terça-feira, dezembro 24

PAPA FRANCISCO - EXORTAÇÃO APOSTÓLICA - EVANGELII GAUDIUM


SOBRE O ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO ATUAL
24 de novembro de 2013

[Os meus sublinhados da leitura deste texto programático notável do Papa Francisco o qual, às primeiras impressões, a Hierarquia da Igreja Católica procura minimizar. Pareceu-me adequado à época natalícia divulgar alguns excertos que sublinhei de uma leitura integral e atenta. O texto está disponível na sitio da Conferência Episcopal Portuguesa.] 

 […]

17. Aqui escolhi propor algumas diretrizes que possam encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina da Constituição dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros temas, de me deter amplamente sobre as seguintes questões:

a) A reforma da Igreja em saída missionária.

b) As tentações dos agentes pastorais.

c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que evangeliza.

d) A homilia e a sua preparação.

e) A inclusão social dos pobres.

f) A paz e o diálogo social.

g) As motivações espirituais para o compromisso missionário.
 
2. Pastoral em conversão

25. Não ignoro que hoje os documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por usar os meios necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma «simples administração» Constituamo-nos em «estado permanente de missão”, em todas as regiões da Terra.
 

48. Se a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há de chegar a todos, sem exceção. Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc 14,14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!
 
1. Alguns desafios do mundo atual

52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica, que podemos constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo, no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia não podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico, nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de novas formas de um poder muitas vezes anónimo.

Não a uma economia da exclusão

53. Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população veem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspetivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados», mas resíduos, «sobras».

54. Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não comprámos, enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espetáculo que não nos incomoda de forma alguma.

Não à nova idolatria do dinheiro

55. Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e sobre as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que acomete as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.

56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controlo dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respetivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a devorar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa perante aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta.

 Não a um dinheiro que governa em vez de servir
57. Por detrás desta atitude, escondem-se a rejeição da ética e a recusa de Deus. Para a ética, olha-se habitualmente com um certo desprezo sarcástico; é considerada contraproducente, demasiado humana, porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida como uma ameaça, porque condena a manipulação e degradação da pessoa. Em última instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta comprometida que está fora das categorias do mercado. Para estas, se absolutizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e até mesmo perigoso, na medida em que chama o ser humano à sua plena realização e à independência de qualquer tipo de escravidão. A ética – uma ética não ideologizada – permite criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo os peritos financeiros e os governantes dos vários países a considerarem as palavras dum sábio da antiguidade: «Não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos.»

58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentarem este desafio com determinação e clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano.

 Não à desigualdade social que gera violência

 59. Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas, enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos será impossível desarreigar a violência. Acusam-se da violência os pobres e as populações mais pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há de provocar a explosão. Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reação violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se cada ação tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas duma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor. Estamos longe do chamado «fim da história», já que as condições dum desenvolvimento sustentável e pacífico ainda não estão adequadamente implantadas e realizadas.

 60. Os mecanismos da economia atual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido social. Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma violência que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão resolver jamais. Servem apenas para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução numa «educação» que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos veem crescer este cancro social que é a corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus Governos, empresários e instituições – seja qual for a ideologia política dos governantes.

 108. Como já disse, não pretendi oferecer um diagnóstico completo, mas convido as comunidades a completarem e a enriquecerem estas perspetivas a partir da consciência dos desafios próprios e das comunidades vizinhas. Espero que, ao fazê-lo, tenham em conta que, todas as vezes que intentamos ler os sinais dos tempos na realidade atual, é conveniente ouvir os jovens e os idosos. Tanto uns como outros são a esperança dos povos. Os idosos fornecem a memória e a sabedoria da experiência, que convida a não repetir tontamente os mesmos erros do passado. Os jovens chamam-nos a despertar e a aumentar a esperança, porque trazem consigo as novas tendências da humanidade e abrem-nos ao futuro, de modo que não fiquemos encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que já não são fonte de vida no mundo atual.
A doutrina da Igreja sobre as questões sociais

182. Os ensinamentos da Igreja acerca de situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e podem ser objeto de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios sociais não se fiquem em meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as suas consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas complexas situações hodiernas». Os Pastores, acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser humano. Já não se pode afirmar que a religião se deve limitar ao âmbito privado e serve apenas para preparar as almas para o Céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta Terra, embora estejam chamados à plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para nosso usufruto» (1Tm 6,17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a conversão cristã exige rever, «especialmente, tudo o que diz respeito à ordem social e consecução do bem comum».
183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocuparmos com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciarmos sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A Terra é a nossa casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e construtivo, orienta uma ação transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, «une o próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».

185. Em seguida, procurarei concentrar-me sobre duas grandes questões que me parecem fundamentais, neste momento da história. Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque considero que irão determinar o futuro da humanidade. A primeira é a inclusão social dos pobres; e a segunda, a questão da paz e do diálogo social.
2. A inclusão social dos pobres

188 (…)

Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação de uma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns.

189. A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando encarnam, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.

190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos mais pobres da Terra, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos». Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como justificação para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos dos povos mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o Planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade, e que o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros». Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de outras regiões do próprio país. Precisamos de crescer numa solidariedade que «permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada homem é chamado a desenvolver-se».

 192. Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas de garantir a comida ou um digno «sustento» para todos, mas «prosperidade e civilização nos seus múltiplos aspetos»159. Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho porque, no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros bens que estão destinados ao uso comum.

196. Às vezes, somos duros de coração e de mente, esquecemo-nos, entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas possibilidades de consumo e de distração que esta sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie de alienação que nos afeta a todos, pois «alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana».

 199. O nosso compromisso não consiste exclusivamente em ações ou em programas de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em movimento não é um excesso de ativismo, mas primariamente uma atenção prestada ao outro «considerando-o como um só consigo mesmo». Esta atenção amiga é o início duma verdadeira preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo de procurar efetivamente o seu bem. Isto implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo de ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaidade, mas porque ele é belo, independentemente da sua aparência: «Do amor, pelo qual uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe dê algo de graça.» Quando amado, o pobre «é estimado como de alto valor», e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente no seu caminho de libertação. Só isto tornará possível que «os pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este estilo, a maior e mais eficaz apresentação da Boa-Nova do Reino?». Sem a opção preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este anúncio é a primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se naquele mar de palavras que a atual sociedade da comunicação diariamente nos apresenta». 
Economia e distribuição dos rendimentos

202. A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar de uma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.

 203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente apêndices acrescentados de fora para completar um discurso político sem perspetivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram incómodas para este sistema! Incomoda que se fale de ética, incomoda que se fale de solidariedade mundial, incomoda que se fale de distribuição dos bens, incomoda que se fale de defender os postos de trabalho, incomoda que se fale da dignidade dos fracos, incomoda que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objeto de uma manipulação oportunista que as desonra. A cómoda indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado. A vocação de um empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos.

 204. Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição dos rendimentos, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos.

205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo que vise efetivamente sanar as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum. Temos de nos convencer de que a caridade «é o princípio não só das microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macrorrelações como relacionamentos sociais, económicos, políticos». Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspetivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados de saúde para todos os cidadãos. E porque não recorrerem a Deus pedindo-lhe que inspire os seus planos? Estou convencido de que, a partir de uma abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e económica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum social.

 206. A economia – como indica o próprio termo – deveria ser a arte de alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo inteiro. Todo o ato económico de uma certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do Planeta, repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à margem de uma responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo que a política local se satura de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais eficiente de interação que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar económico a todos os países e não apenas a alguns.
3. O bem comum e a paz social

221. Para avançar nesta construção de um povo em paz, justiça e fraternidade, há quatro princípios relacionados com tensões bipolares próprias de toda a realidade social. Derivam dos grandes postulados da Doutrina Social da Igreja, que constituem o «primeiro e fundamental parâmetro de referência para a interpretação e o exame dos fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora propor estes quatro princípios que orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro.
O tempo é superior ao espaço

222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela frente. O «tempo», considerado em sentido amplo, faz referimento à plenitude como expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao espaço.

 223. Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que, às vezes, se nota na atividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos de uma cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás. Trata-se de privilegiar as ações que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificarem em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes.

A unidade prevalece sobre o conflito
226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser aceite. Mas se ficamos encurralados nele, perdemos a perspetiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada. Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade.

227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e passam adiante como se nada fosse, lavam as mãos para poder continuar com a sua vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o horizonte, projetam nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas há uma terceira forma, a mais adequada, de enfrentar o conflito: é aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores».

228. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual e consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste.

A realidade é mais importante do que a ideia
231. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os éticos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria.

232. A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço da captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio. É preciso passar do nominalismo formal à objetividade harmoniosa. Caso contrário, manipula-se a verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica pela cosmética185. Há políticos – e também líderes religiosos – que se interrogam por que motivo o povo não os compreende nem segue, se as suas propostas são tão lógicas e claras. Possivelmente é porque se instalaram no reino das puras ideias e reduziram a política ou a fé à retórica; outros esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma racionalidade alheia às pessoas.

 O todo é superior à parte

234. Entre a globalização e a localização também se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés na terra. As duas coisas unidas impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo abstrato e globalizante, miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os fogos de artifício do mundo, que é de outros, com a boca aberta e aplausos programados; o outro extremo é que se transformem num museu folclórico de eremitas locais, condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras.

 235. O todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas. Portanto, não se deve viver demasiado obcecado por questões limitadas e particulares. É preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos nós. Mas há que o fazer sem se evadir nem se desenraizar. É necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspetiva mais ampla. Da mesma forma, uma pessoa que conserva a sua peculiaridade pessoal e não esconde a sua identidade, quando se integra cordialmente numa comunidade não se aniquila, mas recebe sempre novos estímulos para o seu próprio desenvolvimento. Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que esteriliza.
4. O diálogo social como contribuição para a paz

240. O cuidado e a promoção do bem comum da sociedade compete ao Estado. Este, com base nos princípios de subsidiariedade e solidariedade e com um grande esforço de diálogo político e criação de consensos, desempenha um papel fundamental – que não pode ser delegado – na busca do desenvolvimento integral de todos. Este papel exige, nas circunstâncias atuais, uma profunda humildade social.


ALBERT CAMUS

segunda-feira, dezembro 23

ÂNCORAS


Chove em Lisboa. Antevéspera de Natal. Regresso à terra como sempre acontece todos os anos por estes dias. Encontros marcados sem palavras prévias no espaço de todas as pertenças. Os lugares e as gentes. As âncoras que me prendem à vida e me fazem respirar resistindo às adversidades. Nada a temer, tudo a ganhar. Como sempre. Natal!

domingo, dezembro 22

LEIS

Escrevendo na folha branca numa manhã de domingo - dia seguinte ao solstício de inverno. Sucedem-se os desastres à beira mar - pelo menos dois com o mesmo número de vitimas - (7) - e o mesmo número de sobreviventes (1). Em qualquer dos casos não ouvi falar na consabida "abertura de inquérito" o que, certamente, aconteceu pois é o que decorre da lei. No caso dos pequenos barcos que adornam e viram sob a força da "agitação marítima" (notável expressão!), não ouvi falar, desta vez, da falta de utilização de coletes pelos marinheiros (sejam profissionais ou amadores) o que é obrigatório por lei. Hoje que tanto se fala de leis, e das consequências da sua aplicação, ao mais alto nível do Estado, fala-se pouco das consequências fatais da sua não observância  ao nível da sociedade. Uma questão de cultura. Natal!     

sábado, dezembro 21

SOLSTÍCIO


Solstício de Inverno, hoje, dentro de minutos, o dia mais pequeno do ano, na marcha dos dias. Está em curso o processo de compras - as prendas possíveis e algumas das desejadas. Editei um livro artesanal como acontece de quando em vez - edição restrita de 50 exemplares. (na pequena nota biográfica publicada neste blogue pode saber-se do seu título!) Quase só para a família e alguns amigos. O melhor que posso ofertar aos outros que amo e estimo de mim próprio. Como sempre acontece arrisco ser injusto na distribuição mas ninguém é perfeito. Natal! 

sexta-feira, dezembro 20

NATAL

Volto à página branca como se fora um caderno de apontamentos. Agora o Natal com seu cortejo de atos e memórias. Na minha primeira idade a chaminé oferecia-me uma sombrinha de chocolate. Imensa alegria no reluzente brilho único da prata colorida. Não tenho medo da redução do consumo a que as sociedades foram conduzidas pela avidez do capital financeiro. Por isso não se admirem os meus amigos pela sedução que sobre mim exercem as palavras do Papa Francisco. Tudo tem a sua conta e medida, nada podendo justificar a sacralização, ou banalização, da miséria e o silencioso, mas brutal, aumento das desigualdades. Não é uma questão de perfilhar uma posição ideológica ou defender uma barricada politica, mas simplesmente, a de não sacrificar, em qualquer circunstância, a defesa de princípios basilares em que assenta a dignidade humana: liberdade, igualdade, fraternidade. Ou se quiserem, como digo vezes sem conta no meu mister de todos os dias: cooperação e solidariedade! Natal!
       

CONTINUAR

Escrevo na tela branca como mais gosto no primeiro dia do 11º ano de existência deste blogue. Ainda não é desta vez que me resigno ao apagamento e ao silêncio. Por via deste canal de comunicação dirijo-me aos amigos que me acompanham e que, por essa forma, teimam em querer saber de mim. O fascínio desta empresa artesanal tem tudo a ver com o exercício da liberdade. A minha agenda circunscreve-se a esse desejo incontrolável de manter aberta uma janela quase intima através da qual, de forma libérrima, me pronuncio e comunico com os outros e o mundo, sem querer saber da dimensão dele. Vamos pois continuar! Obrigado!     

quinta-feira, dezembro 19

10 ANOS

Fotografia de Hélder Gonçalves

Deixar uma marca

 
Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,

nada dever ao esquecimento que esvazia o sentido do perdão olhando o mundo e tomando a medida exacta da nossa pequenez,

atravessar a solidão, esse luxo dos ricos, como dizia Camus, usufruindo da luz que os nossos amantes derramam em nós porque por amor nos iluminam,

observar atentos o direito e o avesso, a luz e a sombra, a dor e a perda, a charrua e a levada de água pura, crer no destino e acreditar no futuro do homem,

louvar a Deus as mãos que nos pegam, e nunca deixam de nos pegar, mesmo depois de sucumbirem injustamente à desdita da sorte ou à lei da vida,

guardar o sangue frio perante o disparar da veia jugular ou da espingarda apontada à fronte do combatente irregular,

incensar o gesto ameno e contemporizador que se busca e surge isento no labirinto da carnificina populista,

ousar a abjecção da tirania, admirar a grandeza da abdicação e desejar a amizade das mulheres,

admirar a vista do mar azul frente à terra atapetada de flores de amendoeira em silêncio e paz.

(um programa para o absorto)

[Publicado em 19 de dezembro de 2003.]

quarta-feira, dezembro 18

1963. UMA SURPRESA DE FIM DE ANO



1963 - Equipa de Juniores do Farense
De pé (da esquerda para a direita): Vitor Passos, Cavaco, Eduardo Graça, Silvino Octávio Rosa Santos e Mariano; em baixo: Bastardinho, Leonardo e José Maria.

Uma boa surpresa de fim de ano que me foi enviada pelo Silvino via facebook. No campo da Alameda, em Faro, a equipa de júniores de basquetebol do Farense na qual eu alinhava com a camisola nº4. Guardei a camisola que é linda e está como nova. Esta é uma actividade de que guardo uma memória bem viva no centro da qual vivem os meus companheiros de equipa. E que dizer do campo da Alameda, assim como do público que, nos jogos com o Olhanense, em regra, se envolvia à pancada e eu, lá dentro, sem perceber nada. Afinal rivalidade exacerbada. A mim só me interessava o jogo pelo jogo. A equipa era mediana em qualidade de jogo mas, apesar de tudo, tinha centrímetros para a época. Eu acrescentava 1,83 cm  mas o Silvino, se não erro, era o mais alto. O melhor, salvo melhor opinião, era o Bastardinho. Um abraço para todos. 
 
[Publicado em 30 de dezembro de 2010.]      

"homens sem ideal e sem grandeza."


Hoje reflectindo com um amigo falávamos de como terá sido possível que uma grande parte da intelectualidade de esquerda tenha apoiado a União Soviética a partir dos finais dos anos 20 e, em particular, ao longo dos anos 30.

Não sabiam nada dos crimes de Estaline? Já aqui assinalei que Camus abandonou o Partido comunista em 1937, no qual tinha ingressado em 34. Talvez Camus tenha entendido o que muitos intelectuais do seu tempo não quiseram ou não puderam entender.

É a essa luz que pode ser lida, entre muitas outras alusões, este fragmento dos seus “Cadernos”, escrito em Dezembro de 1937:

“A política e o destino dos homens são organizados por homens sem ideal e sem grandeza. Aqueles que têm uma grandeza neles próprios não se ocupam de política. Assim em todas as coisas. Mas trata-se agora de criar em si próprio um novo homem. Seria preciso que os homens de acção fossem também homens de ideal e poetas industriais. Trata-se de viver os próprios sonhos – de os pôr em movimento. É necessário não nos perdermos e não renunciarmos.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 2 (Setembro de 1937/Abril de 1939) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

(Acrescento que o ano de 1937 é designado como o “ ano terrível” por corresponder à fase mais sinistra do Grande Terror estalinista do qual descreverei, a seguir, alguns pormenores.)

[Publicado em 1 de agosto de 2005.]

FOTOGRAFIAS - HÉLDER GONÇALVES



                                     TRÊS FOTOGRAFIAS DO HÉLDER GONÇALVES.

COM OS AGRADECIMENTOS À SUA DISPONIBILIDADE E DELICADEZA NA OFERTA DE TANTAS, E TÃO BELAS, FOTOGRAFIAS AO LONGO DO TEMPO DE EXISTÊNCIA DESTE BLOGUE.

LEMBREI-ME


Dane Shitagi USA, b.1972

Lembrei-me de passar umas horas a esperar
Que acontecesse
Algo de excepcional beleza que me fizesse
Voar
Outra vez à altura dos sonhos verdadeiros
Que se esquecem.

Lembrei-me de passar os dias a divagar
Pelas ruas
Da minha adolescência e deitar-me nelas
Devagar
Revendo os amigos que não vejo nunca
E no ar
Fluido que me habita agarrá-los pela mão
Beijar-lhes
As faces coloridas dar-lhes boas notícias.

Passar
A palavra um a um numa cadeia infinita
E recomeçar
Do princípio a reconhecê-los pelos nomes
Próprios
Que se esquecem na vertigem de conhecer
Tudo
Não conhecendo nada mais que os sonhos
Que nos habitam.

Lembrei-me da jovem negra e da paixão
Inconfessa
Que me acalorou as costas quando pousou
Os joelhos
Nelas e eu me encostei aos seus caracóis
Loiros.

Lembrei-me agora aqui e em toda a parte
De passar
Ao lado do tempo e esperar que o destino
Me trouxesse
Nas mãos o sussurro e o prazer dos corpos
Que não esquecem.

Lisboa, 8 de Outubro de 2004
 
[Publicado em 24 de maio de 2007.]

A CASA (LA CASA)


Fotografia de família. Hoje seria o dia de aniversário de meu pai.

A casa

(Glosa a um verso do poema “A Casa” de Gabriela Mistral)

Meu filho, a mesa já está posta,
Subi a rua toquei na soleira da porta.
Vi-me na janela em que, olhos espantados,
Observei o cair da neve naquela manhã

(ou seria tarde?)

Tornei ao largo da Feira do Carmo.
Vi-me no lugar dos cheiros acres e alados
Caminhei ao longo do cós da infância

(ou seria a liberdade?)

Gastei o tempo da minha vida olhando.
Vi-me, súbito, face a minha mãe:
Meu filho, a mesa já está posta,

(ou seria a saudade?)

Faro, 4 de Setembro de 2004


LA CASA

La mesas, hijo, está tendida,
en blancura quieta de nata,
y en cuatro muros azulea,
dando relumbres, la cerámica.
Ésta es la sal, éste el aceite
y al centro el Pan que casi habla.
Oro más lindo que oro del Pan
no está ni en fruta ni en retama,
y da su olor de espiga y horno
una dicha que nunca sacia.
Lo partimos, hijito, juntos,
con dedos puros y palma blanda,
y tú lo miras asombrado
de tierra negra que da flor blanca.

Baja la mano de comer,
que tu madre también la baja.
Los trigos, hijo, son del aire,
y son del sol y de la azada;
pero este Pan"'cara de Dios"*
no llega a mesas de las casas.
Y si otros niños no lo tienen,
mejor, mi hijo, no lo tocaras,
y no tomarlo mejor sería
con mano y mano avergonzadas.

Hijo, el Hambre, cara de mueca,
en remolino gira las parvas,
y se buscan y no se encuentra
nel pan y el Hambre corcobada.
Para que lo halle, si ahora entra,
el Pan dejemos hasta mañana;
el fuego ardiendo marque la puerta,
que el indio quechua nunca cerraba,
y miremos comer al Hambre,
para dormir con cuerpo y alma.

Gabriela Mistral

Nota* En Chile, el Pueblo llama al pan "cara de Dios".

[Publicado em 4 de setembro de 2005, dia de aniversário de meu pai.]

UMA PEQUENINA LUZ

                                                         Uma pequenina luz bruxuleante
 
                                          não na distância brilhando no extremo da estrada

aqui no meio de nós e a multidão em volta

une toute petite lumière

just a little light

una piccola... em todas as línguas do mundo

uma pequena luz bruxuleante

brilhando incerta mas brilhando

aqui no meio de nós

entre o bafo quente da multidão

a ventania dos cerros e a brisa dos mares

e o sopro azedo dos que a não vêem

só a adivinham e raivosamente assopram.

Uma pequena luz

que vacila exacta

que bruxuleia firme

que não ilumina apenas brilha.

Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.

Muda como a exactidão como a firmeza

como a justiça.

Brilhando indefectível.

Silenciosa não crepita

não consome não custa dinheiro.

Não é ela que custa dinheiro.

Não aquece também os que de frio se juntam.

Não ilumina também os rostos que se curvam.

Apenas brilha bruxuleia ondeia

indefectível próxima dourada.

Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.

Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.

Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.

Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.

Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não: brilha.

Uma pequenina luz bruxuleante e muda

como a exactidão como a firmeza

como a justiça.

Apenas como elas.

Mas brilha.

Não na distância. Aqui

no meio de nós.

Brilha.

25/9/1949

Jorge de Sena

Fidelidade [1958], In “Obras de Jorge de Sena – Antologia Poética”

Asa Editores, 2ª Edição, Junho, 2001
 
[Publicado em 21 de março de 2006.Um dos poemas maiores escritos na língua portuguesa.]

terça-feira, dezembro 17

O "ESPALDÃO"

O “ESPALDÃO”

Ao cimo da rua onde nasci, do outro lado da estrada da circunvalação, ficava o “Espaldão”. Era pequena a distância e foi lá que vi pela primeira vez na minha vida rãs a coaxar nas poças e foi lá que tomei a noção de espaço livre. Aprendi o medo de me encontrar perdido, de regressar a casa tarde demais, de ser repreendido, de me esquecer do tempo, ser apanhado numa emboscada ou correr os perigos que afinal não existiam. As redondezas do “Espaldão”, até aos meus oito anos, compreendiam toda a minha vida: a casa onde nasci, as ruas e os becos, os vizinhos, o estabelecimento e o armazém, o ganha-pão da família, o barbeiro, a feira do Carmo, a igreja, a carroça dos cães, os vendedores ambulantes, a rua de terra, o cheiro das estações e, lá mais acima, um lugar de mistérios. O “Espaldão”, ali ao lado da minha cidade, foi a minha primeira natureza antes de conhecer o que era a natureza. Tudo tão perto e tão longe na cidade que era um lugar limitado pelo meu olhar mas sem limites para a minha liberdade.
 
[Publicado em 21 de abril de 2007. Um regresso à infância.]

OITO VERSOS PARA DEZASSEIS ANOS

SONJA THOMSEN

Perdemos a proximidade, perdemos tudo
Quem nos aqueça a vontade, nos apeteça
Perdemos a luz do lume que nos alumia
Os sentidos despertos, os braços abertos
Se perdem nas curvas quentes do desejo
Nos perdemos se nos encontramos a sós
Naquela fresca voz quente que nos beija
E lembra afinal que não perdemos nada


Lisboa, 27 de Outubro de 2006
 
[Publicado a 27 de outubro de 2006, pelo 16º aniversário de meu filho Manuel, que sempre me acompanha mesmo quando não me acompanha.]

segunda-feira, dezembro 16

O MEU PAI À JANELA DA CASA ONDE NASCI



[Fotografia anterior a 1955, colhida na Rua Coelho de Melo, em Faro.]

O meu pai Dimas à janela da casa onde nasci. Foi através dela que conheci um mundo banhado pela claridade da luz do sul. Vivi debruçado nesta janela até aos oito anos. Todo o tempo necessário para aprender a natureza.

Paredes brancas de cal. Ladrilhos coloridos. Ruas de terra batida. Vistas de campos espraiados até ao mar. Recantos floridos. Sombras de árvores de frutos. Mãos carinhosas. Telhas de barro quente. O azul transparente do mar.

A família sobreviveu a todas as adversidades próprias das épocas de guerra. Razão mais que suficiente para, apesar da tirania, se sentir feliz. O meu pai era uma pessoa honrada e ensinou-me a liberdade. Honra e liberdade. Foi essa a herança que dele recebi. Fica-lhe bem a moldura daquela janela na qual aprendi a sonhar.
 
A casa permanece intacta e habitada e esta é uma das suas duas janelas térreas. O encanto que lhe encontrava estendia-se à vizinhança, aos corredores internos e às ruas circundantes.
 
[Um dos posts de família, este de 12 de dezembro de 2006, através dos quais, sempre com um prazer muito especial, me reconcilio com a memória.]
[Republicado em 10 de dezembro de 2012.] 

O QUE EU QUERIA


Teresa Dias Coelho - CLOUDS 2000 [Oil on canvas 46 x 73 cm]

O que eu queria não posso pedir que escapa
À sem razão de não obter o que eu queria era
Neste dia assim aberto um olhar liso e claro
Na direcção do meu sorriso que espera longo.
Aguento, aguento-o, dia após dia, abro e fecho
A mão e agarro o que eu queria num momento
Mas no outro se me cava a ruga funda no meio
Da testa e se me enche o fundo da pele de suor.
O que eu queria não posso dizer senão talvez
A alguém que és tu que já o sabes bem melhor
Do que eu quando digo que não falo mais nisso.
O que eu queria me desses neste dia maduro
Era o teu sorriso vibrante fixado para sempre
Na vida para além de mim e do que eu queria.

22/9/81

(Um dos primeiros poemas que escrevi, com intencionalidade,
dedicado à G.)
 
[Publicado a 3 de outubro de 2005 dedicado à G. (Guida.)]

domingo, dezembro 15

BOLO DE GIILA E AMÊNDOA



 

No dia em que a UNESCO declarou o Fado Património Imaterial da Humanidade deixo, em homenagem a minha mãe, que tanto gostava de fado, um dos posts mais visitados deste blogue.
 
 
 No outro dia num pequeno café/restaurante aqui para os lados de Campolide serviram-me um doce de sobremesa. Senti o sabor da gila e da amêndoa, uma textura que me reenviou para o “bolo de gila” da minha mãe. Uma especialidade. São os momentos em que nos reencontramos, de verdade, com a vida.

Lembrei-me de uma história que ela contava. Já tarde, decidiu tirar a carta de condução. Fez o que tinha que fazer. Código, lições de condução, exames. Em todos passou. Aprovada. Carta na mão.

Alegria. Era mais um passo na afirmação da sua autonomia. O examinador, segundo ela, era muito simpático. Vai daí minha mãe, como sempre fazia, sem falsos pudores, preparou, com esmero, um bolo de gila para lhe oferecer. Dirigiu-se a ele e o Eng.º não quis receber a prenda. A minha mãe tomou-se de uma indignação sem limites. Insistiu.

Voltou a insistir. Não compreendia os problemas do homem que, finalmente, se deu por vencido e aceitou o bolo. Cedência a uma manifestação de regozijo? Ou aceitação do pagamento de um favor? O que a minha mãe queria era festejar!
 
[Publicado a 27 de novembro de 2011, uma das três variantes do mesmo post que, em primeira mão, dediquei à minha cunhada BEL.]

NUNO TEOTÓNIO PEREIRA


No dia do nonagésimo aniversário do Nuno Teotónio Pereira, em sua homenagem, reproduzo uma peça que escrevi para o blogue Os Caminhos da Memória que melhor não seria capaz de escrever neste preciso dia:

Nuno Teotónio Pereira foi, recentemente, evocado numa cerimónia comemorativa do 85º aniversário da Associação de Inquilinos Lisbonenses. Um dia, pelos idos de 2004, numa série de postas, fiz-lhe uma breve, e escassa, referência considerando que é uma das personalidades mais marcantes da história do MES (Movimento de Esquerda Socialista). Fiquei com uma dívida por pagar.

O Arquitecto Nuno Teotónio Pereira é uma daquelas personalidades raras na qual se juntam um notável curriculum profissional e uma postura de intervenção cívica, persistente e pertinente, assumida desde os tempos da oposição à ditadura. Ele é, na verdade, um dos arquitectos portugueses contemporâneos que foi capaz, como poucos, de integrar, sem cedências à facilidade, as preocupações sociais e a arte de «arquitectar». Há por esse país muitas obras de sua autoria, ou co-autoria, que testemunham esta simbiose.

Nos tempos de brasa do 25 de Abril foi um dos mais proeminentes dirigentes do MES, posição que saiu reforçada aquando da ruptura do grupo de Jorge Sampaio, ocorrida no 1º Congresso de Dezembro de 1974. O MES, na sua curta existência, só participou, de parte inteira, nas duas primeiras eleições da nossa III República: as eleições para a Assembleia Constituinte, disputadas em 25 de Abril de 1975, e as primeiras eleições para a Assembleia da República disputadas em 25 de Abril de 1976.

As nossas esperanças iniciais eram muitas elevadas. A lista do MES, pelo círculo de Lisboa, às eleições para a Assembleia Constituinte, foi encabeçada pelo Afonso de Barros a que se seguiram o Eduardo Ferro Rodrigues, o Augusto Mateus e o Luís Martins (padre, ainda a exercer…). A lista candidata às primeiras eleições legislativas, realizadas em 25 de Abril de 1976, foi encabeçada pelo Nuno Teotónio Pereira, seguido do subscritor destas linhas.

Poder-se-ia pensar que o MES havia encontrado o seu líder. Puro engano. Ao contrário dos restantes partidos, sem excepção, a personalidade que encabeçava a lista por Lisboa nunca foi, no caso do MES, o líder do partido pela simples razão de que no MES nunca existiu um líder. O que hoje penso é que, por incrível que pareça, sempre assumimos, do princípio ao fim, o que poderia designar-se como uma obsessão pelo colectivo.

Estávamos perante as primeiras eleições, verdadeiramente, livres e democráticas, após quase 50 anos de ditadura. Ainda hoje me interrogo como foi possível que tenhamos, no MES, encarado essas eleições, cuja transcendência política era inegável, como meros actos de pedagogia, mais do que actos destinados à disputa do poder. Ainda hoje me questiono acerca das raízes da concepção que permitiram à UDP (com o BE ainda tão longe!) ter obtido, nas eleições para a Assembleia Constituinte, menos votos do que o MES, a nível nacional, e feito eleger um deputado.

Existem muitas evidências dessa atitude de participação «não interesseira» do MES, desde o discurso anti-eleitoralista, que emanava de uma desconfiança, de raiz ideológica, acerca da verdadeira natureza da democracia representativa que, na verdade, aceitávamos como um mal menor, até à ausência de sinais de personalização nas campanhas eleitorais nas quais nunca foram utilizadas sequer fotografias dos cabeças de lista pelo círculo de Lisboa. A participação nas campanhas, embora tenha utilizado todos os meios, à época disponíveis, nunca cedeu um milímetro à personalização.

Após o fracasso da candidatura do MES à constituinte, ainda mais me parece estranho, à distância de 35 anos, a abdicação de personalizar na figura do Nuno Teotónio Pereira a campanha para as eleições destinadas a eleger a 1ª Assembleia da República. A sua participação como cabeça de lista pode ser interpretada, não me lembrando dos detalhes do processo decisório, como uma tentativa de credibilizar o MES jogando na refrega eleitoral a figura do seu mais proeminente dirigente.

Mas, ao contrário do que aconselharia a mais elementar lógica eleitoral, a campanha não valorizou a figura do Nuno Teotónio Pereira o que acabou por constituir o haraquiri político eleitoral do MES. Lembro-me de ter ocupado o segundo lugar nessa lista e do desconforto que senti quando, chegada a hora de votar, numa secção de Benfica, no meio da multidão, comovido até às lágrimas, sozinho, pressenti a derrota inevitável. E essa derrota foi ainda mais pesada do que aquela que averbámos nas eleições para a Assembleia Constituinte.

Se há uma personalidade que não merecia sair derrotada da aventura política do MES é o Nuno Teotónio Pereira a quem, como escrevi, em 2004 , devemos todos, os jovens quadros dos anos 60 e 70, uma imensidade de ensinamentos, gestos de desprendida solidariedade e humanidade que jamais poderemos retribuir com a mesma intensidade e sentido de dádiva.

Que viva!

[Publicado a 30 de janeiro de 2012.]

VÍTOR WENGOROVIUS

Fotografia de António Pais Vítor Wengorovius no jantar de extinção do MES, Novembro de 1981

No dia de hoje, três anos atrás, morreu Vítor Wengorovius. Ele merece ser evocado sempre, correndo todos os riscos, pois fez da sua própria vida um risco. Aqui deixo, em sua memória, um texto antigo.
O mais brilhante tribuno do movimento estudantil durante a crise académica de 1961/62. Eu não tinha idade para o conhecer nessa época mas os testemunhos dos seus contemporâneos são eloquentes. Só o conheci como veterano no processo de criação do MES bastante antes do 25 de Abril.

Era uma figura pujante de energia e criatividade, prolixo, solidário e desprendido. Era a personificação do excesso para seu prejuízo pessoal e benefício da comunidade. Um socialista católico puro e impoluto, crente e destemido, desprendido do poder e amante da partilha.

Privei com ele, nele confiava em pleno, com ele aprendi a confiar, talvez a confiar demais. Não me arrependo de ter acreditado na luz que emanava da sua dedicação às causas utópicas que as suas palavras nunca eram capazes de desenhar até ao fim. As suas palavras perseguiam a realidade que se escapava como um permanente exercício de criação.

Com ele fui a encontros clandestinos com o Pedro Ramos de Almeida, representante do PCP, buscando as alianças necessárias ao sucesso da luta anti fascista e nunca fomos apanhados pela polícia política.

Ouvi horas das suas conversas, intervenções e discursos, aprendi a ouvir, aprendi a faceta fascinante do excesso da palavra (não só com ele) e sofri, em silêncio, o lancinante drama do seu percurso pessoal perdido no labirinto das rupturas intelectuais e sentimentais.

Fiquei feliz no dia – próximo da sua morte – em que ajudei a que pudesse assistir ao musical “ O Navio dos Rebeldes”, levado à cena no Teatro da Trindade, em homenagem aos estudantes que em 61/62 se revoltaram contra a ditadura. No fim da representação um dos actores pediu licença para, à boca de cena, assinalar a sua presença e lhe prestar homenagem.

As lágrimas correram-me pela cara quando, frente ao palco, na cadeira de rodas, o Vítor pegou no microfone e, parcimonioso nas palavras, exacto e conciso, fazendo soar o timbre inconfundível da sua voz, agradeceu elogiando o trabalho teatral a que tinha acabado de assistir.

Morreu a 27 de Fevereiro de 2005 mas viverá para sempre no coração daqueles que, verdadeiramente, o conheceram.
(Ler ainda aqui)
 
[Publicado em 27 de fevereiro de 2008, em homenagem que reitero a uma grande figura pouco valorizada da nossa democracia moderna.] 

sábado, dezembro 14

AGOSTINHO ROSETA

 Agostinho Roseta
 
Agostinho Roseta morreu no dia 9 de Maio de 1995, na plena pujança das suas faculdades humanas, intelectuais e políticas. A sua morte prematura impediu que tivesse, muito provavelmente, exercido influência ainda mais marcante, a partir de 1995, no movimento sindical, no Partido Socialista e, quiçá, no governo.

Ele foi, no movimento operário e sindical, o activista mais importante do MES associando juventude (ou talvez melhor, jovialidade), capacidade teórica e sentido prático de organização sendo, ao mesmo tempo, persuasivo, sedutor e desprendido do poder.

Falar de pessoas é sempre muito delicado mas não receio cometer qualquer injustiça destacando a influência marcante de Agostinho Roseta na formação pessoal e política de um vasto e influente conjunto de dirigentes políticos e sindicais portugueses.

Lembro-o, além do mais, pela amizade sincera que sempre por ele nutri, aliás, retribuída, e porque foi ele o primeiro, entre todos nós, que mais cedo compreendeu o fracasso do projecto político do MES optando por dedicar as suas imensas capacidades de liderança ao movimento sindical.

O dia da sua morte coincide, ironicamente, com o dia de aniversário de minha mulher a quem pedi para reconstruir a última imagem que dele possuo: uma fotografia de grupo registada, certamente, em 27 de Outubro de 1994 na celebração do 4º aniversário de meu filho.
 
 
[Publicado em 9 de maio de 2006. Depois de amanhã realiza-se a cerimónia de entrega do prémio criado em sua homenagem a cujo júri presidi: "O Prémio Agostinho Roseta foi instituído em 2000 com o intuito de homenagear esta individualidade que, para além de sindicalista, simboliza uma cultura de abertura ao diálogo social e de empenhamento reflexivo no desenvolvimento de novos temas e abordagens conexas com a problemática do trabalho. O Prémio distingue pessoas singulares e coletivas que, em cada ano, mais se tenham distinguido na implementação e difusão de boas práticas ou na realização de estudos e trabalhos de investigação sobre estas matérias."]

CAMÕES


Oh! Como se me alonga de ano em ano
A peregrinação cansada minha!
Como se encurta e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!
Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
Perde-se-me um remédio que inda tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.
Corro após este bem que não se alcança;
No meio do caminho me falece;
Mil vezes caio e perco a confiança.
Quando ele foge, eu tardo; e na tardança,
Se os olhos ergo, a ver se inda parece
Da vista se me perde e da esperança.


Luís de Camões

Sonetos - Edição de Lobo Soropita, de 1595
Lírica - Círculo de Leitores


[Publicado em 26 de agosto de 2004. De uma série de sonetos, e outros poemas, de Camões que foram publicados, e republicados, neste blogue.] 

Maurice Béjart, Ballet, Le Sacre du Printemps



[Publicado em 22 de outubro de 2012.]

sexta-feira, dezembro 13

UM MUNDO SEM DEUS MAS NÃO SEM SAGRADO


Posted by Picasa“Camus et l’homme sans Dieu”

Acabada a leitura de “Camus et l’homme sans Dieu”, de Arnaud Corbic, algumas notas tomadas a partir do seu último capítulo: “Conclusão” subtitulado, significativamente, “Um mundo sem Deus mas não sem sagrado”. *

A obra de Camus lança os fundamentos de uma filosofia do homem sem Deus numa tripla perspectiva: uma maneira de conceber o mundo (o absurdo); uma maneira de existir (a revolta); uma maneira de estar na vida (o amor).

O sentimento do absurdo orienta Camus para a descoberta dum valor – a revolta. Este valor não se situa nem na eternidade religiosa, nem na sua substituição laica, a história, mas, de forma muito cartesiana, no “provisório” que envolve toda a vida do homem e que, por esse facto, representa para ele o “definitivo”.

O projecto de Camus não é somente o de lançar os fundamentos de uma sabedoria de tipo existencial acerca da compreensão individual da revolta mas, de forma mais alargada, de uma sabedoria social e política a partir da compreensão histórica dessa revolta.

Esta passagem da revolta solitária contra o absurdo à revolta solidária contra o mal da história efectua-se pondo em evidência um novo cogito: “Revolto-me, logo somos”.

Em Camus a revolta, no início e no fim, está ligada ao amor. Não é pelo facto da existência ser um absurdo que o homem revoltado deve sucumbir à tentação de tudo negar. É preciso, incondicionalmente, preservar o valor da vida e do humano na sua tripla dimensão, ao mesmo tempo, existencial e individual, histórica e comunitária, mas também, cósmica, negando o que oprime o homem (o absurdo, o mal). Camus tem uma percepção física e metafísica da dignidade humana.

Identificar o inumano (o absurdo, o niilismo, o ressentimento, o mal), fundar o humano (a revolta, o amor), lançar os fundamentos de uma filosofia do homem sem Deus foi a tentativa filosófica e literária de Camus.

Propor uma sabedoria inédita, ao mesmo tempo, individual, colectiva e cósmica contra tudo o que nega o homem, o mutila e tende a destruí-lo é o fio condutor de toda a sua obra.

Os fundamentos desta filosofia do homem sem Deus são a revolta-e-o-amor. Ou ainda, com André Conte-Sponville, o absurdo-a revolta-o amor: 1) o não do mundo ao homem (o absurdo); 2) o não do homem ao mundo (a revolta); 3) o sim originário e último à vida, aos seres, à terra que os dois nãos, com o consentimento subjacente, assumem (o amor).

“Pessimista quanto ao destino humano – afirmava Camus – eu sou optimista quanto ao homem. E não em nome de um humanismo que sempre me pareceu limitado, mas em nome de uma ignorância que tenta não negar nada.”

Em 1957, nas vésperas de lhe ser atribuído o Nobel, ele declarou:

“ao descer de um comboio, um jornalista perguntou-me se me ia converter. Respondi: não. Nada mais que a palavra: não …Tenho consciência do sagrado, do mistério que há no homem e não vejo razões para não confessar a emoção que sinto perante Cristo e os seus ensinamentos. Receio, infelizmente, que em certos meios, em particular, na Europa, a confissão de uma ignorância ou a confissão de um limite ao conhecimento do homem, o respeito pelo sagrado, surjam como fraquezas. Mas se são fraquezas, assumo-as com força …”

[* A partir dos meus sublinhados no último capítulo da obra em referência traduzidos, livremente, do francês. Fiquei a saber, a propósito da nota biográfica que integra a obra que a biografia recomendada é aquela que me tem servido de referência – a de autoria de Olivier Todd: “Albert Camus, une vie”, Paris, Gallimard, 1996. ]
 
[Publicado em 21 de abril de 2007. Como o tempo passa depressa! Sempre Camus desta vez em forma de nota de leitura.]
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O SILÊNCIO


Fotografia de Hélder Gonçalves

Ouve, meu filho, o silêncio.
É um silêncio ondulado,
um silêncio
donde resvalam ecos e vales,
e que inclina a fronte
para o chão.

Federico Garcia LorcaTraduzido por Eugénio de Andrade

El silencio

Oye, hijo mío, el silencio.
Es un silencio ondulado,
un silencio
donde resbalan valles y ecos
y que inclina las frentes
hacia el suelo.

[Publicado em 29 de setembro de 2005.]

quinta-feira, dezembro 12

NÚPCIAS, O VERÃO


A Bel ofereceu-me um livro que encontrou num alfarrabista no Rio de Janeiro: “Núpcias, O Verão”, de Albert Camus, obra de juventude, escrita em 1936/37. Deve ser a única edição publicada, com tradução em português, desta obra de juventude do autor de A Peste. A edição, da “Nova Fronteira”, é de 1979 e a tradução, de Vera Queiroz da Costa e Silva, parece-me bastante boa. Por este Natal, no Algarve, debaixo de chuva inclemente, deixo um excerto do capítulo “As amendoeiras”: (…) A primeira coisa é não desesperar. Não prestemos ouvidos demasiadamente àqueles que gritam, anunciando o fim do mundo. As civilizações não morrem assim tão facilmente; e mesmo que o mundo estivesse a ponto de vir abaixo, isso só ocorreria depois de ruírem outros. É bem verdade que vivemos numa época trágica. Contudo, muita gente, confunde o trágico com o desespero. “O trágico”, dizia Lawrence, “deveria ser uma espécie de grande pontapé dado na infelicidade”. Eis um pensamento saudável e de aplicação imediata. Hoje em dia, há muitas coisas que merecem esse pontapé.
 
[Publicado em 25 de dezembro de 2009. De uma série imensa de posts acerca de Camus o que desde muito cedo levou muitos dos que por aqui passam reconhecer neste blogue um espaço dedicado à vida e obra de Albert Camus. Não foi essa a intenção, nem o objetivo, da criação desta blogue mas a minha admiração pelo autor levou-me, desde cedo, a fazer deste espaço também um espaço que é dedicado. assim continuará! Através do link acima poderão ter acesso a esta obra na íntegra.] 

FÉRIAS PAGAS

As férias pagas, ou seja o direito a usufruir de um tempo de lazer sem perda de remuneração, é uma realidade recente. Esse direito foi instituído por uma lei do governo de frente popular, em França, no ano de 1936. Ainda beneficio dessa conquista. Mas o debate na Europa acerca do futuro da UE é, na verdade, um eufemismo para designar o debate acerca do futuro do estado social. Em época de escassez as férias pagas podem, em breve, voltar a ser uma reivindicação das classes trabalhadoras. Se não o forem já para a maioria!

[Publicado em 6 de agosto de 2012.]

quarta-feira, dezembro 11

25 de Abril de 1974 - Os Verdadeiros Comandantes da Revolução



Entre a madrugada do dia 25 de Abril e o 1º de Maio de 1974 vivi enclausurado no Quartel do Campo Grande, em Lisboa, onde hoje funciona uma universidade privada e naquela época estava sedeado o 2º Grupo de Companhias de Administração Militar. Lá entrei já a madrugada ia alta, tal conjurado, com o António Dias, após termos perseguido, de carro, a coluna do Salgueiro Maia desde a sua entrada no Campo Grande até ao Terreiro do Passo.

Já contei essa história. De todas as imagens que guardo na memória a mais impressiva é a da fragilidade da coluna revoltosa. Não sabia quem a comandava mas o impensável viria a tornar-se realidade. E a vitória dos mais fracos deveu-se, tão-somente, à justeza das suas razões e à coragem do seu líder. Aos leitores mais ortodoxos do colectivismo assinalo que falo num símbolo. Também sei que, desde sempre, reinou a desconfiança, entre os “donos” da mudança, a respeito de Salgueiro Maia, como hoje reina a desconfiança a respeito de tantos que ousam tomar toda e qualquer iniciativa de mudança (o que é a mudança, hoje?).

Para os “donos” da revolução nem todos devem desfilar na Avenida da Liberdade mas quis o destino – ou a ordem de operações – que quem primeiro nela desfilou fosse Salgueiro Maia que, oferecendo o peito às balas, fez estalar o click que mudou o rumo da história. Olhem com atenção para as imagens que, por vezes, passam na TV. Esse comandante, Salgueiro Maia, era um entre muitos e quem dirigia as operações era um comando com a seguinte constituição: Amadeu Garcia dos Santos, Hugo dos Santos, José Eduardo Sanches Osório, Nuno Fisher Lopes Pires, Otelo Saraiva de Carvalho e Vítor Crespo. O coordenador era Otelo por decisão do Movimento das Forças Armadas. [Ver a “Fita do Tempo da Revolução - A noite que mudou Portugal”.]

O tempo faz esquecer. O tempo é malicioso. O tempo mata a memória. Salgueiro Maia não era um oficial crente nos amanhãs que cantam, dizem até que era conservador mas, perdoem-me o plebeísmo, “tinha-os no sítio”, estão a compreender! Para dar lume a uma revolução mais vale um conservador com “eles no sítio” do que um revolucionário desertor da coragem no momento da verdade.

Quem fez triunfar a revolução não foi Ramalho Eanes, nem Spínola, nem Costa Gomes, não foi nenhum General estrelado pelo Antigo Regime, ou promovido administrativamente pelo novo, quem decidiu o triunfo da revolução foram os “capitães” e o povo, que alargaram à rua o posto de comando e que tomando a rua para si tudo decidiram. Não cito mais nomes, pois todos sabem os nomes, e em nome do povo sempre, à distância de tantos anos, podem caber todos os nomes.

A revolução foi branda para com os seus inimigos, perdoou-lhes os crimes, ofereceu o seu sangue em troca da liberdade, ganhou a admiração do mundo e isso é o seu legado histórico mais valioso. Os antigos carrascos da liberdade: os PIDES, os censores, os legionários, todos os esbirros da ditadura, seus ajudantes e admiradores, ganharam o direito a viver em liberdade, ainda hoje se cruzam connosco nas ruas e nos locais de trabalho, emitem opinião, sendo detentores de todos os direitos cívicos e políticos.

Mas se a nossa revolução foi branda para com os carrascos da liberdade pode orgulhar-se da grandeza de lhes oferecer o bem mais precioso que eles sempre negavam aos seus benfeitores. Os verdadeiros comandantes da Revolução foram generosos. Mas que ninguém, verdadeiro amante da liberdade, espere que os aspirantes a tiranos lhes retribua tanta generosidade. Por isso é prudente que, para preservar a liberdade, a democracia não vacile no combate aos seus inimigos.
 
Comentários deixados nos Caminhos da Memória (somente fiz ligeiras alterações para facilitar a leitura):

Não acredito que ele fosse conservador. Provavelmente Salgueiro Maia era de tal forma apartidário, que os elementos com ligações partidárias (quase todos...) desconfiavam dele. Ainda hoje é assim. Raramente se acredita nas pessoas que dizem não sentir afinidades por qualquer força política (com os clubes de futebol ainda é pior...)

luis eme

Posso confirmar que não era conservador. Conhecíamo-nos de Santarém ele e o major bernardo, marido da felisbela, minha antiga colega de liceu, há muitos anos. Durante a campanha de 1969 , fui eleito membro da comissão executiva da cde de Santarém e por essa altura tive imensos contactos com militares da escola prática. Em 1971 é preso José Jaime Fernandes no quartel de Santarém e depois houve uma grande explosão ainda hoje não explicada. O José Jaime correu Caxias, Peniche e passou pelo presídio militar de Santarém, onde através do apoio de diversos militares amigos fizemos chegar diversos materiais. Em 1972 ele e outros amigos fizeram um relatório sobre o presídio militar de Santarém que publicámos no boletim da comissão de socorro aos presos políticos. Para isso contribuíram vários amigos militares. Antes de Abril desertaram seis capitães de Santarém, entre eles o capitão Vítor Pires, meu antigo colega de liceu, para a Suécia e eu e José Jaime fizemos os contactos para os ajudar a desertar No congresso de Aveiro de 1973 eu era um dos responsáveis do gabinete de imprensa, tendo trabalhado em estreito contacto com a comissão organizadora do congresso. Eu a helena Neves, João Paulo Guerra e Vareda pelo secretariado do MOD. Eu na altura pertenci também ao secretariado do Mod, representandoSantarém, com Tengarrinha . Cardia, Hélder Madeira, Vareda e outros. Nessa qualidade tive contactos com vários militares em Santarém que se queriam informar sobre o congresso de Oposição Democrática, em particular sobre a nossa posição sobre a guerra colonial.Diziam não ter posição política mas queriam compreender a nossa posição. Antes de 25 de Abril fui ainda contactado por um antigo colega de liceu, militar, que me quis informar da amplitude do movimento militar e das suas esperanças. Durante a madrugada do 25 de Abril, fui o primeiro a chegar à redacção do meu jornal ,pelas quatro horas da madrugada e já sabia por um telefonema que me acordou que devia ir para o jornal. Pelas cinco da manhã fui ao rádio clube português por ordem do meu chefe de redacção e lá encontrei alem do meu amigo Filipe costa o capitão da força aérea Vítor Cunha, meu antigo colega de liceu e meu amigo, mais tarde conselheiro da revolução. Ficaram eufóricos quando me viram. Precisamos do apoiodas forças democráticas. Em 28 de Abril levei ao rcp o primeiro comunicado da uec que me foi entregue pelo Edgar Valles. O Vítor Cunha e o sobral Costa cansadíssimos pediram-me um comunicado dos "maioreszinhos". No Carmo durante a manhã de 25 Abril tive todo o apoio de salgueiro maia que falou várias vezes comigo, mas quando Marcelo estava para sair no tanque, pediu-me explicitamente para eu falar à população como representante da oposição democrática. Expliquei-lhe que estava como jornalista e sugeri-lhe o "tareco" da oposição católica progressista que eu vira falar na manifestação que tínhamos feito no patriarcado contra a guerra colonial. Durante a noite de 26, passei a noite junto de Caxias com Helena Pato, minha antiga colega de Coimbra e subi de manhã com os marinheiros para o pátio de Caxias, onde cumprimentei os meus amigos presos e continuei contactos com militares. À tarde abri celas a presos e presidi com um militar de Spínola e outro representando o MFA, por sugestão de advogados democratas presentes, em particular Wengorovius e Galvão Teles à libertação dos presos políticos. Estou a escrever um livro sobre este período histórico mas gostaria de contribuir para mudar a imagem conservadora de Salgueiro Maia.
 
José João Louro
 
[Publicado em 14 de abril de 2009.]

25 de Abril de 1974 - três momentos fascinantes


Foto de Bruno Barbey
 

 
 
A rendição de um PIDE

Num post anterior, publicado em 16 de Março, aniversário do «Golpe da Caldas» descrevi, de forma mais sucinta possível, a minha insólita participação na coluna de Salgueiro Maia na madrugada do 25 de Abril.

Nessa madrugada já após termos ultrapassado a coluna de Salgueiro Maia não sei já se na Rua do Arsenal, ou na Av. Ribeira das Naus, entrámos, ia alta a noite, no Quartel do Campo Grande e desde essa madrugada, até depois do dia 1º de Maio de 1974, não saí do quartel senão uma única vez.

Não vivi na rua a verdadeira festa do 25 de Abril após a consumação da vitória da revolução. Não assisti à enxurrada de manifestações populares nem participei, com muita pena minha, na manifestação do 1º de Maio de 1974. Os soldados ficaram, horas a fio, alinhados nas casernas, por detrás das janelas de armas apontadas para a rua, preparados para o que desse e viesse. Alguém tinha que cuidar desses detalhes da «cozinha» da revolução.

Num desses dias, estava de oficial de dia o António Dias, quando foi procurado por alguém que da rua pretendia falar. Era um agente da PIDE que se queria entregar. Foi recebido com deferência. Identificou-se e fez a entrega da arma. Uma bela pistola que, devo confessar, me suscitou cobiça e nunca mais esqueci.

De seguida coube-me a tarefa de o escoltar a caminho da Ajuda onde o entreguei em «Cavalaria 7» ou «Lanceiros 2». Foi a minha única saída do quartel em todos aqueles dias de brasa.

No percurso, realizado em jipe, nem uma palavra se trocou. Lembro-me de ter cumprido a missão, com rapidez, respeitando e defendendo, do primeiro ao último momento, a dignidade de um homem aterrorizado que tinha passado, de um dia para o outro, de agente do poder a prisioneiro do poder.
 
O passo em frente

Os dias que se seguiram ao 25 de Abril foram de ansiedade e expectativa. Nas ruas a euforia disfarçava o nervosismo mas nos quartéis o ambiente não era de certezas definitivas. O Oficial que assumiu o Comando da minha unidade, certamente o Major Azevedo, mandou reunir os oficiais milicianos.

Formámos um semi-círculo e o comandante perguntou se alguém estava contra, ou tinha reservas, face ao Movimento das Forças Armadas. Quem estivesse contra daria um passo em frente. Gerou-se um ambiente de silêncio e passividade total.

Eis senão quando o Graça (Mário), o de Moçambique, deu um passo em frente. Ficámos sem saber o que pensar. Mas ele explicou. Não tinha a certeza se os militares levariam até ao fim o processo de libertação do povo português e a descolonização.

Ficamos mais descansados e destroçamos com sorrisos. Na prática todos os oficiais milicianos do quartel estavam com o MFA.

Mário Viegas

Mas o oficial miliciano mais fascinante do meu Quartel era o Mário Viegas. O seu estatuto no serviço militar era apropriado ao seu talento de actor.

Vivemos em comum aqueles momentos inesquecíveis em que a liberdade foi devolvida aos portugueses. Tinha por ele um natural fascínio que sempre me retribuiu até à sua morte prematura.

Por um daqueles dias entre o 25 de Abril e o 1 de Maio de 1974, se não erro, no Quartel do Campo Grande, assisti ao espectáculo mais extraordinário de toda a minha vida. Havia que festejar o que agora comemoramos com nostalgia. O refeitório foi transformado numa sala de espectáculos. Nele se reuniu toda a gente de serviço no quartel.

Imaginem o elenco daquela festa improvisada: Carlos Paredes, Zeca Afonso e Mário Viegas. Todos mestres geniais na sua arte. A certa altura o Mário Viegas subiu para o tampo de uma mesa e a poesia brotou, em palavras ditas, como se diante de nós se revelasse um novo mundo ou tivéssemos da vida renascido.

[A partir de um conjunto de posts publicados no Absorto em Março/Abril de 2004.]
 
[Publicado a 30 de março de 2009 como se diz acima a partir de posts mais antigos dos inícios do Absorto.]

terça-feira, dezembro 10

25 DE ABRIL


Posted by PicasaFotografia de Hélder Gonçalves


Deixo que a palavra
tão incerta
teça

a liberdade a meio
deste Abril
para que a memória em Portugal não esqueça

tomando da flor
o cravo na matriz

teimando que a paixão
a tudo vença

dizendo não àquilo
que não quis

Maria Teresa Horta

Março 99
 
[Publicado no dia 25 de abril de 2007. Da série a "A Poesia Saiu à Rua."]
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segunda-feira, dezembro 9

BIOGRAFIA DE HUMBERTO DELGADO - UMA LEITURA NECESSÁRIA

Terminada a leitura da Biografia de Humberto Delgado, de autoria de seu neto Frederico Delgado Rosa, não resisto a deixar algumas notas. Na minha meninice – como já antes assinalei – senti pessoalmente o frémito da campanha presidencial de 1958 e nunca mais se apagaram da minha memória as imagens do empolgamento popular que a figura de Humberto Delgado suscitou.

Esta obra promissora de desenvolvimentos, e aprofundamentos, que se aguardam para o próximo futuro, mereceria, além do mais, uma verdadeira divulgação popular que contribuísse para desmitificar o branqueamento do fascismo português e da figura do seu líder e mentor – Salazar – que amiúde se quer fazer passar como um político brando na repressão, tolerante nos costumes e eficaz na política.

A leitura das 1225 páginas de texto deste livro sugere uma meditação acerca do "fenómeno Humberto Delgado", após o golpe militar de 28 de Maio de 1926, até aos nossos dias, mesmo que não nos aventuremos pelos caminhos da crítica e nos limitemos – como é o caso – ao simples papel de leitores atentos e interessados. Eis algumas breves, e despretensiosas, dessas possíveis reflexões:

(1) É do mais elementar bom senso desconfiar das ideias feitas acerca da história, em particular, da “história oficial”, quando envolve personagens carismáticos e acontecimentos com forte carga política e emotiva;

(2) Os protagonistas que marcam, pelo seu pensamento e acção, a história das nações são homens com suas virtudes e defeitos transformando-se a si próprios a par das transformações que suscitam;

(3) O General Humberto Delgado foi um distinto militar de carreira, apoiante do golpe militar do 28 de Maio, e da ditadura entre 1926 e o dealbar dos anos 50, tendo acabado por sacrificar a carreira, e a própria vida, no combate sem tréguas ao regime fascista, após a ruptura política com Salazar, a partir das eleições presidenciais de 1958, às quais se candidatou, como independente, por vontade própria;

(4) Foi ele o verdadeiro precursor do 25 de Abril de 1974 pois defendeu (quase sempre) que a ditadura só cairia através da acção militar, que haveria de ser protagonizada pelas forças armadas, apoiadas pelo povo, o que viria, de facto, a acontecer pouco menos de nove anos após o seu assassinato que ocorreu em 13 de Fevereiro de 1965;

(5) Delgado foi, politicamente, um liberal democrata, fortemente influenciado pela cultura anglófona, e pela sociedade americana (o que lhe valeu o magnífico epíteto de “General Coca Cola”) influências assumidas ao longo de várias missões profissionais – em representação do estado português - na Inglaterra, Estados Unidos e também no Canadá;

(6) Delgado foi um político que nunca deixou de ser General e de cuja áurea anti-salazarista a esquerda, do seu tempo, se quis apropriar sem, na verdade, partilhar das suas ideias e acções, que desprezava apodando-as, pelo menos, de aventureiras;

(7) O General Humberto Delgado foi atraído a uma cilada e assassinado pela PIDE, por espancamento, e não a tiro, com conhecimento de Salazar, que sempre encobriu este hediondo crime, sob as mais variadas artimanhas, no plano interno e da diplomacia, entrando, inclusive, em rota de colisão com Franco;

(8) O julgamento dos autores materiais do crime – que não dos seus autores morais que sempre foram poupados pela democracia – em Tribunal Militar – foi uma triste farsa que não permitiu apurar a verdade e muito menos punir os criminosos;

(9) Todo o processo desde o assassinato de Delgado, passando pelo encobrimento do crime, à descoberta dos corpos, à investigação judicial e perícias forenses, realizadas pelas autoridades espanholas, até à condução do processo judicial em Portugal, julgamento e recursos judiciais, constitui um caso exemplar que permite, nos planos político e judicial, entender muitos aspectos da realidade contemporânea portuguesa e as peripécias de processos que ainda correm os seus trâmites;

(10) Este livro deveria ser de leitura obrigatória para todos os políticos, militares, juízes, magistrados, jornalistas e decisores de todos os escalões da hierarquia do estado a começar pelo Senhor Presidente da República;

(11) Espero que o autor, cuja coragem não pode ser só uma herança de sangue, prossiga as suas investigações para que os portugueses possam conhecer todos os meandros do assassinato de Humberto Delgado, para que sejam identificados os seus autores, materiais e morais, assim como os encobridores, localizados os que ainda possam estar vivos, reabrindo, eventualmente, o processo, levando a que os criminosos paguem pelos seus actos e contribuindo, dessa forma, para que os portugueses se reconciliem com a justiça do seu país.

(12) Nunca nenhum processo-crime está definitivamente encerrado enquanto subsistirem fundadas suspeitas de que se não fez justiça. É o caso.
 
[Publicado em 18 de agosto de 2008. Um personagem fascinante da nossa história que vale a pena conhecer o que este livro permite como poucos.]
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domingo, dezembro 8

PEDRO OOM

Posted by Picasa Fotografia daqui

O COELHINHO QUE NASCEU NUMA COUVE

Era uma vez um coelhinho que nasceu numa couve.
Como os pais do coelhinho nunca mais aparecessem a couve passou a cuidar dele como se do seu próprio filho se tratasse.Com ervinhas tenras que cresciam ao seu redor a couve foi criando o coelhinho dentro do seu seio até que este passou a procurar a sua própria alimentação.O coelhinho, que tinha um coração muito bondoso, retribuindo o afecto que a couve lhe dedicava considerava-a como sua verdadeira mãe.A mãe couve e o seu filhinho adoptivo foram vivendo muito felizes até que um dia uma praga de gafanhotos se abateu sobre aquelas terras.O coelhinho ao ver que aqueles insectos vorazes devoravam tudo o que era verde cobriu com o seu próprio corpo o corpo da mãe couve e assim conseguiu que os gafanhotos pouco dano lhe fizessem.Quando aqueles insectos daninhos levantaram voo os campos em volta passaram a ser um imenso deserto de areias e pedra.O pobre coelhinho, que sempre tinha vivido nas proximidades da sua mãe couve, teve de deslocar-se para muitos quilómetros de distância a fim de procurar comida.Mas já nada havia que se pudesse mastigar naquelas terras.Passaram muitos dias e o pobre coelhinho estava cada vez mais magro mais magro e faminto.Então a mãe couve disse-lhe assim: “Ouve meu filho: é a lei da vida que os velhos têm de dar o lugar aos novos, por isso só vejo uma solução: assim como tu viveste durante algum tempo no meu seio, passarei a ser eu agora a viver dentro do teu. Compreendes, meu filho, o que eu quero dizer?”O pobre coelhinho compreendeu e, embora com grande tristeza na alma não teve outro remédio, comeu a mãe.

Pedro Oom
IN “2 HISTÓRIAS PARA CRIANÇAS (EMANCIPADAS) QUE ILUSTRAM A DIFERENÇA ENTRE O AMOR FILIAL E O AMOR CONJUGAL” (Também magistralmente dito por Mário Viegas em Humores, 1980)
Actuação Escrita, edição & etc (1980)
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PEDRO OOM [Antecipo a efeméride do seu nascimento.]

Francisco Pedro dos Santos Oom do Vale nasceu em Santarém, a 24 de Junho de 1926.
Aos 2 anos acompanha a família para Setúbal e a partir dos 11 fixa-se em Lisboa. A aspiração do pai a que ingressasse no Colégio Militar nunca foi cumprida pois Pedro Oom se recusou.
Ingressa na Escola António Arroio onde conheceu Júlio Pomar, Vespeira, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas e outros que viriam a aderir ao surrealismo.
Aos 24 anos, órfão de pais, ingressa no INE, como funcionário público, onde segue uma carreira desconcertante de disciplina em relação ao período anterior da sua vida e um “interregno”, afastando-se de toda a actividade artística e literária ligada ao surrealismo.
Dedicou-se, entretanto, com entusiasmo, ao xadrez modalidade na qual se distinguiu.
Em 1962 dá por finda a sua vida de funcionário público, sai do INE, reingressando, dois anos passados, desta vez, no Ministério da Educação onde se dedicou a estudos de estatística sobre o ensino.
A sua obra literária, poética e panfletária, ficou dispersa sendo impregnada de uma ironia que vai dos tons mais violentos da contestação à mordacidade pessoal.
Morreu no dia 26 de Abril de 1974, pelas duas e trinta da tarde, no Restaurante “13” quando, com alguns amigos, festejava os acontecimentos que então se viviam apaixonadamente.
A sua obra foi publicada em dois volumes sob o título “Actuação Escrita” pelas Edições & etc de cujas “notas biográficas” se respigou o presente texto.

[Publicado em 16 de maio de 2006. Um texto extraordinário, divulgado por Mário Viegas, de um grande poeta português quase esquecido.]