quarta-feira, junho 18

junho - dia 18


Um texto dos mais antigos que escrevi aqui acerca do futebol. Intitulei-o de "Após a Derrota", de tantas que fazem parte da actividade humana, do jogo da vida e também do desporto. Nada pior do que não saber aceitar a derrota com as suas penas. Nada pior do que não saber vencer com suas alegrias. Escrevi assim:   "Os negócios da imagem (e outros) dominam o fenómeno do futebol contemporâneo, eu sei, mas a imagem dos meus heróis de juventude, que quase pagavam para jogar, colou-se na formação do meu gosto e este jamais o perderei ao contrário do vício de fumar que perdi de um dia para o outro. A beleza do futebol, mesmo após a derrota, tal como a beleza feminina, mesmo sendo produzida (e a beleza não é sempre produzida?), fascina-me e incorpora a minha formação cultural. Não há volta a dar!" 

segunda-feira, junho 16

junho - dia 16


Hoje foi um dia não para notícias, não que não hajam notícias, todas as antigas e outras novas, os povos da Europa navegando por entre fumos de guerra. Volto a referir a guerra, o Irão oferece uma aliança aos USA na luta contra os insurgentes sunitas no Iraque. Os USA dão sinais de aceitar. Qual será o negócio? A Rússia ameaça o abastecimento de gás à Ucrânia (e à Europa da UE) e a diplomacia da UE aparenta desnorte, qual barata tonta, enquanto todos chatageiam todos, ameaçando em on e off, como se estivéssemos em plena época de manobras bélicas. Hoje  numa tribuna de um país de criação portuguesa, o Brasil, nascido da estratégia vencedora da projecção externa de quinhentos, a chanceler alemã, com toda a carga simbólica, aplaudiu a vitória dos seus. Hoje, em Salvador da Baía,  não havia quem simbolicamente confortasse os derrotados, no exacto lugar da chegada de Cabral. A primeira capital, coisas sem importância. Honra aos vencidos, glória aos vencedores.      

junho - dia 15

                                                           Fotografia de Hélder Gonçalves

Continuo a escrever aqui. Para mim é uma coisa normal. Mas passou muito tempo desde que comecei. Apetece-me escrever quando me recolho. É  fascinante a página em branco. Nada me obriga. Oiço dizer em muitos lugares que escrever no espaço público é perigoso. Mas não tenho medo de me manifestar, através da opinião, do testemunhar, tomar partido. De forma mais serena e, naturalmente, mais ponderada do que ontem. Mas não ter medo, salvo raras excepções, não é um estado de espírito inato. Resulta de uma aprendizagem na qual as nossas relações com os outros e o mundo nos conformam o ser em construção. Por estes dias viajei pelo sul litoral. O meu olhar reteve uma paisagem natural extraordinariamente bela, o mar beijando a terra sob a lua de prata. A terra florescente nos seus contrastes fascina o olhar mais distraído. Mas a qualidade dos serviços prestados parece ter parado no tempo, senão mesmo regredido. Será uma injustiça generalizar mas parece-me notório que recrudesceu o amadorismo. A maior parte das nossas pequeníssimas empresas (que são quase a totalidade do nosso empresariado), parece à beira de sucumbir. Poupa-se na ração, o animal ameaça morrer.        

sábado, junho 14

junho - dia 14









Não sou mais do que um cidadão interessado pelas coisas do mundo. Preocupam-me os sinais de guerra
que em algumas regiões passaram de ameaças a actos. Não me guio pela agenda da comunicação social global e busco contrariar o esquecimento. Li nas notícias do dia  que a França e a Alemanha manifestaram preocupação com a situação na Ucrânia. É a Europa à beira da guerra ou a guerra à beira da Europa. Com aparente surpresa os islamitas radicais (sunitas) ameaçam tomar o poder no Iraque. Não foi lançada pelo ocidente imperial uma "guerra santa"  contra o poder sunita de Saddam Hussein? Sabem quando foi? Quanto tempo demorou? Quanto custou? Da democracia que lá implantou? Das razões reais e invocadas? Da Síria as trombetas emudeceram! Da Líbia as novas são escassas! A paz sofre tratos de polé do grande conglomerado militar industrial internacional. Seja qual for o lado em que avança vitoriosa uma guerra as armas ostentam as mesmas insígnias. Alguém as vende, alguém as paga, enquanto os povos sofrem!  É preciso ouvir com muita atenção as palavras do Papa Francisco.  

sexta-feira, junho 13

junho - dia 13


                                                          Fotografia de Hélder Gonçalves

Dia de Santo António, feriado em Lisboa, inicio do campeonato do mundo de futebol. Nada de novo a ocidente a não ser tudo o que de novo o nosso tempo anuncia. Sob os nossos pés, tantas vezes sem nos darmos conta, florescem sinais de mudança. O tempo, leal conselheiro, faz o seu trabalho. Muitas injustiças, que a nossos olhos são irreparáveis (e muitas são), reverterão em favor dos injustiçados. As mulheres e os homens de boa vontade, seja qual for a sua condição social, profissão, ideologia, partido, raça ou credo, em suas tarefas e misteres, não temem as dificuldades. As barreiras tantas vezes derrubadas ao longo da história por movimentos que os próprios homens moldaram serão de novo derrubadas. De um a outro campo da vida em comunidade, adversários e correlegionários, entrecuzam-se e disputam o poder. Sempre assim foi em democracia. Nada de novo a ocidente a não ser tudo o que de novo o nosso tempo anuncia.   

quinta-feira, junho 12

junho - dia 12


Véspera de Santo António, dia de festa em Lisboa. Só para lembrar que a rendição de Lisboa ocorreu em 21 de Outubro, mas a  tomada de Lisboa aos "mouros" deu-se em 25 de Outubro de 1147.  Ao calcorrear as ruas de Lisboa, ao sentir a quentura da sua luminosa luz, ao ouvir a grita de suas gentes, mesmo no auge de sua nostalgia, lembremos que esta é uma cidade antiga. Hoje cosmopolita talvez mais do que nunca, a porta maior de abertura de Portugal ao mundo, um porto, um rio, uma mescla de gentes de toda a sorte, ao olhá-la atentamente, com seus claros e escuros, Lisboa ilumina-nos a esperança no futuro.

terça-feira, junho 10

junho - dia 10


Hoje é dia 10 de junho, um dia como outro qualquer, salvo ter sido escolhido faz tempo, não vem ao caso a razão, para Dia de Portugal. Lembrei-me a propósito do dia 10 de junho de 1977, celebrado na Guarda, como este que hoje se celebra. O que me faz lembrar esse longínquo dia é o discurso que nele foi convidado a proferir Jorge de Sena. Estávamos no fim do chamado período revolucionário, haviam ocorrido as eleições presidenciais, tendo sido eleito Ramalho Eanes, e a voz de Sena, tão pouco chamada a ser ouvida fora dos meios literários e académicos, irrompia como uma fagulha que iluminava temas raramente trazidos à praça pública em eventos de natureza politica, ou afins. A partir desse dia passei a ler a obra de Sena de forma sistemática,em particular a poética, que sempre me inspirou. Publiquei, na madrugada de hoje, o discurso de Jorge de Sena, proferido em 10 de junho de 1977, no IRAOFUNDOEVOLTAR porque contém tanta actualidade que até dói. Foi uma das sua últimas intervenções públicas em Portugal, senão a última, pois morreu em 4 de junho de 1978 em Santa Bárbara, Califórnia, onde vivia com sua mulher Mécia (haja saúde) e sua vasta prole.

domingo, junho 8

junho - dia 8


O verão ameaça dar sinal de si por entre os ruídos de todos os perigos que ameaçam a paz na Europa. Abate-se o silêncio acerca da emergência dos extremismos que as eleições europeias revelaram em toda a sua crueldade. Ao solavanco da surpresa sucede-se a acomodação ou o que parece ser a aceitação de uma normalidade que, na verdade, deveria colocar em alerta vermelho os amantes da liberdade. Na falta do pão a primeira tentação dos povos é valorizar a justiça em detrimento da liberdade. A maior tentação de todas as comunidades, em períodos de carência, é menosprezar os valores da liberdade em favor dos da justiça. Um erro que sempre se pagou caro na maior parte das vezes com a eclosão da guerra. É preciso manter o equilíbrio para não nos tornarmos assassinos mesmo quando as vozes se elevam mais alto do que os valores que proclamam.

sexta-feira, junho 6

junho - dia 6

Chove em Lisboa, cheira a verão, não ardem os pinheiros, sempre me lembram os pinheiros, quase à beira mar, e as figueiras do campo de meus avós, e seus saborosos frutos. Hoje celebra-se o 70º aniversário do longínquo dia D, o desembarque na Normandia, que é a batalha emblemática que ditou a derrota do nazi fascismo. Os americanos vieram derramar o seu sangue na Europa, os ingleses resistiram aos bombardeamentos, os franceses desertaram dos seus ideias de liberdade igualdade e fraternidade, deixando ao heroísmo de uma minoria de resistentes a tarefa de resgatar a sua honra, o povo russo, uma vez mais, mostrou que jamais será vencido pelas armas. Na hora que passa semeiam-se sinais de uma nova peste totalitária. Ainda bem que os lideres são capazes de se juntar para celebrar a efeméride.    

quarta-feira, junho 4

junho - dia 4


No ambiente político, no ar que se respira, reina uma tensão como poucas vezes se tem sentido nos últimos anos. Anunciam-se mudanças mesmo que ninguém revele ao que vem nem para onde pensa que vai. São demasiadas coincidências, nos gestos, falas, silêncios e gritas. É um tempo novo que se anuncia sem que saibamos quem dele vai beneficiar, quem nele vai perder ou ganhar, viver ou morrer. Continuar a trabalhar, o melhor que se pode e sabe. Nada mais.  

domingo, junho 1

junho - dia 1


Primeiro dia de um mês de junho que vai ser quente em diversas frentes. Na frente europeia, após eleições, surgirão novos responsáveis e inevitáveis ajustamento nas politicas. Podem ser na aparência pequenos acertos mas a situação resultante da ascensão de forças da extrema direita exige mudanças profundas. A nível nacional é o que está à vista de todos. Os dados estão lançados. Nem à direita nem à esquerda é possível imaginar a vitória do situacionismo. O PS pode mudar de liderança, o PSD será obrigado a responder, o CDS não poderá ficar indiferente, todas as forças serão obrigadas a reposicionar-se, atrair eleitores descrentes e desiludidos, com eleições legislativas e presidenciais à vista. No meio de tudo o campeonato do mundo de futebol ... e uma crise financeira/económico/social sem precedentes ...      

Roberto Bolle & Polina Semionova in Passage


sábado, maio 31

NA MORTE DE MARILYN


Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes
Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser atá ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou.

Ruy Belo

Transporte No Tempo
Editorial Presença

quarta-feira, maio 28

A minha cabeça está baralhada

"A minha cabeça está baralhada
Sobre um determinado trabalho, sobre um determinado assunto (habitualmente aqueles sobre os quais se fazem dissertações), sobre um determinado dia de vida, gostaria ele de colocar como divisa este dito de comadre: a minha cabeça está baralhada (imaginemos uma língua na qual o jogo das categorias gramaticais obrigasse por vezes o sujeito a enunciar-se sob as vestes de uma velha).
E, todavia, ao nível do seu corpo, nunca sente a cabeça baralhada. (…)
Sente por vezes vontade de deixar repousar toda essa linguagem que tem na cabeça, no trabalho, nos outros, como se a própria linguagem fosse um membro cansado do corpo humano; parece-lhe que, se descansasse da linguagem, descansaria completamente, pelo feriado dado às crises, às repercussões, às exaltações, às feridas, às razões, etc. Vê a linguagem sob os traços duma velha mulher cansada (algo como uma antiga mulher-a-dias de mãos gastas) que suspira por uma certa aposentação”.

"Roland Barthes por Roland Barthes" 
Edição portuguesa: "Edições 70"

segunda-feira, maio 26

Ruy Belo - ...tu és em cada gesto todos os teus gestos

“...tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra paz

Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas perdoa pagares tão alto preço por estar aqui

prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias

e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui”

Ruy Belo

in “Toda a Terra”

sexta-feira, maio 23

Abrahamsen: Let me tell you / Hannigan · Nelsons · Berliner Philharmoniker


VOTAR - DE NOVO


Tenho escrito sempre na véspera de eleições desde que frequento estes espaços de comunicação - vulgo redes sociais - por dever de consciência. Faço parte daquele grupo de eleitores, que os especialistas na matéria devem qualificar de uma forma qualquer, fiéis a um ideário. Nada que me incomode ou associe, de mim para comigo, a um qualquer imobilismo ou letargia acrítica. A propósito destas eleições europeias tenho-me lembrado, com frequência, da experiência de candidato, independente nas listas do PS, às eleições legislativas de 1985. Ainda no decurso de um período de dura politica de austeridade, dirigida por um governo PS, nas vésperas da adesão à CEE, ser candidato foi mais do que uma maçada, foi um risco físico, à beira de apanhar pancada vinda de enfurecidos, mas pacatos, cidadãos que anunciavam a pior votação de sempre no PS. É como em tudo na vida, umas vezes em baixo outras em cima. Para dizer que, desde que o misterioso e distinto MES, acabou para as lides eleitorais, sempre votei no PS. Para ganhar ou perder é uma manifestação de fidelidade que acalento desde a adolescência. Assim seja!     

quarta-feira, maio 21

O COELHINHO QUE NASCEU NUMA COUVE


Era uma vez um coelhinho que nasceu numa couve.
Como os pais do coelhinho nunca mais aparecessem a couve passou a cuidar dele como se do seu próprio filho se tratasse. Com ervinhas tenras que cresciam ao seu redor a couve foi criando o coelhinho dentro do seu seio até que este passou a procurar a sua própria alimentação. O coelhinho, que tinha um coração muito bondoso, retribuindo o afecto que a couve lhe dedicava considerava-a como sua verdadeira mãe. A mãe couve e o seu filhinho adoptivo foram vivendo muito felizes até que um dia uma praga de gafanhotos se abateu sobre aquelas terras. O coelhinho ao ver que aqueles insectos vorazes devoravam tudo o que era verde cobriu com o seu próprio corpo o corpo da mãe couve e assim conseguiu que os gafanhotos pouco dano lhe fizessem. Quando aqueles insectos daninhos levantaram voo os campos em volta passaram a ser um imenso deserto de areias e pedra. O pobre coelhinho, que sempre tinha vivido nas proximidades da sua mãe couve, teve de deslocar-se para muitos quilómetros de distância a fim de procurar comida.Mas já nada havia que se pudesse mastigar naquelas terras. Passaram muitos dias e o pobre coelhinho estava cada vez mais magro mais magro e faminto. Então a mãe couve disse-lhe assim: “Ouve meu filho: é a lei da vida que os velhos têm de dar o lugar aos novos, por isso só vejo uma solução: assim como tu viveste durante algum tempo no meu seio, passarei a ser eu agora a viver dentro do teu. Compreendes, meu filho, o que eu quero dizer?” O pobre coelhinho compreendeu e, embora com grande tristeza na alma não teve outro remédio, comeu a mãe.


Pedro Oom

IN “2 HISTÓRIAS PARA CRIANÇAS (EMANCIPADAS) QUE ILUSTRAM A DIFERENÇA ENTRE O AMOR FILIAL E O AMOR CONJUGAL” (Também magistralmente dito por Mário Viegas em Humores, 1980)


Actuação Escrita, edição & etc (1980)
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PEDRO OOM



Francisco Pedro dos Santos Oom do Vale nasceu em Santarém, a 24 de Junho de 1926.
Aos 2 anos acompanha a família para Setúbal e a partir dos 11 fixa-se em Lisboa. A aspiração do pai a que ingressasse no Colégio Militar nunca foi cumprida pois Pedro Oom se recusou.
Ingressa na Escola António Arroio onde conheceu Júlio Pomar, Vespeira, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas e outros que viriam a aderir ao surrealismo.
Aos 24 anos, órfão de pais, ingressa no INE, como funcionário público, onde segue uma carreira desconcertante de disciplina em relação ao período anterior da sua vida e um “interregno”, afastando-se de toda a actividade artística e literária ligada ao surrealismo.
Dedicou-se, entretanto, com entusiasmo, ao xadrez modalidade na qual se distinguiu.
Em 1962 dá por finda a sua vida de funcionário público, sai do INE, reingressando, dois anos passados, desta vez, no Ministério da Educação onde se dedicou a estudos de estatística sobre o ensino.
A sua obra literária, poética e panfletária, ficou dispersa sendo impregnada de uma ironia que vai dos tons mais violentos da contestação à mordacidade pessoal.
Morreu no dia 26 de Abril de 1974, pelas duas e trinta da tarde, no Restaurante “13” quando, com alguns amigos, festejava os acontecimentos que então se viviam apaixonadamente.
A sua obra foi publicada em dois volumes sob o título “Actuação Escrita” pelas Edições & etc de cujas “notas biográficas” se respigou o presente texto.

sexta-feira, maio 16

NORMALIDADE


Fotografia de Hélder Gonçalves

Um dia, muitos anos atrás, visitei a Holanda para contactos políticos estávamos por cá no pico dos conturbados anos da revolução - essa que nos restituiu a liberdade e a democracia. Lembro com muita clareza como me encantaram as cidades que visitei. Como admirei a liberdade dos holandeses habitarem suas casas de janela aberta para a rua, da música que soava dos prédios, tocada por músicos mestres na arte de tocar diversos instrumentos, do ar que me parecia breve, limpo e leve. Quando chegou o dia de visitar o parlamento em Haia senti a estranheza de uma normalidade que me pareceu anormal. A luta política havia sido absorvida pelas instituições da democracia representativa em toda a sua formalidade. Isto para dizer que a campanha para as eleições europeias de agora, pelas impressões que me chegam, me faz lembrar esse momento da minha breve experiência política holandesa. 

quinta-feira, maio 15

AÇORES


Ontem fui a Ponta Delgada em viagem profissional. Os Açores no seu conjunto e, em particular, a ilha de São Miguel são um paraíso na terra. Lugar de excepção, apesar dos elevados índices de pobreza e desigualdade. A maioria das estradas, ruas, caminhos,  são tão bem cuidados, seja quem for os cuida, que impressiona o mais distraído. Tudo em aberto para o progresso humano após tamanhos avanços na área das infraestruturas. Que se continue a proteger o ambiente quase no limite do fundamentalismo na crista da insularidade. Resiste a imprensa regional, modernizando-se como o Açoriano Oriental. Com esperança nos novos tempos que surgirão no horizonte útil das nossas vidas.              

quinta-feira, maio 8

DIAS DIFÍCEIS (3)

A vida é feita de pequenas coisas, pequenos nadas, a mão que adormece, uma pontada no corpo, uma falta inesperada, um desgosto por nada, uma doença por perto, tirar sangue para análise, ficar desapontado, engolir em seco, ver ganhar quem se gosta, ver perder quem se ama, uma fala inoportuna, o suor, uma lágrima, a fruta que apodrece, o pão que acaba, o sono que não vem, o dinheiro que falta, o imposto cresceu, o menino adormece, o homem do círculo (de leitores), a notícia mil vezes repetida, a dor nas costas, a cadeira predileta, o sofá que se disputa; no meio de tudo, dos pequenos nadas, uma disputa imensa, a casa grande onde cabem todos, a luta por vencer, uma opinião, a sociedade aberta, os pequenos nadas, a hora da grande decisão. Os pequenos nadas, sem medo, mudam de qualidade, fundem-se, resistem. Connosco tudo acontece, aos outros nada acontece. Na hora acertada todos os pequenos nadas fazem sentido. Conhecemos-mos pelo olhar dos outros. Desassossegam-se nossos passos. Unos e plurais, Sempre, Rendidos jamais.        

quarta-feira, maio 7

DIAS DIFÍCEIS (2)

Não é difícil dar-mo-nos conta de estar a viver em período pré eleitoral. Deve acontecer o mesmo com todos os cidadãos nos restantes 26 países da UE. As eleições banalizaram-se, uma coisa boa. As eleições institucionalizaram-se, uma coisa banal. Quatro décadas atrás, em Portugal, as eleições, livres e democráticas, foram uma novidade e lembro-me de meus pais terem vestido os melhores trajes no dia do voto, das longas filas de espera à porta das urnas, do ar feliz da multidão surpreendendo-se ao encarar no ato civico de votar a concretização de uma aspiração desaprendida. A maioria nunca havia votado senão uma meia dúzia, incluindo democratas, nos simulacros eleitorais do antigo regime. Vem esta prosa a propósito do que podemos designar da "fadiga eleitoral" do nosso tempo, revelada pelo crescente abstencionismo, perda de energia no ato da escolha, moda na descrença nos políticos ("são todos iguais!"), frustração de expectativas por promessas não cumpridas, o que se sabe ... que a maioria diz, ou pensa e não diz, mantendo, no entanto, uma sábia reserva de esperança em mudanças que abram caminho à reinvenção da democracia representativa. Não é tarefa fácil reinventar o sufrágio universal, essa criação extraordinária que permite dar voz, através do voto, a todos os cidadãos em liberdade e igualdade. É tempo de não perder de vista o essencial, o voto. O vazio criado pela omissão das escolhas abre as portas aos messias de todos os tempos.

segunda-feira, maio 5

DIAS DIFÍCEIS

Dias difíceis no vendaval de uma espécie de anúncio de armistício na austeridade que o tempo dirá da espessura e sustentabilidade. É o que se discute, ou seja, o significado politico, e as consequências para a comunidade nacional, do encerramento formal de um pequeno ciclo de assumpção de politicas de austeridade. O que me preocupa, mais que tudo, é a pulsão que paira acerca da bondade do debate público aberto, do confronto de ideias, que tende a constranger a construção e apresentação de alternativas. Como se as soluções para os problemas nacionais pudessem ser forjados a golpes de espada e não através do confronto aberto de ideias. Os sinais que nos chegam de fora não são animadores. Os populismos de cariz fascista, no caso da Europa, de forma surpreendente para os menos atentos, alargam a sua base de apoio e ameaçam ganhar eleições. Basta ver quer as ameaças de guerra na Ucrânia, com seu cortejo de manifestações populistas de direita, quer  as sondagens tendo em vista as eleições para o Parlamento Europeu, em França e Inglaterra, que apontam para a possível vitória de partidos de cariz fascista como sempre enfeitados com seus apelos ultra nacionalistas, xenófobos e racistas. Todo um ambiente de tempestade perfeita - politica, económica e financeira - prenúncio de guerra. Os democratas não podem debandar da sua luta, nem deixar aberto o campo às aventuras dos inimigos da liberdade. É o tempo de juntar forças.
                                                        Fotografia de Hélder Gonçalves

sábado, maio 3

25 de ABRIL- 25 de abril - 40 anos, 82



Fotografia de Hélder Gonçalves

Deixo que a palavra
tão incerta
teça

a liberdade a meio
deste Abril
para que a memória em Portugal não esqueça

tomando da flor
o cravo na matriz

teimando que a paixão
a tudo vença

dizendo não àquilo
que não quis

Maria Teresa Horta

Março 99

sexta-feira, maio 2

APENAS ISSO - 25 de abril - 40 anos, 81




Fotografia de Hélder Gonçalves


Dai-me ainda outro verão,
um verão do sul, redondo
lento maduro; um verão
de rolas frementes de cio,
de porosa alegria, de luz varrida
pela cal; dai-me
mais um verão rente à sombra
do pátio onde um rumor
cativo do poço sobe aos ramos;
um verão
limpo como o céu da boca;
mais dentro, mais fundo.



Ou por fim o silêncio.
Caindo a prumo.




Foz do Douro, 8/1/99

quinta-feira, maio 1

BREVE OLÊNCIA - 25 de abril - 40 anos, 80


Fotografia de Hélder Gonçalves

Estão cerrados todos os jardins,
onde asas voaram e se romperam as pedras.
Como esquecer as estrelas pousadas no verão
e a ciência exacta das flores claras de ar?
Estão cerrados todos os jardins,
queimados da fome, escarlates de treva.
Que tempo esvoaça, lacuna ou máscara,
pelo lento longo suor das noites?
Estão cerrados todos os jardins,
hoje ervas sem pálpebras, gritos sem boca.
Cativeiros de estátuas, deixaram que o tempo
durasse muito tempo, em campo entardecido.
Estão cerrados todos os jardins,
Em palavras vendidas que esconderam o mundo.
Os olhos ruídos soam a sombra
nos risos sem riso, nos corações calados.
Estão cerrados todos os jardins.
A pele cresce, digerimos o vazio.
As palavras articulam-se de ossos.
Mudada em terra, toda água morrerá.
Estão cerrados todos os jardins
e seus lazeres felinos, seus salmos de pé.
É a hora surda de cicatrizes sem beijos,
de muros soterrados e pulsos incolores.
Estão cerrados todos os jardins
e vão nascendo dólmenes e corujas de ouro.
Porque se agita ainda a cauda dos peixes,
buscando fogos extintos no termo dos rios?
Estão cerrados todos os jardins.
A nada a alma se assemelha.
O mar perdeu-se contra as paredes.
Vivemos do que não pudemos viver.
Estão cerrados todos os jardins,
são antigas as novidades do mundo,
obedecemos a ordens, a norte do futuro.
Mas ainda estamos nus. E respiraremos.

Orlando Neves

terça-feira, abril 29

DEPOIS - 25 de abril - 40 anos, 78



Fotografia de Hélder Gonçalves

Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração,
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.

Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas
e de poços e de portas entreabertas
e sonham no escuro
as coisas acabadas.

Manuel António Pina

segunda-feira, abril 28

ANIVERSÁRIO

        

                                         ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.]
 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
 
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
 
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),]
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!]
 
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...]
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,]
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –,]
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
 
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
 
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

15 de Outubro de 1929

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

domingo, abril 27

DA VOZ DAS COISAS - 25 de abril - 40 anos, 77

Fotografia de Hélder Gonçalves

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

Fiama Hasse Pais Brandão
.

sexta-feira, abril 25

O POETA - 25 de abril - 40 anos, 76



Fotografia de Hélder Gonçalves

Trabalha agora na importação e exportação. Importa
metáforas, exporta alegorias. Podia ser um trabalhador por conta própria,
um desses que preenche cadernos de folha azul com números
de deve e haver. De facto, o que deve são palavras; e o que tem
é esse vazio de frases que lhe acontece quando se encosta
ao vidro, no inverno, e a chuva cai do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol e exportar as nuvens. Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas, de certo modo, a sua
prática confunde-se com a de um escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que passa a caminho da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu; e fixa, na dureza da noite,
o bater de asas, o azul, a sábia interrupção da morte.

FOI BONITA A FESTA, PÁ

quinta-feira, abril 24

sem título - 25 de abril - 40 anos, 75




Fotografia de Hélder Gonçalves


No verão, por vezes, o vento Leste invade
a urbe. O vento da meseta – que o povo
diz não trazer nada de bom -, seca tudo
na sua frente. Também a cidade
está cheia de pessoas que secam tudo
na sua frente. Só conhecem pássaros
em gaiolas, árvores em toros
para crepitarem nas lareiras. O vento
cai, os insectos que arrastou
adubam os canteiros. As pessoas
duram todo o ano, estão sempre
vigilantes nas suas teias. De quem
falo – perguntas –. Ignoro! Abri
o computador a pensar num poema
e o texto foi invadido por um vento
cálido que não sei
para onde se dirige. Esperarei
Setembro, outra atmosfera, poderei
sair de casa, ir até ao correio,
escrever mensagens em que as aves
chilreiem, façam ninhos primaveris,
e pensar a cidade como se eu fosse
um forasteiro, com olhos de espanto:
carregar a memória com o crepúsculo,
coleccionar metáforas para,
no regresso, depositar
sob o teu olhar, avançar a mão
para a floresta, galopar intra-muros,
ouvir depois o boletim meteorológico
para saber onde iremos amanhã.


quarta-feira, abril 23

Sem título - 25 de abril - 40 anos, 74



Fotografia de Hélder Gonçalves

   Para que nasças no mês anterior
Para que nasças muito antes de chegares

Para que amanheças já aberta e recortada
No tempo anterior à tua vinda
Para que amanheças
Ó rosa anterior

Para que venhas
Mesmo antes de seres compreendida. Ainda
Antes da terra te poder gerar. Ó rosa
Já florida