do passado, foram absorvidos pela voragem dos acontecimentos e foram saindo, em levas sucessivas, até à extinção do movimento no célebre jantar do Mercado do Povo. Após a extinção do MES alguns de nós dinamizaram, no início dos anos 80, a criação da "Nova Esquerda" em cuja declaração de princípios se preconizava o "desenvolvimento de um novo pensamento de esquerda que, assentando fundamentalmente na ideia do socialismo democrático, clarifique as suas fronteiras, encare os valores da liberdade individual, da solidariedade social e da iniciativa modernizadora (tanto ao nível económico como cultural), como elementos constitutivos essenciais." Defendia-se, num notável documento de Julho de 1984, que mantém plena actualidade, entre outros objectivos, o debate "aberto e inconformista que envolva todos os sectores interessados na modernização do país", o "reforço da democracia" e a "adesão à CEE". Esse documento preparado para a criação de uma abortada "Cooperativa Nova Esquerda" foi assumido por Afonso de Barros, Agostinho Roseta, Eduardo Ferro Rodrigues, Eduardo Graça, Eurico de Figueiredo, Jofre Justino, José Leitão, Júlio Dias, Margarida Marques, Sara Amâncio, Tereza de Sousa e Vitor Wengorovius. Em 21de Abril de 1986 a Comissão Coordenadora da "Nova Esquerda", constituída por Afonso de Barros, Agostinho Roseta, Eduardo Ferro Rodrigues, Eduardo Graça e Vitor Wengorovius anuncia que, após seis anos, a "atitude de solidariedade crítica externa ao PS se esgotou e deve ser superada por uma intervenção política concreta que, para a maioria dos membros desta comissão, pode e deve ser realizada, desde já, dentro do PS." Em consequência, no decurso do ano de 1986, todos os membros da Comissão da "Nova Esquerda", com excepção de Vitor Wengorovius, entre outros ex-activistas do MES, aderiram colectivamente ao PS.

sábado, abril 15

O I Congresso do MES - II

A ruptura política operada no 1º Congresso, e a consequente saída de Jorge Sampaio do nascente MES, não foi inesperada. Ela resultou de um longo processo de debate que durou semanas, ou meses, ao longo dos quais não se estabeleceram as pontes pessoais e políticas que poderiam ter inflectido aquele desenlace. Recebi, pela minha parte, abundantes avisos e missivas alertando para a gravidade da ruptura que se adivinhava no horizonte. Entreguei tempos atrás ao Pacheco Pereira os originais de duas cartas que me foram dirigidas, a título pessoal, que testemunham a consciência daquela situação. Uma foi-me enviada, do Porto, por José Galamba de Oliveira, datada de 7 de Novembro de 1974, afirmando: " (...) Parece-me que estamos numa encruzilhada. Não prevejo que futuro está traçado a curto e médio prazo para este país nem vejo claro o que deveremos e poderemos fazer para inflectir favoravelmente o desenrolar do processo histórico. Embora não pense que a luta de classes se desenrole nas cúpulas, gostava de saber o que está arquivado nas gavetas das secretárias de Ford, Brejnev e companhia. Cada vez mais o que se passa num país é menos independente do panorama internacional, e continuo sem ver claro qual o projecto do PCP cá para o burgo lusitano." E afirma a propósito do Congresso que se avizinhava: "Não estamos suficientemente fortes para depurações. Toda a flexibilidade e diplomacia são poucas para preservar o essencial". Numa longa carta, de 15 de Dezembro de 1974, que me enviou de Moçambique, Luís Salgado de Matos adverte: "...rezo aos meus santinhos para que não façam cisões - sobretudo a cisão na confusão. Corre-se mais o risco da grupuscularização sem dogma que da social democratização derrapante: não defendo a síntese da carne e do peixe (...) mas julgo que é um risco grave cortar o pano sem ver o tecido. Cisão, a haver - pelo que se pode desenhar - afastará o social democratismo (...) mas reduzirá o MES ao nível do grupinho necessariamente sectário mas sem um conjunto rígido de princípios (que costuma ser a safa destes grupinhos)." Sábias palavras...

sexta-feira, abril 14

O I Congresso do MES - I

O Movimento de Esquerda Socialista, forjado no período ante-25 de Abril, rompeu-se no seu 1º Congresso, realizado na Aula Magna, em Lisboa, a meio do mês de Dezembro de 1974. Nesse congresso estavam em confronto duas concepções do papel de um Partido da esquerda socialista no "processo revolucionário". Uma maioria, fortemente radicalizada, sentia-se legitimada, pelo curso dos acontecimentos, para impor, ao futuro MES, uma orientação política anti-capitalista que, em si mesmo, não tinha originalidade, não fora ser fortemente influenciada pela ideologia da democracia directa que, no caso do MES, tomaria a designação de Poder Popular. Ficava assim subalternizada a aceitação programática do modelo de democracia representativa vigente na maioria dos países da Europa ocidental. A minha participação nesse congresso foi marcada pela dilaceração de ter percebido que não seria possível, na prática, evitar uma ruptura entre o grupo liderados por Jorge Sampaio e o grupo majoritário dos delegados ao Congresso. Alguns dirigentes com responsabilidades, nos quais me incluía, tomamos, pelo silêncio, o partido da maioria, deixando que o coração vencesse a razão, abrindo, assim, a porta a uma deriva esquerdista com a qual, apesar de tudo, tempos mais tarde, tivemos a capacidade de cortar de forma original.

quinta-feira, abril 13

Uma base programática

Os subscritores do livro "Classes, Política Políticas de Classe" sublinham, na versão inicial da introdução, de Março de 74, a importância da intervenção do General Spínola e do seu livro "Portugal e o Futuro", "anunciando porventura uma maior acutilância da terceira força no xadrez político do País...", o que demonstra uma expectativa positiva face à hipótese de uma saída negociada para a crise do regime. Demarcam-se, por outro lado, cuidadosamente, do conteúdo integral dos textos que integram o livro afirmando que "...esta selecção não representa plena adesão ao que os textos a seguir apresentados exprimem, mas sim o reconhecimento da importância dos mesmos para a análise da realidade nacional." Ganham, dessa forma, tempo para um debate que estava por fazer. O movimento tinha sido surpreendido pela queda do regime, numa fase atrasada da sua estruturação orgânica, e não possuía um corpo coeso de ideias que lhe permitisse avançar para a criação de um partido político. Mas naquele livro estava esboçada a base programática possível do futuro MES que a primeira Declaração política formal, redigida posteriormente, plenamente confirma. Nos seus diversos capítulos se abordam, entre outras, as questões da luta sindical, operária e "da previdência", as "questões urbanas", "escolar e estudantil" e "questão da CDE", assim como a luta da "TAP de Julho 73". Mas para viabilizar a implantação popular de um partido socialista de esquerda, emergente do entusiasmo das lutas de base, o radicalismo teria que ser temperado pelo contributo doutrinário e pragmático dos quadros mais experientes e mais velhos. Essa simbiose, na qual alguns de nós guardavam esperanças, fracassou. A ruptura de Jorge Sampaio, e do grupo que viria a constituir o GIS, impediu que o MES disputasse o espaço político que o recém-criado Partido Socialista, de Mário Soares, parecia incapaz de preencher. Os meses que se seguiram ao 25 de Abril foram vividos num inevitável turbilhão de acontecimentos que ainda mais estimularam, em crescendo, as posições radicais inviabilizando todas as hipóteses de evitar a ruptura fatal no seio do projecto inicial do MES.

quarta-feira, abril 12

Uma confluência

A esquerda socialista, forjada no período ante-25 de Abril, na sua versão original, resulta de confluência de activistas de diversos movimentos sociais e cívicos. Neste processo foi determinante a experiência da CDE de 1969. Um livro publicado já depois do 25 de Abril de 74, mas preparado antes, retracta de forma bastante fiel os contornos ideológicos do movimento e identifica a origem dos dirigentes que nele confluíram. O livro em questão, editado pela Afrontamento, intitula-se "Classes, Política/Políticas de Classe", sendo a sua introdução subscrita, por ordem alfabética, pelos seguintes activistas do MES, em gestação: Agostinho Roseta, António Rosas, António Santos Júnior, Augusto Mateus, Edilberto Moço, Francisco Farrica, Jerónimo Franco, Jorge Sampaio, Manuel Lopes, Marcolino Abrantes, Paulo Barcia e Vitor Wengorovius. Na primeira "Declaração do Movimento de Esquerda Socialista (M.E.S.)", entretanto divulgada, explicitam-se os princípios fundadores do Movimento sob o lema: "A emancipação dos trabalhadores tem de ser obra dos próprios trabalhadores", abrangendo os campos "da luta de fábrica e sindical", "luta anti-colonial", "luta estudantil", "luta urbana" e, muito interessante, nos seus termos, luta "pelo aumento dos tempos livres" título sob o qual se aborda, de facto, a temática laboral.. Esta primeira Declaração do MES é subscrita, em nome de uma "Comissão Organizadora", por activistas identificados, desta vez, pela sua área de intervenção, com variantes em relação ao grupo anterior e já não por ordem alfabética: Manuel Lopes, António Rosas, António Santos Júnior (militantes sindicalistas); Rogério de Jesus, António Machado, Francisco Farrica, Edilberto Moço, Luís Filipe Fazendeiro, Luís Manuel Espadaneiro (militantes operários); Carlos Pratas e José Galamba de Oliveira (militantes estudantis); Víctor Wengorovius, Joaquim Mestre e José Manuel Galvão Teles (candidatos da CDE de Lisboa, em 1969); Eduardo Ferro Rodrigues (consultor sindical e ex-dirigente estudantil); Nuno Teotónio Pereira (militante cristão) e César Oliveira (historiador do movimento operário). Os subscritores destes documentos confirmam a confluência na designada esquerda socialista de uma nova vaga de dirigentes, não comunistas, dos movimentos operário, sindical, católico progressista e estudantil que se tinham destacado, desde o início dos anos 60, na contestação aberta à ditadura. Outros nomes não surgem por meras razões circunstanciais.

terça-feira, abril 11

Jorge Sampaio

Na primeira fase do MES, que decorreu até ao 1º Congresso, de Dezembro de 1974, a mais importante personalidade que integrou o processo da sua criação foi Jorge Sampaio que tinha emergido como o mais destacado dirigente estudantil da crise académica de 1961/62. Ele foi, desde essa data, uma referência cívica e política incontornável da esquerda portuguesa. Afirmou-se pela sua inteligência, cultura e capacidade de liderança. Jorge Sampaio era alguém que gerava confiança, racional e generoso, culto e emocional, organizado e consensual, um conjunto de características fora do comum na cultura meridional. É um facto que não integrou o MES, enquanto partido político formal, criado após o 1º Congresso. Jorge Sampaio, com um grupo de activistas, havia de constituir o GIS (Grupo de Intervenção Socialista), tendo abandonado o movimento logo no acto da sua institucionalização em Partido no decurso daquele Congresso fundador. Foi a primeira morte política do MES. Também Alberto Martins, o mais importante dirigente estudantil da crise académica de 1969, em Coimbra, aderiu ao MES e nele se manteve, após 1º Congresso, tal como um conjunto alargado de dirigentes e ex-dirigentes estudantis que tinham assumido papéis relevantes em todas as crises académicas, a partir do início dos anos 60. Entre eles não posso deixar de destacar Afonso de Barros, que sempre me apoiou, pessoalmente, nos momentos mais difíceis.

segunda-feira, abril 10

Vítor Wengorovius e Nuno Teotónio Pereira

No movimento católico progressista os activistas mais importantes, que integraram o MES, foram o Arquitecto Nuno Teotónio Pereira e o advogado Vítor Wengorovius. O primeiro foi, desde sempre, a principal referência cívica do movimento. Oriundo da geração de 50, profissional brilhante, com uma carreira consolidada, à época da criação do MES, Nuno Teotónio Pereira, desempenhou um papel de inegável importância na oposição à ditadura. Foi uma referência determinante da credibilização intelectual do movimento. Mas o mais importante activista do MES, oriundo do movimento católico progressista, foi Vítor Wengorovius. Tendo desempenhado um papel determinante no movimento estudantil, aquando da crise de 61/62, foi um brilhante orador e conduziu-se, em todas as circunstâncias, como um hábil, infatigável e maduro negociador, capaz de gerar consensos e fazer pontes em todas as direcções. Foi sempre prejudicado, nos planos pessoal e político, pelo seu excesso de talento, na formulação de propostas e soluções de consenso, e pelas manifestações do seu temperamento fulgurante. A estas duas personalidades devemos todos, os jovens quadros dos anos 60 e 70, uma imensidade de ensinamentos, gestos de desprendida solidariedade e humanidade que jamais poderiamos ter retribuído com a mesma intensidade e sentido de dádiva.

domingo, abril 9

António Santos Júnior

No movimento operário de base destacou-se, emergindo das lutas da TAP, que antecederam o 25 de Abril, António Santos Júnior. Ele liderou um movimento de novo tipo, associando as reivindicações tradicionais do operariado urbano com os novos desígnios da participação do movimento operário na acção política. Era um admirável homem de acção e de organização, persuasivo e generoso. Aliás Santos Júnior deveria ter discursado na grande manifestação, em Lisboa, do 1º de Maio de 1974, em representação do MES, mas foi boicotado em cima da hora (não sei ao certo o que se passou nos bastidores). Foi nessa manifestação que surgiu, pela primeira vez, em público a sigla MES inscrita num pano onde se podia ler "Movimento de Esquerda Socialista - em organização". Outros dois destacados activistas do movimento operário e sindical, com relevante participação no MES, foram Manuel Lopes (sindicalista que aderiu à CGTP) e o ideólogo das lutas da TAP, Jerónimo Franco. António Santos Júnior morreu no dia 27 de Janeiro de 2017. Segundo um camarada seu do movimento sindical de então, Jerónimo Franco, "sob a direcção de Santos Júnior as transformações atingiram tal amplitude que se iniciou uma nova era no sindicalismo português".

sábado, abril 8

MANUEL BAPTISTA - RIP

TAP

Estas duas senhoras da TAP são para mim um mistério mais a outra do que a CEO. O que as leva, além do vil metal, a tal protagonismo. Um dos objetivos já deve ter sido alcançado: desvalorizar a TAP perante investidores interessados. Vamos obervar qual o seu futuro percurso, em que companhias ...

Agostinho Roseta

No movimento operário e sindical o activista mais importante do MES foi Agostinho Roseta, já falecido. Ele associava juventude (ou talvez melhor, jovialidade), capacidade teórica e sentido prático de organização, era persuasivo, sedutor e desprendido do poder. Morreu num 9 de Maio, muitos anos depois do MES ter sido extinto, na plena pujança das suas qualidades humanas e intelectuais. A sua morte prematura impediu que tivesse, muito provavelmente, exercido uma influência marcante, a partir de 1995, no movimento sindical (UGT) e no Partido Socialista. Falar de pessoas é sempre muito delicado. Mas não é possível falar do 25 de Abril sem referir o papel daqueles que foram decisivos na nossa própria formação pessoal e na conformação do nosso percurso político. Sempre que hajam referências pessoais cingir-me-ei às personalidades que, no meu ponto de vista, foram as mais relevantes. Farei referência a um número restrito de pessoas pois, dessa forma, reduzo os riscos de ser injusto ou mal interpretado. Além do mais o MES foi uma escola de quadros políticos que ocuparam, e ainda ocupam, posições de grande destaque na vida pública portuguesa. Julgo que isso se deve ao facto, incontroverso, de se terem reunido no MES, na volúptia política dos anos 70, um escol de quadros de grande qualidade humana e intelectual que, discretamente, se orgulham do seu passado de empenhamento cívico e político.

sexta-feira, abril 7

Independentes e rebeldes

A nossa visão do papel da luta operária e do movimento sindical era muito diferente da perspectiva do PCP. Defendíamos a "auto organização" dos trabalhadores e a emancipação do movimento sindical fora do controle político partidário do PCP ou de qualquer outra formação partidária. A raiz da nossa concepção da organização operária e sindical bebia da tradição anarco-sindicalista e dos ideais auto-gestionários. As diferenças entre as nossas concepções da vida, da luta de emancipação dos trabalhadores e da organização do Estado, tornaria muito difícil qualquer tentação de aliança estratégica com o PCP e, por maioria de razão, tornava-nos imunes a ser absorvidos pela sua reconhecida vocação hegemónica. No MES confluíram quadros intelectuais e operários cujos destinos pessoais não eram compatíveis com a submissão a qualquer autoridade. Éramos (e somos!) ferozmente independentes e rebeldes. Por isso não admira que o MES tenha sido o único Partido, criado na aurora do 25 de Abril, que se extinguiu, por vontade da maioria dos seus militantes, com uma festa. Nem sequer admira que sejam raros os ex-activistas do MES que tenham, algum dia, aderido ao PCP, ou às teses neoconservadoras, ao contrário do que aconteceu com muitos ex-activistas dos movimentos políticos marxistas-leninistas que se reivindicavam do maoismo. Anti-autoritários e de esquerda toda a vida...

O PCP

Ao longo da década de 60 travaram-se duras lutas contra a ditadura. Nessas lutas surgiram novas ideias e novos protagonistas. O PCP tinha estratégia e táctica alicerçadas numa apreciável implantação popular, embora circunscrita às zonas operárias e rurais do sul. A sua organização clandestina era experimentada tendo mesmo, nas vésperas do 25 de Abril, criado a ARA, organização vocacionada para a luta armada. O MES nunca aderiu à luta armada embora chegasse a desfrutar de uma razoável implantação nas Forças Armadas. Mas participou em organizações de natureza frentista, vocacionadas para a luta política legal, animadas pelo PCP, a mais importante das quais foi, antes do 25 de Abril, o MDP/CDE e, no período pós-25 de Abril, a "coligação", contra o PCP, apoiante da candidatura presidencial de Otelo, em 1976. Participei, entre muitas outras iniciativas, com o Víctor Wengorovius, no início da década de 70, em diversas reuniões, numa casa da Av. Duque de Loulé, em Lisboa, com um alto dirigente do PCP, na clandestinidade, para tentar encontrar os caminhos de uma coordenação política entre o embrionário MES e o PCP. É preciso ter presente que naquela época ninguém pensava ou agia, na oposição política portuguesa, escapando à influência do PCP.

quinta-feira, abril 6

O MES (Movimento de Esquerda Socialista)

Em 1971 o país ainda vivia na esperança de uma solução política para a crise do Estado Novo. Sabíamos que o futuro não podia esperar muito mais. Mas não sabíamos quanto iria ainda durar a ditadura apesar das timoratas tentativas de abertura política de Marcelo Caetano. O MES (Movimento de Esquerda Socialista) nasceu da confluência de três movimentos que despontaram e ganharam corpo ao longo das décadas de 60 e 70. O movimento operário e sindical, o movimento católico progressista e o movimento estudantil. A cumplicidade entre um numeroso grupo de activistas que actuavam, com autonomia, contra o regime, nestes diversos movimentos sectoriais, foi sendo reconhecida por alguns de nós o que, a certa altura, desembocou na consciência de que estávamos perante um movimento político informal. Daí até à ideia da sua institucionalização foi um pequeno passo. Lembro sempre entre os esquecidos criadores do movimento o designer Robin Fior, um estrangeiro em Lisboa. Foi ele que desenhou o símbolo do MES o único, adoptado pelos partidos portugueses, com uma declarada feição feminil; Robin foi também o autor da linha gráfica do jornal "Esquerda Socialista" e concebeu um conjunto de cartazes surpreendentes pela sua ousada modernidade. Quantas horas passadas na sua companhia, e de sua mulher, desenhando uma imagem que ficou gravada, para sempre, na minha memória.

quarta-feira, abril 5

O tempo das ilusões

Depois de concluída a especialidade fiquei a dar instrução militar, o tempo todo, no 2º GCAM, no Campo Grande, em Lisboa. Passaram-me pelas mãos muitas centenas de jovens soldados recrutas aos quais industriei, o melhor que sabia, na área da administração militar. Foram sucessivas "semanas de campo" e incessantes sessões de instrução de tiro na Carregueira. Estas davam-me um prazer especial com excepção do "lançamento de granadas". Assim correu o tempo, desde meados de Abril de 1972, até ao 25 de Abril de 1974. A minha vida fazia-se entre o quartel e encontros de conspiração com os amigos e activistas que haveriam de confluir no MES (Movimento de Esquerda Socialista). Tinha a cabeça povoada de todas as ilusões que resultavam das leituras libertárias e marxistas, liberais e heróicas, sonhadoras e utópicas de Huxley, Camus, Gramsci, Luckac, Lenin, Marx, Rosa Luxemburgo, Mao, José Gomes Ferreira, Aquilino, António José Saraiva... As ideias da democracia directa, das comunas, da plena participação popular, tinham-se sobreposto à realidade, bem mais prosaica, da democracia representativa. Os ecos próximos da experiência do Maio de 68, em França, tinha dado asas à utopia de que o caminho para a felicidade se poderia encontrar na revolta contra o poder burguês. O tempo das ilusões...

terça-feira, abril 4

O serviço militar

A minha entrada para o serviço militar deu-se em 7 de Outubro de 1971. Passei à disponibilidade em 4 de Outubro de 1974. Cumpri 3 anos menos dois dia de serviço militar obrigatório. Apesar daquele incidente no dia 16 de Março a minha folha de serviços está impecávelmente limpa. Como todos os futuros oficiais milicianos, nessa época, fui incorporado em Mafra. Lembro-me, com nitidez, do primeiro dia do serviço militar. Fui no autocarro da carreira com partida de Lisboa. À chegada a inspecção médica, o corte do bigode, pois já tinha antes cortado a barba que, ao longo da vida de adulto, sempre me tem acompanhado. Seguiram-se três meses de dura instrução. Os meus companheiros mais próximos foram o José Pratas e Sousa e o Raúl Pinheiro Henriques. Na tropa faziam-se fortes amizades e cumpriam-se as regras estritas da instituição militar. Não me desgostou. No fim da instrução seguiram-se três meses de "especialidade" cumpridos na EPAM, Lumiar, Lisboa. Por ironia do destino nunca fui mobilizado. A conjugação da classificação no curso com a abundância de oficiais do ramo da administração militar fizeram com que não fosse mobilizado para as colónias. Fui desta forma poupado à decisão dramática que se colocava a muitos que, como eu, tinham assumido uma opção contra a guerra colonial: desertar ou embarcar. Pessoalmente, ainda bem que assim foi. Os meus pais foram poupados à angústia de ver um filho partir para longe de onde podia não mais regressar.

segunda-feira, abril 3

Intolerável absurdo

O golpe militar foi a consequência inevitável do predomínio dos ultraconservadores na governação. O Estado Novo, na sua fase terminal, esmagou a "ala liberal" na qual, muitos de nós, tínhamos depositado esperanças de mudança. De facto o grande acontecimento político do século XX português, depois da implantação da República, em 1910, teria sido a transição pacífica da ditadura para a democracia. Depois da morte política de Salazar o que terá passado pela mente de Marcelo Caetano? Porque não agiu? Por falta de coragem? Por falta de um verdadeira desígnio reformista? A razão de fundo para essa trágica omissão terá sido a política colonial que, desde o início dos anos 60, foi conduzida com o recurso à guerra, em desfavor da negociação com os movimentos de libertação. O regime foi conduzido a um beco sem saída. Os reformistas civis não foram capazes de forjar uma aliança consequente com os reformistas militares. Ainda hoje está por explicar, por outro lado, o papel da diplomacia das potências ocidentais nesta estranha situação de arrastamento de uma crise que se havia declarado, a partir de 1958, aquando da fracassada candidatura presidencial do General Humberto Delgado. As diplomacias ocidentais, que certamente estavam bem informadas dos acontecimentos em Portugal mantiveram, salvo raras e honrosas excepções, uma plácida e comprometedora inércia, que nem o cruel assassinato de Humberto Delgado desbloqueou. Será possível que os EUA e as potências europeias tenham sido apanhadas desprevenidas pelo 25 de Abril? Intolerável absurdo!

domingo, abril 2

DIOGO RIBEIRO

Um grande atleta que colocará Portugal na ribalta mundial mas que, como é habitual, salvo o futebol, não é suficientemente valorizado.

16 de Março - um mau prenúncio

O chamado "Golpe das Caldas" ocorreu a 16 de Março de 1974. Cumpria, como Oficial Miliciano, o serviço militar obrigatório no 2º Grupo de Companhias de Administração Militar (2º GCAM), onde hoje está instalada, no Campo Grande, em Lisboa, a "Universidade Lusófona". Depois de conhecidas as notícias do avanço da coluna militar, a partir das Caldas da Rainha, instalou-se uma grande agitação no quartel. Era sábado mas eu estava lá talvez porque estivesse de serviço. Finalmente surgia uma manifestação concreta de revolta militar mas eram notórias as dúvidas e incerteza acerca do destino do golpe. Pela manhã desse dia recebi ordem do Comandante para recolher ao quarto. Estive preso umas breves horas. Após o golpe ter fracassado, na manhã seguinte, mandaram-me sair. Fiquei aliviado. Iniciava-se, assim, a fase final do verdadeiro e decisivo golpe militar. Não o podíamos adivinhar mas o "Estado Novo" que, desde a ditadura militar, instaurada pelo golpe de 28 de Maio de 1926, iria perfazer 48 anos, estava a breves semanas do fim. Várias gerações de portugueses viveram toda, ou grande parte, das suas vidas sem conhecerem a cor da liberdade, pesando sobre as cabeças dos conspiradores a responsabilidade de pôr fim ao pesadelo.

sábado, abril 1

25 ABRIL - O PASSADO E O FUTURO

Pouco tempo na história de um país. Muito tempo para uma geração. As datas históricas ganham espessura com o passar do tempo. Mas os seus protagonistas não devem apresentar-se como sobreviventes de uma época em que fizeram história. Apesar de todas as vicissitudes, excessos e erros, o 25 de Abril foi o dia da reconquista da liberdade. A data é uma circunstância. Ela identifica o tempo dos acontecimentos. Este é o primeiro de 32 textos, fragmentos sem cronologia, notas pessoais escritas de memória, com referências a factos, alguns inéditos, que não têm pretensão de escrever história. No Portugal contemporâneo celebrar o 25 de Abril, deveria ser uma oportunidade para debater os grandes desígnios nacionais do presente e do futuro: a reforma da democracia representativa e o reforço da integração de Portugal na Europa. São estes os temas que há que debater a nível nacional. Não creio, mais uma vez, que esta celebração seja um contributo relevante para esse debate e para a consolidação e desenvolvimento das extraordinárias conquistas políticas e sociais dos últimos 49 anos. A tendência das celebrações é a de evocar o passado e Portugal precisa, com urgência, de repensar o futuro. Apesar da mentira espreitar, as mais das vezes, nas evocações do passado, realçando o lado mais favorável das nossas próprias memórias, escondendo erros, fracassos e injustiças próprias, que outro acontecimento foi mais importante, no Século XX português, do que o 25 de Abril? (Republicado com pequenas alterações)

sexta-feira, março 31

A GUERRA

A guerra é um fenómeno terrivel para os povos que nela se vêem envolvidos. No caso presente da guerra autêntica cujos opositores são a Ucrânia e a Federação Russa não me restam dúvidas acerca de qual dos lados me coloco: Ucrânia. Em breves palavras o que está em causa é um modelo de sociedade e, em últina análise, as velha questões da democracia e da liberdade. Parece simples. Não queria deixar de tomar de forma explicita partido neste pequeno canto de comentário.

quarta-feira, março 29

FRANCISCO

O Papa Francisco foi hoje internado por doença que, atenta a sua idade, aparenta ser grave. Num contexto em que algumas grandes potências estão a ser dirigidas por tresloucados e reina um ambiente de ódio e confrontação social aberta à beira da guerra, Francisco tem sido uma das poucas vozes com eco global que mantém bem alto os valores do humanismo e da paz e concórdia entre as nações. Que viva! "56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controlo dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respetivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a devorar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa perante aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta." In EXORTAÇÃO APOSTÓLICA - EVANGELII GAUDIUM DO PAPA FRANCISCO - 24 de novembro de 2013

segunda-feira, março 27

DIA MUNDIAL DO TEATRO

O dia 27 de março é consagrado como Dia Mundial do Teatro. Sempre assinalo esta data não por mera celebração de uma efeméride mas porque o teatro desempenhou um papel muito importante na minha vida. Na alta adolescência, por altura do meu 6ª ano do liceu, num tempo de trevas culturais, o meu irmão deve ter impulsionado a minha aproximação à atividade teatral. As relações com o Dr. Emílio Campos Coroa haviam sido estreitadas e daí deve ter resultado a minha integração no Grupo de Teatro do Circulo Cultural do Algarve - mais tarde "Teatro Lethes" - após ter já sido iniciado pelo Dr. Joaquim Magalhães nas atividades teatrais do liceu. Foi uma oportunidade de intensa sociabilização, aprendizagem da arte do teatro e exigente exercício de enfrentamento dos públicos. Muita entrada em cena, muito palco e fala e necessário conhecimento de dramaturgos de referência. Somente a minha saída da cidade de Faro para Lisboa me separou desta experiência que marcou a minha formação pessoal e cultural para sempre. Bem hajam aqueles que me impulsionaram e acompanharam nessa formalizável experiência teatral. (A fotografia mostra eu próprio - pelos meus vinte anos - numa cena de "Histórias para serem contadas", do dramaturgo argentino Osvaldo Dragun.)

terça-feira, março 21

DIA INTERNACIONAL DA POESIA

Quando escrevi os primeiros poemas com jeito de escrever tinha 33 anos e uma dor no corpo tal como Gullar quando em Maio de 1964 escreveu: “Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo a vida, que é cheia de crianças, de flores e mulheres, a vida, esse direito de estar no mundo, ter dois pés e mãos, uma cara e a fome de tudo, a esperança.” Hoje tenho muitos mais anos e escrevo na página do livro onde está impresso o poema Maio 1964 e digo que nada me demove de estar aqui e amar a vida mesmo quando ela se ri de mim.

segunda-feira, março 20

PRIMAVERA

Naquele tempo de primícias sobrevoei o mundo cão que devorava a carne do povo sem liberdade nem pão. As mulheres assomavam à janela de casas térreas sem água nem pia a ver o tempo passar. A cidade crescera para fora das muralhas antigas subindo até junto das hortas. As ruas novas eram rectilíneas e os largos mais largos já não para dar passagem às carroças puxadas a cavalos mas às novas máquinas puxadas a motores de explosão. A casa era pequena e a janela principal era alta demais para mim. Um dia cheguei sem ajuda ao cimo dela e avistei a rua. O meu desejo foi tomar o meu lugar nela, correr ao pó, alisar as paredes com as mãos e sentir o cheiro da cal branca. O calor do sol diluía os odores das flores pela primavera quando ainda chovia e o ar subia às narinas com o perfume da vida eterna. O tempo era de silêncios entrecortados por palavras que sublinhavam as penas do quotidiano, alegrias breves, máscaras e enigmas, vidas com amor, mortes prematuras, caminhar, caminhar … ao encontro do futuro que sempre existe mesmo no seio da noite escura com a morte na alma. Havia o arco-íris tracejando o céu ou a caixa de cartão, as meias enroladas ou os girinos na poça do espaldão, sorrisos largos e mãos quentes, passeios nos quintais e as árvores frondosas ensombrando os animais com os frutos escorrendo seiva e colhidos à mão. Sou essa atmosfera feita de terra e de gente. [17/1/2008]

domingo, março 19

RUI NABEIRO - RIP

A sacanagem da direita vai ter de homenagear um grande empresário socialista. Será que vai?

DIA DO PAI

Por aqueles dias da primavera de 1958 o meu pai perdeu o medo. Pegou-me pela mão e levou-me a ver a passagem por Faro de Humberto Delgado. Estávamos em plena campanha presidencial. Pela primeira vez, desde o imediato pós guerra, o poder de Salazar tremia. Delgado era destemido, até à beira da loucura, segundo os seus detractores. A sua candidatura forçou à desistência de Arlindo Vicente, candidato apoiado pelo Partido Comunista. Humberto Delgado fez-se ao caminho e arrastou multidões até às urnas. Eu também lá estive pela mão do meu pai. Seguimos de Faro para Olhão onde a recepção foi apoteótica. Nunca hei-de esquecer a mão quente de meu pai apertando a minha. Eu não sabia ainda o significado da palavra fascismo. Mais tarde Humberto Delgado foi assassinado pelos esbirros da PIDE. Os assassinos morreram na cama. É revoltante. Tenho medo de sentir esta sensação de revolta perante a tolerância da democracia. Mas a tolerância, afinal, nunca é excessiva. Aprendi isso com o meu pai. Era um comerciante honrado. Morreu no dia 9 de Janeiro de 1992.

sábado, março 18

A LEVEZA INSUSTEMTÁVEL DOS CORPOS

Como as palavras as imagens, que tomamos como nossas, são um bocado do imaginário que sobrevive à decapitação dos sonhos. Caminhamos por entre escombros. Quando minha mãe morreu nos meus braços não chorei. Só chorei quando, velando o seu corpo, me surgiu pela frente uma vizinha que frequentava a minha infância. O imaginário, naquele breve momento, tomou de assalto as minhas defesas que ruíram com estrondo. Percebi a leveza insustentável dos corpos depois de mortos e a infinita fraqueza que se esconde por detrás da nossa aparente normalidade.

1941, Março - dia 18

Neste dia Albert Camus escreveu, em plena 2ª Guerra Mundial, no seu Caderno: "Os montes por cima de Argel trasbordam de flores na primavera. O aroma a mel das flores derrama-se pelas ruazinhas. Enormes ciprestes negros deixam jorrar dos seus cumes reflexos de glicínias e de espinheiros cujo percurso se mantém dissimulado no interior. Um vento suave, o golfo imenso e plano. Um desejo forte e simples - e o absurdo de abandonar tudo isto." "Santa Cruz e a subida através dos pinheiros. O alargamento contínuo do golfo até ao alto de onde a vista se perde sobre uma imensidade. Indiferença - e eu também tenho as minhas peregrinações." Albert Camus, In Caderno n.º 3 - Abril de 1939/Fevereiro de 1942

quarta-feira, março 15

CRISES JUSTAPOSTAS

A Europa e o mundo vivem sob o espectro de uma crise financeira, energética e alimentar. Três choques, em simultâneo, que põem em risco o equilíbrio em que assenta o mundo do pós guerra. Os chamados países emergentes, com a China à cabeça, estão no centro da crise. Esses países passaram de sociedades miseráveis a sociedades de consumo. A China é como uma fogueira gigante que consome crescentes recursos que afluem de todo o mundo e, ao mesmo tempo, alimenta outras fogueiras que, de igual modo, consomem mais do que a humanidade é capaz de produzir. Entramos numa nova fase da vida das nações que exigirá mudanças profundas também nas estruturas das instituições internacionais. A questão: como gerir essas mudanças sem guerra? [Do meu diário - 7/5/2008]

A GUERRA E NÓS

“É sempre vão pretender quebrar um laço de solidariedade, apesar da estupidez e da crueldade dos outros. Não se pode dizer: “Ignoro-o”. Colabora-se ou combate-se. Nada é menos perdoável que a guerra e o apelo aos ódios nacionais. Mas uma vez surgida a guerra, é vão e cobarde querer afastar-se a pretexto de que se não é responsável. As torres de marfim acabaram. A benevolência é interdita. Por si própria e para os outros. Julgar um acontecimento é impossível e imoral se se está de fora. É no seio dessa absurda desgraça que se mantém o direito de a desprezar. A reacção de um indivíduo não tem qualquer importância. Pode servir para qualquer coisa mas nada a justifica. Pretender, por diletantismo, afastar-se e separar-se do seu ambiente, é dar prova da mais absurda das liberdades. Eis porque motivo era necessário que eu tentasse servir. E se não me quiserem, é igualmente necessário que eu aceite a posição do civil desprezado. Em ambos os casos estou no centro da guerra e tenho o direito de a julgar. De a julgar e de agir.” Albert Camus, in Caderno” n.º 3 (Abril de 1939/Fevereiro 1942). Para que se compreenda a problemática deste fragmento que muito me influenciou. Em Setembro de 1939, Camus está pronto para partir para a Grécia quando eclode a 2ª guerra mundial. Camus não quer escapar à guerra e apresenta-se como voluntário mas não é aceite devido à sua tuberculose.

segunda-feira, março 13

DEMOCRACIA E GUERRA

Em democracia os sacrifícios que se pedem aos cidadãos, para serem exequíveis, carecem de ser assumidos pela maioria como necessários e inevitáveis. Todos os que conhecem um pouco de história sabem que é assim. O Presidente Roosevelt, por exemplo, demorou anos a preparar a opinião pública americana antes de tomar a decisão, que sabia inevitável, de fazer os Estados Unidos entrar na Segunda Guerra Mundial. Aliás a história da liderança da América por Roosevelt, após 1932 até à sua morte, imagine-se (!) em 1945, é notável. As decisões que exigem sacrifícios aos povos, e a guerra em primeiro lugar, têm que ser assumidas colectivamente, serem concentradas no tempo, comunicadas de forma determinada e convincente, não perderem de vista a equidade e tocarem a corda sensível de um valor, um pouco em desuso, que se chama patriotismo.

domingo, março 12

FRANCISCO - 10 ANOS

204. Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição dos rendimentos, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos. In EXORTAÇÃO APOSTÓLICA - EVANGELII GAUDIUM DO PAPA FRANCISCO. 24 de novembro de 2013

IRREALIDADE

"Com o dobro da dimensão da Caixa Geral de Depósitos, o norte-americano Silicon Valley Bank fez soar as sirenes entre as startups. A portuguesa Indico Capital Partners admite que algumas suas participadas podem estar expostas ao SVB. E a Anchorage Digital assume uma exposição residual". In "Expresso". Todo o cuidado é pouco com a irrealidade dos trabalhos terrenos!

sábado, março 11

MANOBRAS

"Montenegro aconselhado a convidar Passos para n.º1 às europeias", In Expresso". Isto é tão básico que até faz impressão. "Exportar" Passos para Europa, evitar uma derrota nas europeias, logo inviabilizar a sucessão na liderança do PSD pós europeias em que Passos pode suceder a Montenegro...

sexta-feira, março 10

AFLIÇÃO

A hierarquia da igreja católica portuguesa entrou em negação. É curioso como a parte conservadora da nossa sociedade, e os seus representantes politicos, tentam através do silêncio, ou da fuga para a frente, aplacar os efeitos da condenação popular. Não há purificação possível. Em aflição esperam que o tempo faça o seu trabalho - o esquecimento.

terça-feira, março 7

8 MARÇO - DIA INTERNACIONAL DA MULHER

A terra e o corpo eram o mundo possível; a terra penetrava os poros, tisnava a pele, sujava as feridas; a terra cantava sob a correria dos pés descalços; a terra e os corpos entoavam as canções de embalar e de trabalho, da eira ao arado, do varejo ao rabisco; olhava as mulheres como se fossem rainhas que um dia haviam de dançar mil danças rodopiando nos braços do seu par; via-as sempre a dançar em seus sorrisos e suas gritas; as mulheres do tempo de as ver somente com uma admiração que me vinha de dentro. Não sabia nada delas mas via-as e amava-as como se fossem a terra que segurava as minhas raízes ao chão da vida. [4/2/2008]

segunda-feira, março 6

7 março 1808 - a família real chega ao Rio de Janeiro

Em 29 de Novembro de 1807, após um dia chuvoso, o príncipe d. João, d. Carlota, seus filhos, a rainha d. Maria I, vários outros parentes partiram em meio ao outono lisboeta. Do rio Tejo saíram as embarcações. Seguiram, além da família real, nobres, funcionários da Corte, ministros e políticos do Reino. Cerca de 15 mil pessoas. Os franceses ao chegarem à capital portuguesa em 30/11 ficaram a ver navios, frustrados com a não captura dos governantes lusos. Tudo o que era necessário para permanecer governando foi transportado. Insistia, entrementes, uma sensação dúbia: covardia ou esperteza? D. João estava angustiado. Seu país sendo atacado, o povo morrendo e ele seguindo viagem. Desconfortos psicológicos e físicos. Tormentas nos pensamentos e nos vagalhões dos mares que chegou a atrapalhar a travessia. Escassearam os víveres. Natal, Ano Novo e Dia de Reis se passaram. Então, a terra firme finalmente chegou. Em 22 de Janeiro de 1808 os barcos atracaram na antiga primeira capital do Brasil, a ensolarada Salvador. Porém, o abatido e cheio de dúvidas d. João após 54 dias no mar pisou o solo brasileiro apenas 24 hs depois. Foi o primeiro rei europeu a fazê-lo. Revisões nos navios, um pouco de descanso. Seguiram a viagem em 26 de Fevereiro. Dia 7 de Março a família real chegava ao destino final, a cidade do Rio de Janeiro.

quinta-feira, março 2

JOSÉ MANUEL GALVÃO TELES - RIP!

Foi ele que permitiu por sua iniciativa, e influência, criar as infraestruturas mínimas da aventura do MES no imediato pós 25 de abril. Foi um dos subscritores da primeira Declaração politica do MES (com Manuel Lopes, António Rosas, António Santos Júnior, Rogério de Jesus, António Machado, Francisco Farrica, Edilberto Moço, Luís Filipe Fazendeiro, Luís Manuel Espadaneiro, Carlos Pratas, José Galamba de Oliveira, Víctor Wengorovius, Joaquim Mestre, Eduardo Ferro Rodrigues, Nuno Teotónio Pereira e César Oliveira.) Rompeu com o MES no I Congresso, de dezembro de 74, subscrevendo um documento/moção, datado de 30 novembro de 1974, intitulado (imaginem!): “O MES E A ACTUAL FASE DA LUTA REVOLUCIONÁRIA – AS TAREFAS IMEDIATAS DO MOVIMENTO”, também subscrito por Armando Trigo e Abreu, César Oliveira, Francisco Soares, Joaquim Mestre, João Bénard da Costa, João Cravinho, Jorge Sampaio e Nuno Brederode Santos. Marcou presença no jantar de extinção do MES, realizado em 7 de outubro de 1981, surgindo na fotografia, de autoria de António Pais, com Francisco Soares, César de Oliveira e João Cravinho.

quarta-feira, março 1

terça-feira, fevereiro 28

"Como um lábio húmido"

“13 de Fevereiro de 36 - Eu peço às pessoas mais o que elas me podem dar. Vaidade de pretender o contrário. Mas que horror e que desesperança. E eu próprio talvez ..." ... "Procurar os contactos. Todos os contactos Se pretendo escrever a respeito dos homens, como afastar-me da paisagem? E se o céu ou a luz me atrai, esquecerei eu os olhos ou a voz daqueles que amo? Dão-me, de cada vez, os elementos de uma amizade, os fragmentos de uma emoção, nunca a emoção, nunca a amizade.” (...) “Março- Dia atravessado por nuvens e pelo sol. Um frio salpicado de amarelo. Eu devia fazer um caderno do tempo de cada dia. Aquele belo sol transparente de ontem. A baía trémula de luz – como um lábio húmido. E trabalhei todo o dia.” Albert Camus, in “Caderno” n.º 1 (Maio de 1935/Setembro de 1937) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

segunda-feira, fevereiro 27

VÍCTOR WENGOROVIUS

Víctor Wengorovius morreu a 27 de Fevereiro de 2005 mas viverá para sempre no coração daqueles que, verdadeiramente, o conheceram.

domingo, fevereiro 26

Fernando Tordo

Faz este domingo exactamente meio século que a canção Tourada saiu vencedora do Festival da Canção, que à data, em 1973, ainda se chamava Grande Prémio TV da Canção. Era a décima edição, havia 10 canções a concurso e a Tourada ganhou, para espanto de muitos e gáudio de tantos mais. Porque na metáfora tauromáquica, com letra do poeta José Carlos Ary dos Santos e música de Fernando Tordo (que ali a cantou) era impossível não ver retratada a ditadura. Depois da vitória, ainda houve tentativas de que não fosse à Eurovisão, mas acabou por ir e ficou em décimo lugar num total de 17, no Luxemburgo. (In Público)