quarta-feira, maio 21

O COELHINHO QUE NASCEU NUMA COUVE


Era uma vez um coelhinho que nasceu numa couve.
Como os pais do coelhinho nunca mais aparecessem a couve passou a cuidar dele como se do seu próprio filho se tratasse. Com ervinhas tenras que cresciam ao seu redor a couve foi criando o coelhinho dentro do seu seio até que este passou a procurar a sua própria alimentação. O coelhinho, que tinha um coração muito bondoso, retribuindo o afecto que a couve lhe dedicava considerava-a como sua verdadeira mãe. A mãe couve e o seu filhinho adoptivo foram vivendo muito felizes até que um dia uma praga de gafanhotos se abateu sobre aquelas terras. O coelhinho ao ver que aqueles insectos vorazes devoravam tudo o que era verde cobriu com o seu próprio corpo o corpo da mãe couve e assim conseguiu que os gafanhotos pouco dano lhe fizessem. Quando aqueles insectos daninhos levantaram voo os campos em volta passaram a ser um imenso deserto de areias e pedra. O pobre coelhinho, que sempre tinha vivido nas proximidades da sua mãe couve, teve de deslocar-se para muitos quilómetros de distância a fim de procurar comida.Mas já nada havia que se pudesse mastigar naquelas terras. Passaram muitos dias e o pobre coelhinho estava cada vez mais magro mais magro e faminto. Então a mãe couve disse-lhe assim: “Ouve meu filho: é a lei da vida que os velhos têm de dar o lugar aos novos, por isso só vejo uma solução: assim como tu viveste durante algum tempo no meu seio, passarei a ser eu agora a viver dentro do teu. Compreendes, meu filho, o que eu quero dizer?” O pobre coelhinho compreendeu e, embora com grande tristeza na alma não teve outro remédio, comeu a mãe.


Pedro Oom

IN “2 HISTÓRIAS PARA CRIANÇAS (EMANCIPADAS) QUE ILUSTRAM A DIFERENÇA ENTRE O AMOR FILIAL E O AMOR CONJUGAL” (Também magistralmente dito por Mário Viegas em Humores, 1980)


Actuação Escrita, edição & etc (1980)
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PEDRO OOM



Francisco Pedro dos Santos Oom do Vale nasceu em Santarém, a 24 de Junho de 1926.
Aos 2 anos acompanha a família para Setúbal e a partir dos 11 fixa-se em Lisboa. A aspiração do pai a que ingressasse no Colégio Militar nunca foi cumprida pois Pedro Oom se recusou.
Ingressa na Escola António Arroio onde conheceu Júlio Pomar, Vespeira, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas e outros que viriam a aderir ao surrealismo.
Aos 24 anos, órfão de pais, ingressa no INE, como funcionário público, onde segue uma carreira desconcertante de disciplina em relação ao período anterior da sua vida e um “interregno”, afastando-se de toda a actividade artística e literária ligada ao surrealismo.
Dedicou-se, entretanto, com entusiasmo, ao xadrez modalidade na qual se distinguiu.
Em 1962 dá por finda a sua vida de funcionário público, sai do INE, reingressando, dois anos passados, desta vez, no Ministério da Educação onde se dedicou a estudos de estatística sobre o ensino.
A sua obra literária, poética e panfletária, ficou dispersa sendo impregnada de uma ironia que vai dos tons mais violentos da contestação à mordacidade pessoal.
Morreu no dia 26 de Abril de 1974, pelas duas e trinta da tarde, no Restaurante “13” quando, com alguns amigos, festejava os acontecimentos que então se viviam apaixonadamente.
A sua obra foi publicada em dois volumes sob o título “Actuação Escrita” pelas Edições & etc de cujas “notas biográficas” se respigou o presente texto.

sexta-feira, maio 16

NORMALIDADE


Fotografia de Hélder Gonçalves

Um dia, muitos anos atrás, visitei a Holanda para contactos políticos estávamos por cá no pico dos conturbados anos da revolução - essa que nos restituiu a liberdade e a democracia. Lembro com muita clareza como me encantaram as cidades que visitei. Como admirei a liberdade dos holandeses habitarem suas casas de janela aberta para a rua, da música que soava dos prédios, tocada por músicos mestres na arte de tocar diversos instrumentos, do ar que me parecia breve, limpo e leve. Quando chegou o dia de visitar o parlamento em Haia senti a estranheza de uma normalidade que me pareceu anormal. A luta política havia sido absorvida pelas instituições da democracia representativa em toda a sua formalidade. Isto para dizer que a campanha para as eleições europeias de agora, pelas impressões que me chegam, me faz lembrar esse momento da minha breve experiência política holandesa. 

quinta-feira, maio 15

AÇORES


Ontem fui a Ponta Delgada em viagem profissional. Os Açores no seu conjunto e, em particular, a ilha de São Miguel são um paraíso na terra. Lugar de excepção, apesar dos elevados índices de pobreza e desigualdade. A maioria das estradas, ruas, caminhos,  são tão bem cuidados, seja quem for os cuida, que impressiona o mais distraído. Tudo em aberto para o progresso humano após tamanhos avanços na área das infraestruturas. Que se continue a proteger o ambiente quase no limite do fundamentalismo na crista da insularidade. Resiste a imprensa regional, modernizando-se como o Açoriano Oriental. Com esperança nos novos tempos que surgirão no horizonte útil das nossas vidas.              

quinta-feira, maio 8

DIAS DIFÍCEIS (3)

A vida é feita de pequenas coisas, pequenos nadas, a mão que adormece, uma pontada no corpo, uma falta inesperada, um desgosto por nada, uma doença por perto, tirar sangue para análise, ficar desapontado, engolir em seco, ver ganhar quem se gosta, ver perder quem se ama, uma fala inoportuna, o suor, uma lágrima, a fruta que apodrece, o pão que acaba, o sono que não vem, o dinheiro que falta, o imposto cresceu, o menino adormece, o homem do círculo (de leitores), a notícia mil vezes repetida, a dor nas costas, a cadeira predileta, o sofá que se disputa; no meio de tudo, dos pequenos nadas, uma disputa imensa, a casa grande onde cabem todos, a luta por vencer, uma opinião, a sociedade aberta, os pequenos nadas, a hora da grande decisão. Os pequenos nadas, sem medo, mudam de qualidade, fundem-se, resistem. Connosco tudo acontece, aos outros nada acontece. Na hora acertada todos os pequenos nadas fazem sentido. Conhecemos-mos pelo olhar dos outros. Desassossegam-se nossos passos. Unos e plurais, Sempre, Rendidos jamais.        

quarta-feira, maio 7

DIAS DIFÍCEIS (2)

Não é difícil dar-mo-nos conta de estar a viver em período pré eleitoral. Deve acontecer o mesmo com todos os cidadãos nos restantes 26 países da UE. As eleições banalizaram-se, uma coisa boa. As eleições institucionalizaram-se, uma coisa banal. Quatro décadas atrás, em Portugal, as eleições, livres e democráticas, foram uma novidade e lembro-me de meus pais terem vestido os melhores trajes no dia do voto, das longas filas de espera à porta das urnas, do ar feliz da multidão surpreendendo-se ao encarar no ato civico de votar a concretização de uma aspiração desaprendida. A maioria nunca havia votado senão uma meia dúzia, incluindo democratas, nos simulacros eleitorais do antigo regime. Vem esta prosa a propósito do que podemos designar da "fadiga eleitoral" do nosso tempo, revelada pelo crescente abstencionismo, perda de energia no ato da escolha, moda na descrença nos políticos ("são todos iguais!"), frustração de expectativas por promessas não cumpridas, o que se sabe ... que a maioria diz, ou pensa e não diz, mantendo, no entanto, uma sábia reserva de esperança em mudanças que abram caminho à reinvenção da democracia representativa. Não é tarefa fácil reinventar o sufrágio universal, essa criação extraordinária que permite dar voz, através do voto, a todos os cidadãos em liberdade e igualdade. É tempo de não perder de vista o essencial, o voto. O vazio criado pela omissão das escolhas abre as portas aos messias de todos os tempos.

segunda-feira, maio 5

DIAS DIFÍCEIS

Dias difíceis no vendaval de uma espécie de anúncio de armistício na austeridade que o tempo dirá da espessura e sustentabilidade. É o que se discute, ou seja, o significado politico, e as consequências para a comunidade nacional, do encerramento formal de um pequeno ciclo de assumpção de politicas de austeridade. O que me preocupa, mais que tudo, é a pulsão que paira acerca da bondade do debate público aberto, do confronto de ideias, que tende a constranger a construção e apresentação de alternativas. Como se as soluções para os problemas nacionais pudessem ser forjados a golpes de espada e não através do confronto aberto de ideias. Os sinais que nos chegam de fora não são animadores. Os populismos de cariz fascista, no caso da Europa, de forma surpreendente para os menos atentos, alargam a sua base de apoio e ameaçam ganhar eleições. Basta ver quer as ameaças de guerra na Ucrânia, com seu cortejo de manifestações populistas de direita, quer  as sondagens tendo em vista as eleições para o Parlamento Europeu, em França e Inglaterra, que apontam para a possível vitória de partidos de cariz fascista como sempre enfeitados com seus apelos ultra nacionalistas, xenófobos e racistas. Todo um ambiente de tempestade perfeita - politica, económica e financeira - prenúncio de guerra. Os democratas não podem debandar da sua luta, nem deixar aberto o campo às aventuras dos inimigos da liberdade. É o tempo de juntar forças.
                                                        Fotografia de Hélder Gonçalves

sábado, maio 3

25 de ABRIL- 25 de abril - 40 anos, 82



Fotografia de Hélder Gonçalves

Deixo que a palavra
tão incerta
teça

a liberdade a meio
deste Abril
para que a memória em Portugal não esqueça

tomando da flor
o cravo na matriz

teimando que a paixão
a tudo vença

dizendo não àquilo
que não quis

Maria Teresa Horta

Março 99

sexta-feira, maio 2

APENAS ISSO - 25 de abril - 40 anos, 81




Fotografia de Hélder Gonçalves


Dai-me ainda outro verão,
um verão do sul, redondo
lento maduro; um verão
de rolas frementes de cio,
de porosa alegria, de luz varrida
pela cal; dai-me
mais um verão rente à sombra
do pátio onde um rumor
cativo do poço sobe aos ramos;
um verão
limpo como o céu da boca;
mais dentro, mais fundo.



Ou por fim o silêncio.
Caindo a prumo.




Foz do Douro, 8/1/99

quinta-feira, maio 1

BREVE OLÊNCIA - 25 de abril - 40 anos, 80


Fotografia de Hélder Gonçalves

Estão cerrados todos os jardins,
onde asas voaram e se romperam as pedras.
Como esquecer as estrelas pousadas no verão
e a ciência exacta das flores claras de ar?
Estão cerrados todos os jardins,
queimados da fome, escarlates de treva.
Que tempo esvoaça, lacuna ou máscara,
pelo lento longo suor das noites?
Estão cerrados todos os jardins,
hoje ervas sem pálpebras, gritos sem boca.
Cativeiros de estátuas, deixaram que o tempo
durasse muito tempo, em campo entardecido.
Estão cerrados todos os jardins,
Em palavras vendidas que esconderam o mundo.
Os olhos ruídos soam a sombra
nos risos sem riso, nos corações calados.
Estão cerrados todos os jardins.
A pele cresce, digerimos o vazio.
As palavras articulam-se de ossos.
Mudada em terra, toda água morrerá.
Estão cerrados todos os jardins
e seus lazeres felinos, seus salmos de pé.
É a hora surda de cicatrizes sem beijos,
de muros soterrados e pulsos incolores.
Estão cerrados todos os jardins
e vão nascendo dólmenes e corujas de ouro.
Porque se agita ainda a cauda dos peixes,
buscando fogos extintos no termo dos rios?
Estão cerrados todos os jardins.
A nada a alma se assemelha.
O mar perdeu-se contra as paredes.
Vivemos do que não pudemos viver.
Estão cerrados todos os jardins,
são antigas as novidades do mundo,
obedecemos a ordens, a norte do futuro.
Mas ainda estamos nus. E respiraremos.

Orlando Neves

quarta-feira, abril 30

terça-feira, abril 29

DEPOIS - 25 de abril - 40 anos, 78



Fotografia de Hélder Gonçalves

Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração,
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.

Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas
e de poços e de portas entreabertas
e sonham no escuro
as coisas acabadas.

Manuel António Pina

segunda-feira, abril 28

ANIVERSÁRIO

        

                                         ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.]
 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
 
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
 
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),]
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!]
 
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...]
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,]
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –,]
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
 
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
 
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

15 de Outubro de 1929

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

domingo, abril 27

DA VOZ DAS COISAS - 25 de abril - 40 anos, 77

Fotografia de Hélder Gonçalves

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

Fiama Hasse Pais Brandão
.

sexta-feira, abril 25

O POETA - 25 de abril - 40 anos, 76



Fotografia de Hélder Gonçalves

Trabalha agora na importação e exportação. Importa
metáforas, exporta alegorias. Podia ser um trabalhador por conta própria,
um desses que preenche cadernos de folha azul com números
de deve e haver. De facto, o que deve são palavras; e o que tem
é esse vazio de frases que lhe acontece quando se encosta
ao vidro, no inverno, e a chuva cai do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol e exportar as nuvens. Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas, de certo modo, a sua
prática confunde-se com a de um escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que passa a caminho da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu; e fixa, na dureza da noite,
o bater de asas, o azul, a sábia interrupção da morte.

FOI BONITA A FESTA, PÁ