Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,
Editado por Eduardo Graça
quinta-feira, dezembro 26
VISITAS DE NATAL
Da esquerda para a direita: o meu irmão Dimas de flor na lapela. O meu pai Dimas, vestido a rigor, de fato e gravata. Minha mãe, Tolentina, de fina camisa branca. A avó, Maria da Conceição, já doente, austera no seu vestido preto. A tia Lucília, uma beleza cinéfila, brilha à luz quente que envolve o Algarve de todas as estações. O mais pequeno, eu próprio, circunspecto, talvez, pela contrariedade do traje.
Fim da visitação de Natal. A mais comovente de todas é a visita à minha tia Lucília. Irmã mais nova de meu pai. Nascida em 1917. Os fragmentos de suas memórias sempre me surpreendem. A primeira mulher que me beijou chamada às pressas para ajudar no meu nascimento. Uma mulher linda que se desprende ao encontro dos outros. Nesta fotografia, na casa do encontro de hoje, somos os sobreviventes do grupo que mostra uma família feliz.
quarta-feira, dezembro 25
DIA DE NATAL
Dia de Natal. Chove no sul. A luz é a mesma. Quando rompe no céu nuvrado a luz do sul é diferente. O cheiro, mesmo na cidade, suspenso no ar é diferente. O ar que me rodeia o corpo é diferente. Somos uma unidade feita de terra e de gente que trazemos dentro. Toda a vida. Regresso e partida. Divisão e partilha. Memória e ação. Somos natureza. Natal.
terça-feira, dezembro 24
PAPA FRANCISCO - EXORTAÇÃO APOSTÓLICA - EVANGELII GAUDIUM
SOBRE O
ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO
ATUAL
24 de
novembro de 2013[Os meus sublinhados da leitura deste texto programático notável do Papa Francisco o qual, às primeiras impressões, a Hierarquia da Igreja Católica procura minimizar. Pareceu-me adequado à época natalícia divulgar alguns excertos que sublinhei de uma leitura integral e atenta. O texto está disponível na sitio da Conferência Episcopal Portuguesa.]
17. Aqui escolhi propor algumas diretrizes que possam
encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de
ardor e dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina da Constituição
dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros temas, de me deter amplamente
sobre as seguintes questões:
a) A reforma da Igreja em saída missionária.
b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que
evangeliza.
d) A homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos pobres.
f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais
para o compromisso missionário.
25. Não ignoro que hoje os
documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando
rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que aquilo que pretendo deixar
expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências
importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por usar os meios
necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária,
que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos
serve uma «simples administração» Constituamo-nos em «estado permanente de
missão”, em todas as regiões da Terra.
48.
Se a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há de chegar a todos,
sem exceção. Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho,
encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos,
mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são
desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc
14,14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem
claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários
privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é
sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um
vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais
sozinhos!
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica,
que podemos constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São
louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo,
no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia não podemos
esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia
a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O
medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos
chamados países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem
a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais
patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca
dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos,
quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico,
nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da
natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de
novas formas de um poder muitas vezes anónimo.
Não a uma economia da exclusão
53. Assim como o mandamento «não matar» põe um
limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos
dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia
mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo
não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é
exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando
há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no
jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais
fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população veem-se
excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspetivas, num beco sem saída.
O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode
usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que
aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenómeno de
exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na
própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são
«explorados», mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as
teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico,
favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e
inclusão social no mundo.
Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma
confiança vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos
mecanismos sacralizados do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos
continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os
outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma
globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer
ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem
nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de
outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de
perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não comprámos,
enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um
mero espetáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Não à nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está na relação
estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre
nós e sobre as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos
esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da
primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo
bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão no
fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um
objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que acomete as
finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e
sobretudo a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser
humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente,
os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz.
Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta
dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controlo
dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma
nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e
implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respetivos juros afastam os
países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real
poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma
evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e
do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a devorar tudo para
aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio
ambiente, fica indefesa perante aos interesses do mercado divinizado,
transformados em regra absoluta.
58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentarem este desafio com determinação e clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano.
182. Os ensinamentos da Igreja acerca de
situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e
podem ser objeto de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem
pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios sociais não se
fiquem em meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as
suas consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas
complexas situações hodiernas». Os Pastores, acolhendo as contribuições
das diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que
diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção
integral de cada ser humano. Já não se pode afirmar que a religião se deve
limitar ao âmbito privado e serve apenas para preparar as almas para o Céu.
Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta Terra, embora
estejam chamados à plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para
nosso usufruto» (1Tm 6,17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a
conversão cristã exige rever, «especialmente, tudo o que diz respeito à ordem
social e consecução do bem comum».
183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos
que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer
influência na vida social e nacional, sem nos preocuparmos com a saúde das
instituições da sociedade civil, sem nos pronunciarmos sobre os acontecimentos
que interessam aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo e
silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá?
Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem
individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo,
transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por
ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a
humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus
anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A Terra é a nossa
casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do
Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à
margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são
chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se
trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e construtivo,
orienta uma ação transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um sinal de
esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, «une o
próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades
eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
185. Em seguida, procurarei
concentrar-me sobre duas grandes questões que me parecem fundamentais,
neste momento da história. Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque considero que
irão determinar o futuro da humanidade. A primeira é a inclusão
social dos pobres; e a segunda, a questão da paz e do diálogo social.
2. A inclusão social dos pobres188 (…)
Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal
interpretada, a palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns atos
esporádicos de generosidade; supõe a criação de uma nova mentalidade que pense
em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos
bens por parte de alguns.
189. A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando encarnam, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros,
dos povos mais pobres da Terra, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos
direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos».
Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como justificação
para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos dos povos
mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso
recordar-se sempre de que o Planeta é de toda a humanidade e para toda a
humanidade, e que o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos
ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos
dignamente. É preciso repetir que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns
dos seus direitos, para poderem colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao
serviço dos outros». Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é
preciso alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou
de outras regiões do próprio país. Precisamos de crescer numa solidariedade que
«permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada
homem é chamado a desenvolver-se».
196. Às vezes, somos duros de coração e de mente,
esquecemo-nos, entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas possibilidades de
consumo e de distração que esta sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie de
alienação que nos afeta a todos, pois «alienada é a sociedade que, nas suas
formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a
realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana».
202. A necessidade de resolver as causas estruturais da
pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter
resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar de uma mazela que a
torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de
assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se
apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente
solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos
mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da
desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo,
problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.
205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de
entrar num autêntico diálogo que vise efetivamente sanar as raízes profundas e
não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma
sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o
bem comum. Temos de nos convencer de que a caridade «é o princípio não só das
microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas
também das macrorrelações como relacionamentos sociais, económicos, políticos».
Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham
verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável
que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas
perspetivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados de saúde
para todos os cidadãos. E porque não recorrerem a Deus pedindo-lhe que inspire
os seus planos? Estou convencido de que, a partir de uma abertura à
transcendência, poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e económica
que ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum
social.
221. Para avançar nesta construção de um povo em
paz, justiça e fraternidade, há quatro princípios relacionados com tensões
bipolares próprias de toda a realidade social. Derivam dos grandes
postulados da Doutrina Social da Igreja, que constituem o «primeiro e
fundamental parâmetro de referência para a interpretação e o exame dos
fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora propor estes quatro princípios
que orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a
construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto
comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro
caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro.
O tempo é superior ao espaço
222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite.
A plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece
pela frente. O «tempo», considerado em sentido amplo, faz referimento à
plenitude como expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é
expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os
cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do
horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai.
Daqui surge um primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o
tempo é superior ao espaço.
A unidade prevalece sobre o conflito
226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado;
deve ser aceite. Mas se ficamos encurralados nele, perdemos a
perspetiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada.
Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda
da realidade.
227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e
passam adiante como se nada fosse, lavam as mãos para poder continuar com a sua
vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o
horizonte, projetam nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações
e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas há uma terceira forma,
a mais adequada, de enfrentar o conflito: é aceitar suportar o conflito,
resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores».
228. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma
comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas
magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual e
consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário
postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social:
a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu
sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da
história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem
alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo
ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva
em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste.
A realidade é mais importante do que a ideia
231. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a
realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve
estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se
da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do
sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é
superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a
realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os
nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os
fundamentalismos anti-históricos, os éticos sem bondade, os intelectualismos
sem sabedoria.
232. A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço
da captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da
realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo,
classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada
pelo raciocínio. É preciso passar do nominalismo formal à objetividade
harmoniosa. Caso contrário, manipula-se a verdade, do mesmo modo que se
substitui a ginástica pela cosmética185. Há políticos – e também
líderes religiosos – que se interrogam por que motivo o povo não os compreende
nem segue, se as suas propostas são tão lógicas e claras. Possivelmente é
porque se instalaram no reino das puras ideias e reduziram a política ou a fé à
retórica; outros esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma
racionalidade alheia às pessoas.
234. Entre a globalização e a localização também
se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair
numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que
é local, que nos faz caminhar com os pés na terra. As duas coisas unidas
impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos
vivam num universalismo abstrato e globalizante, miméticos passageiros do carro
de apoio, admirando os fogos de artifício do mundo, que é de outros, com a boca
aberta e aplausos programados; o outro extremo é que se transformem num museu
folclórico de eremitas locais, condenados a repetir sempre as mesmas coisas,
incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que
Deus espalha fora das suas fronteiras.
240. O cuidado e a promoção do bem comum da sociedade
compete ao Estado. Este, com base nos princípios de subsidiariedade e
solidariedade e com um grande esforço de diálogo político e criação de
consensos, desempenha um papel fundamental – que não pode ser delegado – na
busca do desenvolvimento integral de todos. Este papel exige, nas
circunstâncias atuais, uma profunda humildade social.
segunda-feira, dezembro 23
ÂNCORAS
Chove em Lisboa. Antevéspera de Natal. Regresso à terra como sempre acontece todos os anos por estes dias. Encontros marcados sem palavras prévias no espaço de todas as pertenças. Os lugares e as gentes. As âncoras que me prendem à vida e me fazem respirar resistindo às adversidades. Nada a temer, tudo a ganhar. Como sempre. Natal!
domingo, dezembro 22
LEIS
Escrevendo na folha branca numa manhã de domingo - dia seguinte ao solstício de inverno. Sucedem-se os desastres à beira mar - pelo menos dois com o mesmo número de vitimas - (7) - e o mesmo número de sobreviventes (1). Em qualquer dos casos não ouvi falar na consabida "abertura de inquérito" o que, certamente, aconteceu pois é o que decorre da lei. No caso dos pequenos barcos que adornam e viram sob a força da "agitação marítima" (notável expressão!), não ouvi falar, desta vez, da falta de utilização de coletes pelos marinheiros (sejam profissionais ou amadores) o que é obrigatório por lei. Hoje que tanto se fala de leis, e das consequências da sua aplicação, ao mais alto nível do Estado, fala-se pouco das consequências fatais da sua não observância ao nível da sociedade. Uma questão de cultura. Natal!
sábado, dezembro 21
SOLSTÍCIO
Solstício de Inverno, hoje, dentro de minutos, o dia mais pequeno do ano, na marcha dos dias. Está em curso o processo de compras - as prendas possíveis e algumas das desejadas. Editei um livro artesanal como acontece de quando em vez - edição restrita de 50 exemplares. (na pequena nota biográfica publicada neste blogue pode saber-se do seu título!) Quase só para a família e alguns amigos. O melhor que posso ofertar aos outros que amo e estimo de mim próprio. Como sempre acontece arrisco ser injusto na distribuição mas ninguém é perfeito. Natal!
sexta-feira, dezembro 20
NATAL
Volto à página branca como se fora um caderno de apontamentos. Agora o Natal com seu cortejo de atos e memórias. Na minha primeira idade a chaminé oferecia-me uma sombrinha de chocolate. Imensa alegria no reluzente brilho único da prata colorida. Não tenho medo da redução do consumo a que as sociedades foram conduzidas pela avidez do capital financeiro. Por isso não se admirem os meus amigos pela sedução que sobre mim exercem as palavras do Papa Francisco. Tudo tem a sua conta e medida, nada podendo justificar a sacralização, ou banalização, da miséria e o silencioso, mas brutal, aumento das desigualdades. Não é uma questão de perfilhar uma posição ideológica ou defender uma barricada politica, mas simplesmente, a de não sacrificar, em qualquer circunstância, a defesa de princípios basilares em que assenta a dignidade humana: liberdade, igualdade, fraternidade. Ou se quiserem, como digo vezes sem conta no meu mister de todos os dias: cooperação e solidariedade! Natal!
CONTINUAR
Escrevo na tela branca como mais gosto no primeiro dia do 11º ano de existência deste blogue. Ainda não é desta vez que me resigno ao apagamento e ao silêncio. Por via deste canal de comunicação dirijo-me aos amigos que me acompanham e que, por essa forma, teimam em querer saber de mim. O fascínio desta empresa artesanal tem tudo a ver com o exercício da liberdade. A minha agenda circunscreve-se a esse desejo incontrolável de manter aberta uma janela quase intima através da qual, de forma libérrima, me pronuncio e comunico com os outros e o mundo, sem querer saber da dimensão dele. Vamos pois continuar! Obrigado!
quinta-feira, dezembro 19
10 ANOS
Fotografia de Hélder Gonçalves
Deixar uma marca
Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo
se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se
não fez no encontro com eles,
nada dever ao esquecimento que esvazia o sentido do perdão olhando o mundo e tomando a medida exacta da nossa pequenez,
atravessar a solidão, esse luxo dos ricos, como dizia Camus, usufruindo da luz que os nossos amantes derramam em nós porque por amor nos iluminam,
observar atentos o direito e o avesso, a luz e a sombra, a dor e a perda, a charrua e a levada de água pura, crer no destino e acreditar no futuro do homem,
louvar a Deus as mãos que nos pegam, e nunca deixam de nos pegar, mesmo depois de sucumbirem injustamente à desdita da sorte ou à lei da vida,
guardar o sangue frio perante o disparar da veia jugular ou da espingarda apontada à fronte do combatente irregular,
incensar o gesto ameno e contemporizador que se busca e surge isento no labirinto da carnificina populista,
ousar a abjecção da tirania, admirar a grandeza da abdicação e desejar a amizade das mulheres,
admirar a vista do mar azul frente à terra atapetada de flores de amendoeira em silêncio e paz.
(um programa para o absorto)
[Publicado em 19 de dezembro de 2003.]
quarta-feira, dezembro 18
1963. UMA SURPRESA DE FIM DE ANO
1963 - Equipa de Juniores do Farense
De pé (da esquerda para a direita): Vitor Passos, Cavaco, Eduardo Graça, Silvino Octávio Rosa Santos e Mariano; em baixo: Bastardinho, Leonardo e José Maria.
De pé (da esquerda para a direita): Vitor Passos, Cavaco, Eduardo Graça, Silvino Octávio Rosa Santos e Mariano; em baixo: Bastardinho, Leonardo e José Maria.
Uma boa surpresa de fim de ano que me foi enviada pelo Silvino via facebook. No campo da Alameda, em Faro, a equipa de júniores de basquetebol do Farense na qual eu alinhava com a camisola nº4. Guardei a camisola que é linda e está como nova. Esta é uma actividade de que guardo uma memória bem viva no centro da qual vivem os meus companheiros de equipa. E que dizer do campo da Alameda, assim como do público que, nos jogos com o Olhanense, em regra, se envolvia à pancada e eu, lá dentro, sem perceber nada. Afinal rivalidade exacerbada. A mim só me interessava o jogo pelo jogo. A equipa era mediana em qualidade de jogo mas, apesar de tudo, tinha centrímetros para a época. Eu acrescentava 1,83 cm mas o Silvino, se não erro, era o mais alto. O melhor, salvo melhor opinião, era o Bastardinho. Um abraço para todos.
[Publicado em 30 de dezembro de 2010.]
"homens sem ideal e sem grandeza."
Hoje reflectindo com um amigo falávamos de como terá sido possível que uma grande parte da intelectualidade de esquerda tenha apoiado a União Soviética a partir dos finais dos anos 20 e, em particular, ao longo dos anos 30.
Não sabiam nada dos crimes de Estaline? Já aqui assinalei que Camus abandonou o Partido comunista em 1937, no qual tinha ingressado em 34. Talvez Camus tenha entendido o que muitos intelectuais do seu tempo não quiseram ou não puderam entender.
É a essa luz que pode ser lida, entre muitas outras alusões, este fragmento dos seus “Cadernos”, escrito em Dezembro de 1937:
“A política e o destino dos homens são organizados por homens sem ideal e sem grandeza. Aqueles que têm uma grandeza neles próprios não se ocupam de política. Assim em todas as coisas. Mas trata-se agora de criar em si próprio um novo homem. Seria preciso que os homens de acção fossem também homens de ideal e poetas industriais. Trata-se de viver os próprios sonhos – de os pôr em movimento. É necessário não nos perdermos e não renunciarmos.”
Albert Camus
“Caderno” n.º 2 (Setembro de 1937/Abril de 1939) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).
(Acrescento que o ano de 1937 é designado como o “ ano terrível” por corresponder à fase mais sinistra do Grande Terror estalinista do qual descreverei, a seguir, alguns pormenores.)
[Publicado em 1 de agosto de 2005.]
FOTOGRAFIAS - HÉLDER GONÇALVES
TRÊS FOTOGRAFIAS DO HÉLDER GONÇALVES.
COM OS AGRADECIMENTOS À SUA DISPONIBILIDADE E DELICADEZA NA OFERTA DE TANTAS, E TÃO BELAS, FOTOGRAFIAS AO LONGO DO TEMPO DE EXISTÊNCIA DESTE BLOGUE.
LEMBREI-ME
Dane Shitagi USA, b.1972
Lembrei-me de passar umas horas a esperar
Que acontecesse
Algo de excepcional beleza que me fizesse
Voar
Outra vez à altura dos sonhos verdadeiros
Que se esquecem.
Lembrei-me de passar os dias a divagar
Pelas ruas
Da minha adolescência e deitar-me nelas
Devagar
Revendo os amigos que não vejo nunca
E no ar
Fluido que me habita agarrá-los pela mão
Beijar-lhes
As faces coloridas dar-lhes boas notícias.
Passar
A palavra um a um numa cadeia infinita
E recomeçar
Do princípio a reconhecê-los pelos nomes
Próprios
Que se esquecem na vertigem de conhecer
Tudo
Não conhecendo nada mais que os sonhos
Que nos habitam.
Lembrei-me da jovem negra e da paixão
Inconfessa
Que me acalorou as costas quando pousou
Os joelhos
Nelas e eu me encostei aos seus caracóis
Loiros.
Lembrei-me agora aqui e em toda a parte
De passar
Ao lado do tempo e esperar que o destino
Me trouxesse
Nas mãos o sussurro e o prazer dos corpos
Que não esquecem.
Lisboa, 8 de Outubro de 2004
Lembrei-me de passar umas horas a esperar
Que acontecesse
Algo de excepcional beleza que me fizesse
Voar
Outra vez à altura dos sonhos verdadeiros
Que se esquecem.
Lembrei-me de passar os dias a divagar
Pelas ruas
Da minha adolescência e deitar-me nelas
Devagar
Revendo os amigos que não vejo nunca
E no ar
Fluido que me habita agarrá-los pela mão
Beijar-lhes
As faces coloridas dar-lhes boas notícias.
Passar
A palavra um a um numa cadeia infinita
E recomeçar
Do princípio a reconhecê-los pelos nomes
Próprios
Que se esquecem na vertigem de conhecer
Tudo
Não conhecendo nada mais que os sonhos
Que nos habitam.
Lembrei-me da jovem negra e da paixão
Inconfessa
Que me acalorou as costas quando pousou
Os joelhos
Nelas e eu me encostei aos seus caracóis
Loiros.
Lembrei-me agora aqui e em toda a parte
De passar
Ao lado do tempo e esperar que o destino
Me trouxesse
Nas mãos o sussurro e o prazer dos corpos
Que não esquecem.
Lisboa, 8 de Outubro de 2004
[Publicado em 24 de maio de 2007.]
A CASA (LA CASA)
Fotografia de família. Hoje seria o dia de aniversário de meu pai.
A casa
(Glosa a um verso do poema “A Casa” de Gabriela Mistral)
Meu filho, a mesa já está posta,
Subi a rua toquei na soleira da porta.
Vi-me na janela em que, olhos espantados,
Observei o cair da neve naquela manhã
(ou seria tarde?)
Tornei ao largo da Feira do Carmo.
Vi-me no lugar dos cheiros acres e alados
Caminhei ao longo do cós da infância
(ou seria a liberdade?)
Gastei o tempo da minha vida olhando.
Vi-me, súbito, face a minha mãe:
Meu filho, a mesa já está posta,
(ou seria a saudade?)
Faro, 4 de Setembro de 2004
LA CASA
La mesas, hijo, está tendida,
en blancura quieta de nata,
y en cuatro muros azulea,
dando relumbres, la cerámica.
Ésta es la sal, éste el aceite
y al centro el Pan que casi habla.
Oro más lindo que oro del Pan
no está ni en fruta ni en retama,
y da su olor de espiga y horno
una dicha que nunca sacia.
Lo partimos, hijito, juntos,
con dedos puros y palma blanda,
y tú lo miras asombrado
de tierra negra que da flor blanca.
Baja la mano de comer,
que tu madre también la baja.
Los trigos, hijo, son del aire,
y son del sol y de la azada;
pero este Pan"'cara de Dios"*
no llega a mesas de las casas.
Y si otros niños no lo tienen,
mejor, mi hijo, no lo tocaras,
y no tomarlo mejor sería
con mano y mano avergonzadas.
Hijo, el Hambre, cara de mueca,
en remolino gira las parvas,
y se buscan y no se encuentra
nel pan y el Hambre corcobada.
Para que lo halle, si ahora entra,
el Pan dejemos hasta mañana;
el fuego ardiendo marque la puerta,
que el indio quechua nunca cerraba,
y miremos comer al Hambre,
para dormir con cuerpo y alma.
Gabriela Mistral
Nota* En Chile, el Pueblo llama al pan "cara de Dios".
[Publicado em 4 de setembro de 2005, dia de aniversário de meu pai.]
UMA PEQUENINA LUZ
Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una piccola... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não: brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.
25/9/1949
Jorge de Sena
Fidelidade [1958], In “Obras de Jorge de Sena – Antologia Poética”
25/9/1949
Jorge de Sena
Fidelidade [1958], In “Obras de Jorge de Sena – Antologia Poética”
Asa Editores, 2ª Edição, Junho, 2001
[Publicado em 21 de março de 2006.Um dos poemas maiores escritos na língua portuguesa.]
terça-feira, dezembro 17
O "ESPALDÃO"
O “ESPALDÃO”
Ao cimo da rua onde nasci, do outro lado da estrada da circunvalação, ficava o “Espaldão”. Era pequena a distância e foi lá que vi pela primeira vez na minha vida rãs a coaxar nas poças e foi lá que tomei a noção de espaço livre. Aprendi o medo de me encontrar perdido, de regressar a casa tarde demais, de ser repreendido, de me esquecer do tempo, ser apanhado numa emboscada ou correr os perigos que afinal não existiam. As redondezas do “Espaldão”, até aos meus oito anos, compreendiam toda a minha vida: a casa onde nasci, as ruas e os becos, os vizinhos, o estabelecimento e o armazém, o ganha-pão da família, o barbeiro, a feira do Carmo, a igreja, a carroça dos cães, os vendedores ambulantes, a rua de terra, o cheiro das estações e, lá mais acima, um lugar de mistérios. O “Espaldão”, ali ao lado da minha cidade, foi a minha primeira natureza antes de conhecer o que era a natureza. Tudo tão perto e tão longe na cidade que era um lugar limitado pelo meu olhar mas sem limites para a minha liberdade.
Ao cimo da rua onde nasci, do outro lado da estrada da circunvalação, ficava o “Espaldão”. Era pequena a distância e foi lá que vi pela primeira vez na minha vida rãs a coaxar nas poças e foi lá que tomei a noção de espaço livre. Aprendi o medo de me encontrar perdido, de regressar a casa tarde demais, de ser repreendido, de me esquecer do tempo, ser apanhado numa emboscada ou correr os perigos que afinal não existiam. As redondezas do “Espaldão”, até aos meus oito anos, compreendiam toda a minha vida: a casa onde nasci, as ruas e os becos, os vizinhos, o estabelecimento e o armazém, o ganha-pão da família, o barbeiro, a feira do Carmo, a igreja, a carroça dos cães, os vendedores ambulantes, a rua de terra, o cheiro das estações e, lá mais acima, um lugar de mistérios. O “Espaldão”, ali ao lado da minha cidade, foi a minha primeira natureza antes de conhecer o que era a natureza. Tudo tão perto e tão longe na cidade que era um lugar limitado pelo meu olhar mas sem limites para a minha liberdade.
[Publicado em 21 de abril de 2007. Um regresso à infância.]
OITO VERSOS PARA DEZASSEIS ANOS
SONJA
THOMSEN
Perdemos a proximidade, perdemos tudo
Quem nos aqueça a vontade, nos apeteça
Perdemos a luz do lume que nos alumia
Os sentidos despertos, os braços abertos
Se perdem nas curvas quentes do desejo
Nos perdemos se nos encontramos a sós
Naquela fresca voz quente que nos beija
E lembra afinal que não perdemos nada
Lisboa, 27 de Outubro de 2006
Perdemos a proximidade, perdemos tudo
Quem nos aqueça a vontade, nos apeteça
Perdemos a luz do lume que nos alumia
Os sentidos despertos, os braços abertos
Se perdem nas curvas quentes do desejo
Nos perdemos se nos encontramos a sós
Naquela fresca voz quente que nos beija
E lembra afinal que não perdemos nada
Lisboa, 27 de Outubro de 2006
[Publicado a 27 de outubro de 2006, pelo 16º aniversário de meu filho Manuel, que sempre me acompanha mesmo quando não me acompanha.]
segunda-feira, dezembro 16
O MEU PAI À JANELA DA CASA ONDE NASCI
O meu pai
Dimas à janela da casa onde nasci. Foi através dela que conheci um mundo banhado
pela claridade da luz do sul. Vivi debruçado nesta janela até aos oito anos.
Todo o tempo necessário para aprender a natureza.
Paredes brancas de
cal. Ladrilhos coloridos. Ruas de terra batida. Vistas de campos espraiados até
ao mar. Recantos floridos. Sombras de árvores de frutos. Mãos carinhosas. Telhas
de barro quente. O azul transparente do mar.
A família sobreviveu a todas
as adversidades próprias das épocas de guerra. Razão mais que suficiente para,
apesar da tirania, se sentir feliz. O meu pai era uma pessoa honrada e
ensinou-me a liberdade. Honra e liberdade. Foi essa a herança que dele recebi.
Fica-lhe bem a moldura daquela janela na qual aprendi a sonhar.
A casa permanece intacta e habitada e esta é uma
das suas duas janelas térreas. O encanto que lhe encontrava estendia-se à
vizinhança, aos corredores internos e às ruas circundantes.
[Um dos posts de
família, este de 12 de dezembro de 2006, através dos quais, sempre com um prazer
muito especial, me reconcilio com a memória.]
[Republicado em 10 de dezembro de 2012.]
O QUE EU QUERIA
Teresa Dias Coelho - CLOUDS 2000 [Oil on canvas 46 x 73 cm]
O que eu queria não posso pedir que escapa
À sem razão de não obter o que eu queria era
Neste dia assim aberto um olhar liso e claro
Na direcção do meu sorriso que espera longo.
Aguento, aguento-o, dia após dia, abro e fecho
A mão e agarro o que eu queria num momento
Mas no outro se me cava a ruga funda no meio
Da testa e se me enche o fundo da pele de suor.
O que eu queria não posso dizer senão talvez
A alguém que és tu que já o sabes bem melhor
Do que eu quando digo que não falo mais nisso.
O que eu queria me desses neste dia maduro
Era o teu sorriso vibrante fixado para sempre
Na vida para além de mim e do que eu queria.
22/9/81
(Um dos primeiros poemas que escrevi, com intencionalidade,
dedicado à G.)
dedicado à G.)
[Publicado a 3 de outubro de 2005 dedicado à G. (Guida.)]
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