sábado, fevereiro 12

"Chamo-lhe desespero"


“Caminhamos entre os plátanos do parque. Inesperadamente,
mas da maneira habitual, insidiosa, começo a sentir o desespero
que me provoca a presença das mulheres amadas.
(Emanação, respiração, neblina e aroma, filtro que eu respiro
boca a boca sem me saciar). Chamo-lhe desespero porque
não acho outra palavra mas escrevo-a como se desenhasse
nesta página um pequeno firmamento de estrelas caligráficas:
ternura, língua, fogo, dentes, brevidade. Morde-se a vida,
prova-se apenas um instante e, pior ainda, com a sensação
antecipada de que a morte, duas mortes, estão metidas no caso.
Não me expliquei muito bem. Nem admira. Fantasmas pessoais,
intransmissíveis. E agora reparo: onde eu já vou. Luciana
por enquanto não passa da imagem vaga disto nas três
ou quatro páginas do romance que iniciei anteontem.”

“O Aprendiz de Feiticeiro” – Carlos de Oliveira

Fragmentos (Chuva) – pág. 15, 16 e 17 (3 de 6)

Fotografia de Helder Gonçalves

sexta-feira, fevereiro 11

Ouvir Toda a Gente


Eu acho, no meu perfeito juízo, que deve ser ouvida toda a gente. Não neste ou naquele processo de inquérito, investigação, auditoria, sindicância, ou outro qualquer procedimento previsto no ordenamento jurídico nacional. Estas acções a que temos assistido, de quando em vez, e que tocam a todos, mais a uns do que a outros, é verdade, nos seus prazos e conforme manda a lei, são de uma vulgaridade, banalidade, insignificância e sacanância que nos coloca mal no concerto das nações.

A acção a que o país aspira é mais ambiciosa. Deve ser ouvida toda a gente. Mesmo toda a gente. São cerca de 10 milhões, retirando os emigrantes, até á terceira ou quarta geração. A maioria, segundo o Dr. Medina Carreira, são velhos e relapsos, mas que importa, são esses, porventura, os mentores da depravação que a Pátria não aguenta mais. Contratem-se os serviços ao estrangeiro. Existem países populosos com gente experimentada na reposição da “ordem” e dos “bons costumes”.

Existem no país infra-estruturas capazes de albergar um exército de inquiridores qualificados. Podem ser utilizados os estádios construídos para o EURO, alguns deles sem fim útil à vista, como o do Algarve, cuja manutenção custa o equivalente a duas equipas na primeira liga. Faça-se um calendário rigoroso dos interrogatórios com tradução simultânea. Toda a gente é obrigada a denunciar toda a gente, a confessar as suas fraquezas, aproveita-se a ocasião para revistar a “coisa pública” e a privada, imaginar os crimes imaginários, adivinhar os sonhos inconfessáveis, espreitar os devaneios erécteis, gozar com a alheia cobiça do corpo inalcançável.

O país precisa de uma limpeza,
de uma devassa a sério,
de um “choque psicológico”
que, ao menos, dê aos cidadãos
aquela sensação de liberdade
de “por enquanto” não serem arguidos
ou, pelo menos, “ainda” não serem suspeitos.

Viva Portugal.

Foto de Helder Gonçalves
"Caídos pelo Caminho" - Chile

Obrigado a Portugal (Fim)


Atento o JPN, do respirar o mesmo ar,
retoma a imagem da capa do programa
do sarau "Obrigado a Portugal" e,
nas tábuas do próprio "Teatro da Trindade",
lugar do seu mister, escreve um belo texto.

As Imagens dos Artistas


Alguns dos artistas refugiados, de diversas nacionalidades, que actuaram no Sarau de 19 de Dezembro de 1940 no Teatro da Trindade.

Nevoeiro

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer
-Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!

Fernando Pessoa

"Nada Será Esquecido"

O "Público", de hoje, deu-me a ler um relato de campanha do PS, em Lisboa, com duas referências que me tocaram: a energia de Jorge Coelho e as intensas manifestações de afecto dirigidas a Ferro.

O povo não esquece e, como diz Correia de Campos, “nada será esquecido”.

"Semi-Democracia"

Santana Lopes criou uma nova categoria de democracia: "Semi". Desde que as notícias da democracia não lhe sejam favoráveis é semi. Faltam 9 dias.

Líder do PSD diz que Portugal "parece estar a cair numa situação de semi-democracia"
Santana Lopes acusa orgãos de comunicação social de fazerem campanha

quinta-feira, fevereiro 10

Obrigado a Portugal


Estas duas imagens são a minha homenagem à liberdade reconquistada em 1945 com a derrota do nazi-fascismo. E caso algum sobrevivente se reconheça neste programa antigo - tantos eram jovens - maior será a minha felicidade.

Programa


Esta imagem e a anterior são fragmentos
de um programa antigo, de 19 de Dezembro de 1940,
em época de guerra. Refugiados de toda a Europa,
devastada pela ofensiva nazi, procuravam
um porto de abrigo e uma plataforma
de onde embarcar para outras paragens.
Quase todos judeus.

Muitos artistas de todas as artes.
O Teatro da Trindade, que tão bem conheço,
serviu de palco para que os refugiados agradecessem
o acolhimento dos portugueses. Esse espírito solidário
de um povo que nem o regime ditatorial foi capaz de quebrar.

A liberdade acaba sempre por vencer a tirania.
Mas é preciso não vergar a espinha às ameaças
dos novos aspirantes a ditadores.
Eles com os seus cânticos populistas,
quais aves predadoras, volteiam no ar
em torno das nossas cabeças.
O esquecimento é a sua arma.
É preciso lembrar ao povo, sem saudosismo,
o terrível passado das ideologias nacional-populistas.

Populismo em Estado Puro

“CDS, o partido revolucionário do séc. XXI
Pires de Lima responsabiliza esquerda por salários baixos”

Onde é que eu já ouvi isto? Pelo menos os mais velhos conhecem a herança salazarista: ditadura= miséria cívica e material.

Os dirigentes do CDS/PP são os depositários históricos dessa herança e eles sabem que a ditadura salazarista também se apresentou como uma Revolução Nacional.

Não brinquem com a memória de um povo que sofreu 48 anos de ditadura, em grande parte, sob a direcção de um "partido revolucionário". São coisas sérias demais!

Veja aqui um exemplo ilustrativo.



A Crise do PSD

Tudo indica que a crise está instalada no PSD. Para lavar e durar.

Ver aqui, aqui e aqui.


quarta-feira, fevereiro 9

Luciana


“Seja como for, hoje rompeu
uma ponta de sol e desço à
beira rio. Levo Luciana comigo.
Conheço-a ainda mal. Cabelo
azulado, um pouco mais claro
do que a asa do corvo, voz
com o toque da tal rouquidão
que excita não há dúvida os
homens. Fala de montanhas
cobertas de neve, uma fonte
para encher a bilha, searas,
fruta, o corpo nu na espuma
duma corrente. Coisas naturais
e ingénuas, o que é, a voz velada
dá-lhes a lentidão, o erotismo,
dos sonhos mais fundos.
Eis o que sei a respeito dela.”

“O Aprendiz de Feiticeiro”
Carlos de Oliveira

Fragmentos – (Chuva)
pag: 15, 16 e 17 (2 de 6)

Marcelo na RTP

Todos sabemos que a política não é um paraíso onde a virtude floresça. Alguns protagonistas distinguem-se, no entanto, pela sua falta de vergonha a confundir as questões e a mentir ao povo. É o caso da tomada de posição do PSD acerca de Marcelo como futuro comentador na RTP.

Sócrates colocou uma questão pertinente. A RTP não é, de facto, uma entidade privada como a TVI ou a SIC. A RTP, pela sua natureza, tem obrigações de serviço público que os canais privados não têm.

Já antes Vital Moreira tinha colocado a questão nos termos em que deve ser colocada.

Tudo mudará de figura se o PSD quisesse privatizar a RTP. Mas para isso precisava ser governo. Como não vai ser deixa o terreno minado. Na RTP e não só...


Imigração nos Programas Eleitorais do PS, PSD e CDS/PP

Finalmente consegui o acesso à leitura do programa eleitoral do CDS/PP. Interessava-me conhecer a abordagem do CDS/PP à questão da imigração. Afinal a posição do CDS/PP é assim como uma espécie de "célula adormecida" usando a linguagem da luta anti-terrorrista tão do agrado da direita radical.

Insere a questão da imigração no capítulo da "Segurança", tal como o PSD, assume a neutralização da natureza "fracturante" da questão e dispersa a sua abordagem em alíneas ao longo daquele capítulo. Ao contrário dos partidos liberais, conservadores e de extrema direita (vejam-se os casos do Partido Conservador Britânico e dos partidos da coligação de direita que acabou de vencer as eleições na Dinamarca) não coloca a imigração como uma questão prioritária nos planos ideológico, social e político.

A imigração para o CDS/PP como que "passou à clandestinidade". Não será, certamente, falta de coragem mas cálculo estratégico tendo em vista eventuais acordos ou alianças com o PSD ... ou o PS.

Por sua vez o PDS resume a questão a dois parágrafos onde se perfilam as mesmas ideias contidas no programa do PS. Pela sua irrelevância (estranha opção da direcção do PSD) não trancrevo esses parágrafos no link abaixo.

Por fim o PS apresenta a questão da imigração num capítulo autónomo, inserindo-a no contexto das políticas sociais, muito bem estruturado, actualizado e completo. As minhas congratulações e esperanças de que, no essencial, caso o PS venha a constituir governo, tal programa seja concretizado.

Ver os programas do PS e do CDS/PP, referentes à questão da imigração, no IRAOFUNDOEVOLTAR.

Chuva

“Temos o inverno à porta. A cidade pressente-o: vai-me cair o céu em cima e o céu agora não é a transparência leve de Agosto ou Setembro, uma coisa de nada, etérea como os escritores dizem, longe disso, é o peso das nuvens carregado de electricidade, a ameaça quase a desabar. Pressinto-o eu também: vai de facto cair não tarda muito. Basta ver como a cidade se tornou um desenho aguado e fusco a tinta da china. O clarão de barro a cozer extinguiu-se nos telhados, desapareceu a chama trémula dos grãos de areia, que me enchia o quarto toda a tarde, vinda de Montes Claros. E a propósito: os escritores já não chamam etéreo a nada nem ao céu de verão.”

“O Aprendiz de Feiticeiro” – Carlos de Oliveira
Fragmentos (Chuva) – pag. 15,16 e 17 (1 de 6)

terça-feira, fevereiro 8

Homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen

A Fundação das Casas de Fronteira e Alorna promove uma homenagem a Sophia que inclui a "leitura integral da sua Obra Poética segundo a edição definitiva da Editorial Caminho, editada em 2004."

16 de Fevereiro, 2, 16, e 30 de Março, 13 e 27 de Abril,
11 e 25 de Maio, 8, 22 e 29 de Junho de 2005


III CICLO DE MÚSICA E
POESIA PORTUGUESA DO SÉC. XX
HOMENAGEM A SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Segundo o programa "Dado o carácter especial de homenagem de que este ciclo se reveste, entendeu a Fundação dar a possibilidade a outras pessoas, para além dos leitores que colaborarão regularmente nas sessões, de a ela se associarem lendo um poema em voz alta. Bastará para isso que nos informe atempadamente, por carta ou e-mail (cristinasousa@ip.pt), do poema que escolheu e que compareça na respectiva sessão. Caso a escolha recaia num poema que esteja “tomado”, será informado do facto e terá a possibilidade de alterar a sua escolha."

Faltam 11 dias

Santana Lopes, com ar displicente, no lugar de “Homem de Estado” chama os jornalistas e dá explicações acerca das questões eleitorais. Acrescenta um passeio com os filhos pelos jardins de S. Bento. Explica porque não faz campanha fazendo-a na residência oficial do primeiro-ministro. À sombra e à conta do Estado. Assim vamos cantando e rindo. Só o tempo resolve a cegeira que o bom senso não é capaz resolver.Faltam 11 dias.

A Hora das Grandes Decisões

A notícia não é inocente. Se for verdade o xadrez eleitoral fica mais claro: PS com maioria absoluta nas legislativas, quer dizer que Sócrates “elimina” Santana, “inibe” Guterres e “impulsiona” Cavaco.

A partir de Janeiro de 2006 à maioria absoluta do PS (8 ano de governo, no cenário mais favorável) corresponderia a presidência de Cavaco (10 anos no cenário mais provável).

É a possibilidade da concretização de um cenário com a obtenção do máximo denominador comum de estabilidade política e autoridade democrática.

Caso o PS não alcance a maioria absoluta nas legislativas tudo será diferente. A ver vamos!



"Olho-te nos olhos e pergunto-me de que côr serão teus sonhos..."


Terça-feira gorda. O Dr. Santana Lopes não faz campanha eleitoral no Carnaval. Mas assinou ontem um protocolo. Com pompa e circunstância. Ainda se fosse a inauguração do novo aeroporto da Ota. Como primeiro-ministro valia a pena o desaforo. Mas não tem obra para apresentar. Uns livros e um protocolo para dar uso civil a um aeroporto militar. Ainda por cima sem a presença do ministro da defesa. Até deu para o Eng.º Sócrates dar um elogio ao Dr. Portas.

Não sei o que se passa na cabeça do dito cujo mas tenho para mim que está a tentar colocar-se no papel do que ele pensa ser o sentimento do cidadão comum. Descrédito nos políticos. Mal por mal antes o Pombal! Esta estratégia do Dr. Santana, e do seu círculo restrito de amigos, ou está muito bem urdida ou está à deriva. Inclino-me mais para a segunda hipótese.

O Dr. Santana entrou naquela fase de roda livre em que tudo se pode esperar. Ou me aceitam como sou ou nada feito! O PSD que se lixe! Acho que o Dr. Santana vai acabar na “Quinta das Celebridades II” a ganhar umas massas e a aproveitar da notoriedade do cargo de “primeiro” e da campanha eleitoral.

De cada vez que lhe vejo o olhar a imagem que dele transparece é o vazio.

Fotografia de Helder Gonçalves- Granada, 2003

segunda-feira, fevereiro 7

Mário de Sá-Carneiro

Quasi

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d´espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quasi vivido...

Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim - quasi a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quasi, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d´alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d´herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

..................................................................
..................................................................

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Paris, 13-5-1913

Mário de Sá-Carneiro