sexta-feira, janeiro 2

COM QUE ENTÃO LIBERTOS, HEIN?.



Com que então libertos, hein? Falemos de política,
discutamos de política, escrevamos de política,
vivamos quotidianamente o regressar da política à posse de cada um,
essa coisa de cada um que era tratada como propriedade do paizinho.
Tenhamos sempre presente que, em política, os paizinhos
tendem sempre a durar quase cinquenta anos pelo menos.
E aprendamos que, em política, a arte maior é a de exigir a lua
não para tê-la ou ficar numa fúria por não tê-la,
mas como ponto de partida para ganhar-se, do compromisso,
uma boa lâmpada de sala, que ilumine a todos.
Com o país dividido quase meio século entre os donos da verdade e do poder,
para um lado, os réprobos para o outro só porque não aceitavam que
não houvesse liberdade, e o povo todo no meio abandonado à sua solidão
silenciosa, sem poder falar nem poder ouvir mais que discursos de salamaleque,
há que aprender, re-aprender a falar política e a ouvir política.
Não apenas pelo prazer tão grande de poder falar livremente
e poder ouvir em liberdade o que os outros nos dizem,
mas para o trabalho mais duro e mais difícil de - parece incrível - 
refazer Portugal sem que se dissipe ou se perca uma parcela só
da energia represa há tanto tempo. Porque é belo e é magnífico
o entusiasmo e é sinal esplêndido de estar viva uma nação inteira.
Mas a vida não é só correria e gritos de entusiasmo, é também
o desafio terrível do ter-se de repente nas mãos
os destinos de uma pátria e de um povo, suspensos sobre o abismo
em que se afundam os povos e as nações que deixaram fugir
a hora miraculosa que uma revolução lhes marcou. Há que caminhar
com cuidado, como quem leva ao colo uma criança:
uma pátria que renasce é como uma criança dormindo,
para quem preparamos tudo, sonhamos tudo, fazemos tudo,
até que ela possa em segurança ensaiar os primeiros passos.
De todo o coração, gritemos o nosso júbilo, aclamemos gratos
os que o fizeram possível. Mas, com toda a inteligência 
que se deve exigir do amadurecimento doloroso desta liberdade
tão longamente esperada e desejada, trabalhemos cautelosamente,
politicamente, para conduzir a porto de salvamento esta pátria
por entre a floresta de armas e de interesses medonhos
que, de todos os cantos do mundo, nos espreitam e a ela.

Jorge de Sena

SB, 2/5/74

POEMAS "POLÍTICOS E AFINS" (1972-1977)
In "40 ANOS DE SERVIDÃO"

O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

*

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O'Neill

In ”Tempo de Fantasmas”
“Cadernos de Poesia” – Fascículo Onze - Segunda Série
Novembro de 1951

quinta-feira, janeiro 1

1 de Janeiro


Primeiro dia do ano da graça de 2015. Não sei o que escrevi, por aqui, desde 2004, no primeiro dia dos últimos dez anos. Insisto, por gosto, em manter este espaço escrevendo quase sempre directo na tela esbranquiçada. O tempo tende a corroer a memória e a percepção desse fenómeno leva-me a preservar um espaço público (que sei que é restrito) no qual a possa evocar. A evocação da memória que está ao meu alcance evocar e que muitos dos meus amigos visitantes (alguns amigos pessoais) não se importam em comigo partilhar. Não me sentiria de bem comigo sem a sua presença, sua atenção atenta e crítica, que é parte da construção deste espaço de comunicação sem custos, nem constrangimento a fidelidades certas. Prossigamos.

terça-feira, dezembro 30

2014/2015

                                                      Arcos de Valdevez - (1966)

    Ao longo de tanto tempo a escrevinhar por aqui e por ali, sem destinatários pré definidos, reparo que muitos nomes, rostos e vozes, se esconderam, silenciaram ou desapareçam. Ressoa na minha cabeça a sua lembrança. É a lei da vida, no ronronar do tempo, e curvo-me perante a inevitabilidade do esquecimento de uns e pela memória de outros que permanece viva em mim. Prossigamos!

segunda-feira, dezembro 29

2015

                                                  Ana Hatherly - ABAIXO A GUERRA

      As previsões para 2015 surgem em catadupa. E somente tomamos conhecimento de muito poucas... O circulo delas estreita-se e, finalmente, fecha-se em torno de cada um de nós. Mesmo neste circulo pessoal, uninominal, é difícil fazer previsões. Costumo sintetizar o que mais desejo para familiares e amigos com uma palavra que encerra o mais importante: saúde! E acrescento outra, sem ironia: prosperidade! Para todas e todos.

domingo, dezembro 28

2014


Balanços do ano, cada um faz os seus, em tempo de desencanto como sempre acontece quando esmorece a esperança fundada em expectativas herdadas de um tempo que acabou. Os "trinta anos gloriosos", do pós II guerra mundial, deram lugar a tempos de abrandamento do crescimento, estagnação, atenuação do papel do Estado, libertando as chamadas forças do mercado.  Uma história que se repete ciclicamente com guerras de permeio, ou conflitos regionais, que destroem riqueza, transferem rendimentos do trabalho para o capital, ou vice versa. O certo é que os longos ciclos, que podem ser lidos através de séculos, não iludem as necessidades e expectativas do homem no seu tempo concreto. Daí a  ilusão ou a desilusão, a revolta ou o acomodamento. É só escolher a quem pode escolher.

sábado, dezembro 27

A BELEZA


“Pequena baía antes de Tenés, na base de uma cadeia de montanhas. Semicírculo perfeito. Ao cair da noite uma plenitude angustiada plana sobre as águas silenciosas. Compreende-se então porque é que os Gregos formaram a ideia do desespero e da tragédia sempre através da beleza e do que nela há de opressivo. É uma tragédia que culmina. Ao passo que o espírito moderno produz o seu desespero a partir da fealdade e do medíocre.
É o que Char quer dizer talvez. Para os Gregos, a beleza é o ponto de partida. Para um europeu, é um fim, raramente atingido. Não sou moderno.” 


Albert Camus, in Caderno nº5 (Setembro de 1945/ Abril de 1948).

segunda-feira, dezembro 22

MES - 40º ANIVERSÁRIO DO I CONGRESSO (Pela última vez desta vez)


Passam por estes dias de solstício de inverno (21 e 22 de dezembro) 40 anos sobre o I Congresso do MES. Para quem não saiba, por razões da usura do tempo, trata-se de um pequeno partido político criado, de facto, imediatamente antes do 25 de abril de 1974 mas formalizado somente após a restauração das liberdades, em data imprecisa no plano burocrático, mas precisa no plano político, a meu ver, na manifestação do 1º de maio de 74, em Lisboa, através da inscrição da sua sigla – ainda sem símbolo - num pano que muitas generosas mãos arvoraram. 

Foi longo o período de gestação do MES, ainda mais se medido à velocidade vertiginosa dos acontecimentos pós 25 de abril de 1974, sendo o seu I Congresso realizado somente cerca de oito meses após o dia 25 de abril. Naquele contexto oito meses era uma eternidade … Este processo, trespassado por lutas e debates, teve muitos e ilustres protagonistas oriundos de diversos sectores da oposição à ditadura. Muito já foi escrito, estudado e debatido acerca da ditadura, seus protagonistas e processos (apesar de alguns, nos quais me incluo, acharem que foi pouco).

O despretensioso escrito que dou à estampa deve-se, no essencial, à necessidade que sinto, de manter viva a memória e divulgar nomes de cidadãos – dos quais somente uma meia dúzia têm notoriedade pública - que partilharam a experiência única, e irrepetível, de participarem numa revolução. De onde surgiram, o que os impeliu a reunirem-se sob uma mesma bandeira, o que os entusiasmou, o que ganharam e perderam, quando, e como, se desiludiram, quais os percursos pessoais e profissionais que percorreram não vem ao caso.

O que quero mesmo, repetidamente, de forma consciente e voluntária, é colocar a memória e os nomes de protagonistas do MES (infelizmente somente parte deles) não como resquício de um passado glorioso, mas como legenda de um acontecimento histórico concreto que permitiu restaurar, apesar de todas as faltas e erros, o mais precioso bem de que uma comunidade humana se pode orgulhar, a liberdade. Aquisição que, como todos sabemos, nunca é definitiva conquistando-se, a duras penas, no quotidiano da vida, ontem, hoje e amanhã. 
 
Tenho escrito acerca do MES, que o mesmo é dar rosto a pessoas que, a partir da segunda metade do século XX, fizeram parte de um relevante sector intelectual não-alinhado com o Partido Comunista, de um segmento do movimento sindical/operário de base forjado num programa inovador de cariz, assumidamente, anti capitalista, de um núcleo duro do movimento estudantil que se havia radicalizado, saindo da órbita dos comunistas e dos grupos maoistas, após as lutas de 1969 e de uma franja significativa do movimento católico progressista que se bateu duramente, em particular, contra a guerra colonial.

As confluências de diversas correntes sectoriais, através dos seus activistas, no MES foi possível pela acção de muita gente que assumiu simples, ousadas ou mesmo inúteis tarefas, assumindo um papel relevante em cada uma delas, que não sou capaz de fazer caber neste escrito, mas que me apetece referenciar, correndo o risco do subjectivismo de meu juízo, algumas individualidades que muito influenciaram o desenvolvimento da curta história do MES.

Serei inevitavelmente injusto para muitos amigos que prezo mas preciso, neste breve exercício, de ser sucinto.

- No sector intelectual, Nuno Brederode Santos que, como já descrevi noutras crónicas, com descrição e rara inteligência/intuição política, foi o verdadeiro mentor da opção pela saída do MES da corrente política que sempre foi publicamente associada à liderança de Jorge Sampaio, a sua personalidade de referência mais marcante em termos políticos e com notoriedade pública até ao presente;

- No sector sindicalista/operário António Santos Júnior, líder incontestado do movimento operário, com origem nas lutas da TAP, que havia de encabeçar uma lista vencedora nas eleições do Sindicato dos Metalúrgicos, sendo silenciado quando se preparava para tomar a palavra no comício do 1º de maio em nome do MES e Agostinho Roseta, desde sempre ligado de forma continuada, e persistente, à acção politico-sindical que originou uma corrente sindical não comunista que haveria de desembocar, com todas as suas vicissitudes, na UGT;

- No movimento estudantil Alberto Martins, pelo papel desempenhado no despoletar da crise académica de 1969 em Coimbra, afrontando de forma desabrida os ditamos do regime e Ferro Rodrigues no movimento estudantil de Lisboa, em particular, em Económicas que havia sido transformada, após 1968, na peugada do movimento de Maio em França, numa espécie de "território libertado”;

- No movimento dos católicos progressistas, Nuno Teotónio Pereira, oriundo de famílias conservadoras, com obra de referência na actividade profissional de arquitecto, tendo vindo a tornar-se numa referência incontornável na luta contra a guerra colonial, e a ditadura, para as novas gerações e Vítor Wengorovius, o mais intenso mobilizador de vontades, o orador mais infatigável de todos, sempre buscando consensos, superando divergências  e reparando relações.

(Manuel Serra adversário direto, e assumido, de Mário Soares no I Congresso do PS, realizado a uma semana de distância do I do MES, no mesmo local, contou-me, na última conversa antes de falecer, que havia reunido com VW para desafiar o MES a aderir ao PS logo em dezembro de 1974, criando condições para ganhar aquele Congresso, o que VW nunca me revelou.)

O MES constituiu-se, formalizando-se, num Partido a custo pois as suas raízes beberam muito da ideologia libertária, que havia esmorecido ao longo do período da ditadura, mas que César de Oliveira fez retornar propondo, e fazendo vencer, a consigna que o MES adaptou nos seus primórdios: «A emancipação dos trabalhadores tem de ser obra dos próprios trabalhadores».

O MES foi, na verdade, um partido minoritário de elites, e de causas perdidas, nunca se assumindo como projecto politico de poder, abordando as eleições às quais concorreu – constituintes de 1975 e legislativas de 1976 - com um surpreendente espírito de cruzada pedagógica junto dos portugueses, que nunca haviam conhecido a cor da liberdade, razão pela qual, sem apelo nem agravo, em todas foi estrondosamente derrotado.

O MES foi, no seu âmago, um partido da esquerda radical, mais do que um partido esquerdista, lidando mal com alinhamentos ideológicos mesmo aquando da sua deriva marxista-leninista, reconheçamo-lo, uma mera proclamação artificial e dolorosamente patética. O MES foi um esboço de casa comum na qual se acolheram cidadãos desalinhados – livres de compromissos com o antigo regime - que aspiravam combater as brutais desigualdades e iniquas misérias herdadas do “Estado Novo”. 

Nele se acolheram uma plêiade de altos quadros intelectuais, operários, sindicalistas, estudantis, activistas de movimentos sociais emergentes, com escassa experiência política, que na voragem de um singular tempo de brasa, sonhavam – sob diversos e contraditórios ideários socializantes - a mudar tudo na sociedade portuguesa fazendo do MES, na sua breve existência, antes e pós I Congresso de 21 e 22 de dezembro de 1974, um espaço de rebeldia e, no período fundador, de criatividade como revelam, por exemplo, as designações de inúmeras estruturas criadas e a obra gráfica, criada por Robin Fior, para a criação de uma imagem para o MES.

O MES foi, por fim, um partido que ousou auto extinguir-se – se bem que nem todos os que nele tomaram parte tenham concordado com o “sacrifício” - tendo cada um dos seus membros, ao longo do tempo, saído, em liberdade, dando ca aminho às suas vidas nos mais diversos caminhos. Extinguindo-se, por ato público o MES assumiu, de forma radical, o fracasso do seu projecto político salvando a essência dos sonhos que presidiram à sua criação.

Um Movimento que influenciou uma geração inteira e que, 40 anos passados, deixou um legado de luta por causas que genuinamente foram (e são) assumidas por justas, porque fundadas na aspiração à igualdade, justiça social e liberdade.

Que viva!

domingo, dezembro 21

I Congresso do MES – Um almoço tardio? (40º aniversário)



Passam hoje 40 anos sobre a realização do I Congresso do Movimento de Esquerda Socialista (MES), realizado nos dias 21 e 22 de dezembro de 1974, na Aula Magna da Cidade Universitária, em Lisboa. A propósito desta efeméride que me interessa evocar, não por saudosismo, mas por respeito aos que participaram nos acontecimentos do 25 de abril reunidos, de forma mais ou menos formal, em torno do projeto do MES, deixo um post do Nuno Brederode Santos, publicado nos Caminhos da Memória em resposta ao de minha autoria que ontem reproduzi. 
A efeméride ocorre no dia do solstício de inverno de 2014 pelo que celebro também essa extraordinária coincidência astral entre estas duas datas separadas por 40 anos. 
Meu caro Eduardo: 
Começo, se mo permites, pela matéria dos autos, com comentários pontuais. 
Talvez nem te esteja a corrigir, mas o que admito é que, à partida para o Congresso fundacional do MES, eu queria que os meus amigos (pessoais e políticos) saíssem. Isto era do pleno conhecimento de alguns, o que não significa que merecesse a sua concordância. Porque a quase totalidade foram para lá na melhor fé, embora sabendo que havia o risco de não terem margem para ficar. Aquilo em que eu diferia deles nem é, pelo menos no comum das situações, muito bonito: e, por isso, lhe chamei «reserva mental». Para corresponder à honestidade intelectual com que vens tratando do assunto – um assunto em que estás completamente envolvido – senti-me na obrigação compulsiva de te fazer saber que havia quem, do outro lado (o meu), tivesse por aliados os «zulus» que queriam correr com os «doutores». 
Ora isso não faz de mim «tenor». Mesmo que eu tivesse qualidades pessoais para isso, ou a ambição disso – o que não era manifestamente o caso – não conseguiria sê-lo: cheguei a essa novela muito tarde e, ainda por cima, tinha de lidar em simultâneo com velhos amigos, que conhecia de ginjeira, mas também com outros, que eles bem conheciam e eu não (por se tratar de amizades que eles fizeram desde 69/70, ou seja, quando começou a minha ausência «militar»). 
O que eu fiz reflecte, aliás, o que te digo: ao datar a minha carta de saída do primeiro dia dos trabalhos, eu coloquei-me na posição, de pressionar os outros, é certo, mas também na de eu próprio já não ter recuo. Afundei as caravelas, como o Cortez. Mas até nisso há distinções. Porque outro signatário, que foi o J. M. Galvão Telles, foi sendo empurrado para essa atitude. Mas não havia nele senão abertura: e a prova, que tu mesmo já invocaste, é que levou a «militância» ao ponto de arranjar uma sede de que era ele, obviamente, o verdadeiro penhor. 
O que eu queria não fica retratado com aquilo a que chamas «federação inorgânica de grupos convergentes», porque era mais simples (ainda que pouco maduro, admito hoje). O que eu queria era que entrássemos para o PS, mas ganhando o tempo de um compasso de espera com dois fins: a) O primeiro e mais importante, era deixar passar a fase do PS como cabeça da frente nacional de resistência ao esquerdismo (o que arrastaria também o desbloqueamento de algumas tensões que subsistiam entre o Melo Antunes e «os 9», de um lado,  e a direcção do PS, do outro); o segundo era permitir a «digestão» e  o «luto», de que a maior parte dos meus amigos políticos carecia após o malogro da aposta no MES. 
Era, pois, necessário um interinato. E, para esse, eu queria um «grilo do Pinóquio», um «clube» de reflexão ao qual, numa carta que ainda enviei de Moçambique, eu chamava, assumindo o paradoxo, um «PSU sem carácter partidário». De facto, a «coisa» tinha de ser compatível com filiações partidárias. Por exótica que tal liberdade hoje pareça. Basta citar o caso do César Oliveira, que não aceitaria acompanhar uma saída conjunta, se ficasse tão dela prisioneiro quanto se sentia no MES. Ora, com pequenas adaptações, foi o que veio a suceder com a saída do MES em grupo e a criação do grupo de Intervenção Socialista (que durou até à nossa entrada para o PS, em 1978) não andou longe disso. 
Quanto ao decurso do Congresso. De facto, já sabíamos que a maioria (a tal a que eu chamava «zululãndia») iria fazer valer os seus direitos e colocar os «doutores» em minoria. Mas havia dois imponderáveis. O primeiro era saber se resistiriam, no contexto da época, à assunção formal do marxismo-leninismo. O segundo era quais os sinais que dariam a essa minoria, indiciadores da tolerância e flexibilidade com que se preparavam para tratá-la. Ora as respostas dadas foram ambas claras. 
Na primeira questão, porque o obreirismo patente nalguns discursos já falaria por si mesmo, mas o marxismo-leninismo foi, de facto, formalmente proclamado na moção que viria a ser a vencedora. Na segunda questão, porque os discursos da maioria podiam reflectir três hipotéticas atitudes: afirmar princípios, mas ressalvar algum pluralismo; fingir – algo «arrogantemente», diria eu – que a minoria nem existia; ou, na prática, convidá-la a sair. A nossa percepção foi a de poucos discursos se terem colocado na primeira hipótese, quase todos se colocando na segunda e o Afonso ter encarnado explicitamente a terceira (numa resposta explícita e «ad hominem» ao discurso anterior do Jorge Sampaio). Claro que o factor geracional – eu diria mesmo de amizade pessoal – que a muitos de nós ligava o Afonso teve o efeito «demolidor» de que tu falas.
Para terminar, quero só esclarecer que não foram poucas as pessoas que quiseram então largar o nascente MES, mas sem qualquer propósito de virem a ligar-se ao PS ou a qualquer outro partido. O César, por exemplo, viria a militar na UEDS; o João Bénard ou a Luísa Castilho são exemplos dos muitos que, nos primórdios de 1978, não quiseram acompanhar a entrada no PS e preferiram ficar independentes.
Quanto ao resto, meu caro Eduardo, não estou em condições de discutir o muito mais que vais apreciando e comentando: a aventura do MES até ao fim. Mas reitero que muito me impressionou o teu raríssimo e genuíno esforço de autocrítica, nos textos que já publicaste na blogosfera. Além do mais, gostei muito da conversa. E nem desgostei da refeição. É, pois, uma experiência a repetir, se e quando estiveres para aí virado.
Abraço
Nuno

sábado, dezembro 20

A SOCIEDADE DOS NEGOCIANTES ...


    A sociedade dos negociantes pode definir-se como uma sociedade na qual as coisas desaparecem em proveito dos signos. Quando uma classe dirigente avalia as suas riquezas, já não pelo hectare de terra nem pelo lingote de oiro mas pelo número de cifras que idealmente correspondem a um certo número de operações de câmbio, dedica-se ao mesmo tempo a pôr uma certa espécie de mistificação como centro da sua experiência e do seu universo. Uma sociedade fundada nos signos é, na sua es...sência, uma sociedade artificial em que a realidade carnal do homem se acha mistificada. Ninguém então se admirará de que essa sociedade tenha escolhido, para dela fazer a sua religião, uma moral de princípios formais, e de que grave as palavras liberdade e igualdade tanto nas suas prisões como nos seus templos financeiros. Entretanto, não é impunemente que se prostituem as palavras. O valor hoje mais caluniado é certamente o valor da liberdade. Bons espíritos (…) fazem doutrina de ela não ser senão um obstáculo ao verdadeiro progresso. Mas se disparates tão solenes puderam ser proferidos foi porque, durante cem anos, a sociedade negociante fez da liberdade um uso exclusivo e unilateral, considerou-a mais como um direito do que como um dever e não receou pôr, tão frequentemente quanto pôde, uma liberdade de princípio ao serviço de uma opressão de facto.

    Albert Camus, in Discursos da Suécia (Conferência de 14 de dezembro de 1957 - Universidade de Upsala).


I Congresso do MES – Um almoço tardio com o Nuno Brederode Santos


A minha conversa com o Nuno Brederode Santos foi, além do prazer por desfrutar da companhia de uma personalidade fascinante, muito esclarecedora acerca de diversos aspectos substanciais, e de detalhe, que sempre haviam permanecido, para mim, um mistério no que respeita ao desenlace do I Congresso do MES. Este post que escrevi a propósito dessa conversa, e o seguinte, de autoria do Nuno, como resposta/esclarecimento à minha interpretação das circunstâncias em que decorreu o I Congresso (que publicarei amanhã), são o contributo possível para não deixar adormecidas nas memórias daqueles que foram protagonistas dos acontecimentos explicações que, apesar da sua subjectividade, assentaram no racional possível num contexto politico de desenfreada exaltação.  

Julgo não cometer nenhuma inconfidência grave se revelar que, um dia destes, almocei com o Nuno Brederode Santos. Os anos passaram e as minhas incursões pelas memórias do MES fizeram despertar nele, no meu entendimento, a necessidade de uma reflexão acerca de algumas reservas mentais que apimentaram a batalha do I Congresso do MES nos finais do ano da graça de 1974. 
Curiosamente ficámos a saber, no decurso do repasto, que o nosso regresso às lides políticas, ocorreu em Outubro desse ano pelas mesmíssimas razões. Ele «guerreava» em Moçambique, no curso de uma longa comissão na guerra que combatíamos, eu «guerreava» na magna tarefa de instruir levas de milicianos – alguns deles ilustres intelectuais da nossa praça – habilitando-os para a deserção ou para o combate numa das frentes dessa guerra, para nós, desditosa. 
Além de agradável, no plano pessoal, como haveria sempre de ser, a conversa revelou-me algumas facetas do primeiro conclave do MES que se me haviam varrido da memória e que, como consequência, levaram a omissões involuntárias nas anteriores deambulações que empreendi acerca do tema. Não é que a coisa tenha uma importância por aí além mas, na verdade, nunca me tinha apercebido de que o Nuno, ele próprio, fora um dos principais, senão o principal, tenor da tese da ruptura. 
Se tivesse sido alcançada uma conciliação de posições permitindo manter a unidade, que acabou por se quebrar com estrondo no I Congresso do MES, seria uma derrota para a sua tese que, pelo que entendi, preconizava a criação de uma espécie de federação, inorgânica, de grupos convergentes que, sem um compromisso demasiado vincado com as forças partidárias emergentes, permitiria ganhar tempo, congregando vontades, para a formulação de um programa político à margem da inevitável opção entre um «compromisso histórico entre famílias socialistas» ou uma deriva esquerdista. 
O Nuno revelou-me ainda algo que se me tinha varrido da memória e que, na sua opinião, foi um factor decisivo, pelo seu efeito psicológico, na consumação da ruptura com o MES daquele que seria conhecido como o grupo de Jorge Sampaio: uma intervenção radical, em pleno Congresso, de Afonso de Barros, filho de Henrique de Barros que, por razões geracionais era tido como elemento próximo do grupo com o qual, naquele momento, romperia de forma brutal. 
Com essa intervenção de Afonso de Barros, da qual não me lembro uma palavra, NBS deu, de imediato, como adquirida a vitória da sua tese, fundada numa confessada reserva mental, ou seja, a da inevitabilidade da ruptura ainda antes da formalização do MES como partido político. Pois sendo a ruptura consumada num momento anterior ao acto final do I Congresso, não seria a reserva mental que presidiu à estratégia dos dissidentes revelada nem estes jamais seriam dissidentes de um partido ao qual, afinal, nunca haviam aderido.
Com esta revelação mais se vincou a ideia, que sempre tenho acalentado, de que teria sido possível celebrar um acordo entre as partes desavindas, com o empenho de meia dúzia daqueles a que NBS sempre designou por «zulus», derrotando a sua tese que, acabou por sair vencedora aproveitando a imaturidade, pessoal e política, da maioria desses «zulus» entre os quais eu me incluía.
Assim andámos todos, de um e outro lado, anos a fio, na dúvida acerca do lugar exacto, e do papel de cada um, nos acontecimentos dos primórdios do MES como se fosse importante manter reservas e distâncias quando a ruptura, provavelmente, nunca se chegou a concretizar pelo simples facto de nunca se ter criado o «corpus partidário» que poderia ter sido alvo dela.
O MES foi, porventura, um mal entendido extinto por quase todos os que se haviam confrontado no I Congresso, através do celebrado, e inédito, convívio de 7 de Novembro de 1981. Só faltam esclarecer uns pormenores que, com a passagem do tempo, se refinaram ganhando a patine das preciosidades inúteis que todas as famílias rejubilam em poder contar como património comum.
Post publicado nos Caminhos da Memória

sexta-feira, dezembro 19

MES – Os dirigentes eleitos no I Congresso (IV)


Retornando ao objectivo inicial deste conjunto de crónicas é evidente que nenhum dos subscritores do documento referido no post «MES – O DOCUMENTO DA RUPTURA DO GRUPO DE JORGE SAMPAIO NO I CONGRESSO (III)» integrou os órgãos dirigentes saídos do I Congresso por terem abandonado o Movimento ou, numa versão politicamente mais distanciada, o Movimento os ter abandonado a eles. Mas nem por isso deixaram de ficar para a história como dirigentes do MES pois, na realidade, o foram, em plenitude, no período que antecedeu o I Congresso.

Finalmente os dirigentes que foram eleitos pelo I Congresso para a «Comissão Política Nacional», «o organismo dirigente máximo do MES entre Congressos», podem ser vistos, sentados, na mesa da sessão de encerramento do Congresso: Jerónimo Franco, Fernando Ribeiro Mendes (*), Afonso de Barros (*), Carlos Pratas, Augusto Mateus (*), José Dias, Nuno Teotónio Pereira (*), Rogério de Jesus (*), Francisco Farrica (*) e António Machado.

Foram também eleitos para a CPN outro grupo de dirigentes, que também tomaram lugar na mesa, embora não surjam nesta fotografia: Edilberto Moço (*), Paulo Bárcia (Didas), Vítor Wengorovius (*), Marcolino Abrantes (*), Luís Martins (*), Vítor Silva (*) e Celso Cruzeiro (*)  [1] [2].

E, finalmente, foram eleitos para a CPN outro grupo de dirigentes, cujos nomes, não foram tornados públicos: João Mário Anjos (*), Eduardo Graça (*) e Eduardo Ferro Rodrigues (*), no meu caso e no do João Mário, por termos cessado o cumprimento do serviço militar, havia poucas semanas, e no caso do Ferro Rodrigues por estar, à data do Congresso, a cumprir serviço militar.

Julgo ainda interessante fazer uma referência ao pano de fundo do I Congresso que foi desenhado, em parte, com os pés. Queríamos fazer transbordar o símbolo do seu círculo fechado, subvertê-lo, criar uma imagem de movimento, mostrar um partido como lugar de caminhada e de encontro, um lugar de todas as utopias.

A Luísa Ivo que, amavelmente, me enviou a fotografia acrescentou alguns detalhes:
«o congresso iniciou-se sem o pano; estive com o Tolas, durante essa manhã, a continuar ou a terminar a pintura. A Mafalda controlava o processo. A uma certa altura eu e ele decidimos que deveriam aparecer mais marcas de pés a entrar para o círculo do que a sair. Então ele molhou os pés na tinta, foi até ao centro, fez o pino e saiu a caminhar com as mãos no chão e os pés para cima… Só nessa altura soube que ele praticava ginástica a um nível muito avançado!».
A fotografia fixa um momento da sessão de encerramento, no dia 22 de Dezembro de 1974, no qual está em palco Rossana Rossanda, consagrada dirigente da esquerda italiana, representante do movimento IL Manifesto, acompanhada, ao que me parece, por Manuel Braga da Cruz que traduzia o seu discurso para português.

Rossana, tal como Luciana Castellina, visitaram Portugal, mais do que uma vez
no período da revolução, ao contrário de Lúcio Magri e de Luigi Pintor, todos do mesmo grupo de dissidentes do PCI, fundadores do IL Manifesto.

[1] Esta lista de membros da CPN foi fixada após ter sido, por mim, cotejada com outras fontes. O facto de integrar 20 elementos faz crer que corresponde a uma das alternativas que constam da «proposta de bases estatutárias» apresentada ao Congresso.

[2] Assinalo com (*) os nomes que tendo pertencido à CPN, eleita no I Congresso, transitaram para o Comité Central eleito no II Congresso, realizado em Fevereiro de 1976.

(In Caminhos da Memória, republico a propósito do 40ª aniversário do I Congresso do MES.)

ABSORTO - 11º ANIVERSÁRIO

Fotografia de Hélder Gonçalves 

Deixar uma marca

Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,

nada dever ao esquecimento que esvazia o sentido do perdão olhando o mundo e tomando a medida exacta da nossa pequenez,

atravessar a solidão, esse luxo dos ricos, como dizia Camus, usufruindo da luz que os nossos amantes derramam em nós porque por amor nos iluminam,

observar atentos o direito e o avesso, a luz e a sombra, a dor e a perda, a charrua e a levada de água pura, crer no destino e acreditar no futuro do homem,

louvar a Deus as mãos que nos pegam, e nunca deixam de nos pegar, mesmo depois de sucumbirem injustamente à desdita da sorte ou à lei da vida,

guardar o sangue frio perante o disparar da veia jugular ou da espingarda apontada à fronte do combatente irregular,

incensar o gesto ameno e contemporizador que se busca e surge isento no labirinto da carnificina populista,

ousar a abjecção da tirania, admirar a grandeza da abdicação e desejar a amizade das mulheres,

admirar a vista do mar azul frente à terra atapetada de flores de amendoeira em silêncio e paz.

(um programa para o absorto)

quinta-feira, dezembro 18

MES – O documento da ruptura do grupo de Jorge Sampaio no I Congresso (III)


Dando sequência à republicação dos posts publicados em 2008 nos Caminhos da Memória, tomando por tema os "dirigentes fundadores", surge este que faz uma abordagem da questão política mais relevante que esteve presente desde a preparação até à realização do próprio I Congresso do MES.  40 anos depois ... imaginem!

Pretendia abordar, tão só, a temática dos dirigentes fundadores do MES, neste caso os que foram eleitos no I Congresso, realizado nos dias 21 e 22 de Dezembro de 1974, na Aula Magna da Cidade Universitária, de Lisboa. Mas, neste caso, terei que ser um pouco mais extenso já que o I Congresso, como é do conhecimento geral, foi marcado pela cisão protagonizada pelo grupo que viria a dar origem ao GIS («Grupo de Intervenção Socialista»).

Esse conjunto de activistas do MES apresentou ao Congresso um longo, e muito bem estruturado, documento intitulado: O MES E A ACTUAL FASE DA LUTA REVOLUCIONÁRIA – AS TAREFAS IMEDIATAS DO MOVIMENTO, datado de 30 Novembro de 1974, subscrito por Armando Trigo e Abreu, César Oliveira, Francisco Soares, Joaquim Mestre, João Bénard da Costa, João Cravinho, Jorge Sampaio, José Manuel Galvão Teles e Nuno Brederode Santos [1].

Reli, quase 34 anos depois, com os olhos de hoje, as 39 páginas (3 delas quase ilegíveis) do documento em apreço e senti uma inesperada sensação de espanto e perplexidade acerca das razões dessa ruptura protagonizada por algumas das personalidades mais proeminentes da esquerda portuguesa.

Serei o mais breve possível, atendendo, em particular, à natureza deste meio, tomando como base desta reflexão o reencontro tardio com um documento que pairava na minha memória e que logo na apresentação toma todos os cuidados sendo apresentado, pelos seus autores, como base de uma iniciativa destinada a «contribuir para o debate interno com vista à preparação do Congresso».
Há neste documento, pelo menos, dois aspectos a sublinhar:

1) Desde logo o seu título: O M.E.S E A ACTUAL FASE DA LUTA REVOLUCIONÁRIA – AS TAREFAS IMEDIATAS DO MOVIMENTO que parece denotar uma verdadeira, e autêntica, intenção de participação. No documento é apresentada uma proposta de metodologia e são avançados os temas destinados a alimentar a discussão no qual avultam dois pontos genéricos: «Análise da situação actual e as tarefas imediatas” e as «Linhas Programáticas Sectoriais». No entanto, atentas as datas e a memória que guardo, a discussão, anterior ao Congresso, foi bastante irrelevante o que demonstra que a iniciativa deste grupo de personalidades, tendo sido precedida de um confronto prático aceso acerca do papel de um Partido de «esquerda socialista» naquele concreto «processo revolucionário», deve ter sido encarada como uma espécie de anúncio e explicação de uma ruptura inevitável.

2) O documento surge, em qualquer caso, como uma tentativa notável, no contexto da época, de encontrar os temas e o tom para um debate sério em torno de «soluções políticas», ou seja, das diversas alternativas de regime político que se poderiam perfilar como saída possível para a designada «actual fase da luta revolucionária». É notório, ao longo do texto, que os autores não escaparam à utilização dos estereótipos da linguagem revolucionária nem à adopção de propostas cujo teor – à luz dos condicionalismos da época – poderiam ter sido, caso tivesse havido vontade e capacidade negocial de ambas as partes, uma boa base para a criação de um partido que teria, certamente, relevância política e eleitoral após aquele Congresso inaugural. Assim não aconteceu e, pela parte que me toca, muito me penalizo por isso.

Poder-se-á questionar, então, quais as diferenças políticas entre as duas posições que se confrontaram no I Congresso do MES e as verdadeiras razões da ruptura que se produziu para além dos aspectos meramente pessoais que, tendo existido, terão sido irrelevantes. Não vou tentar construir uma teoria acerca do assunto. Mas é de todo evidente que no período que decorreu desde as vésperas do 25 de Abril de 1974 até ao final do mês de Dezembro desse ano, data de realização do I Congresso, (os meses de uma verdadeira, e rara, «fusão revolucionária») se delapidou o capital de confiança, pessoal e política, que permitiria conciliar um modelo de «esquerda socialista», inspirado no PSU, de Rocard, e um outro de «esquerda revolucionária», influenciado pela ideologia da «democracia directa», designada por «Poder Popular», na linha da tradição anarco-sindicalista e dos movimentos revolucionários da América latina (Chile de Allende incluído), que pensava encontrar legitimidade no próprio curso dos acontecimentos que se viviam, freneticamente, em Portugal, sob o olhar atónito do mundo.

É claro que as propostas levadas ao debate por Jorge Sampaio, e seus companheiros, não deixavam de fazer referência ao «poder popular», mas preocupavam-se, numa leitura mais distanciada e atenta, em atenuar a deriva revolucionária como, por exemplo, quando se escrevia no final do ponto 3), intitulado, significativamente, «As soluções políticas»:
«A eventualidade da revolução socialista em Portugal e mau grado certo desenvolvimento das forças produtivas parece afastada, pelas razões seguintes:
a) A posição que Portugal ocupa no contexto capitalista europeu e internacional faz cair o país na órbita da esfera da influência americana e torna-o peça essencial no sistema da NATO e do imperialismo donde sairia com extrema dificuldade e necessariamente a médio ou longo prazo;
b) A ausência de memória colectiva das classes trabalhadoras e, por conseguinte, de uma consciência de classe e de organização autónomas dado, por um lado, a repressão fascista das lutas de classe e, por outro, o facto de toda a mobilização popular e luta politica se haver feito em torno da luta anti-fascista e democrática que conjugavam classes e sectores sociais com interesses objectivos diversos, o que implicou a confusão sistemática entre objectivos de luta proletária e objectivos de luta democrática.»
E este capítulo que escolhi como paradigma das dificuldades de afirmação de uma ideia de «reforma da revolução» remata com uma cautelosa, e surpreendente, solução que busca, em qualquer caso, atentos os condicionalismos da época, conciliar o inconciliável:
«Neste quadro restará questionar a viabilidade de uma solução que evitando o autoritarismo burguês e o militarismo progressista avance formas transitórias no sentido da instauração a médio ou longo prazo de um futuro regime socialista que se reconhece impossível de instituir a breve trecho.
Este projecto será revolucionário na medida em que se proporá a alteração das relações de produção substituindo a propriedade colectiva à propriedade privada mas terá de saber inserir-se no contexto específico da sociedade portuguesa actual evitando a transposição mecânica de estratégias ou modelos exteriores e a repetição verbalista de fórmulas vazias de conteúdo prático.»
O ponto 4), intitulado «A crise do reformismo e do esquerdismo», elabora, por outro lado, uma crítica radical às orientações políticas do PS e do PCP que culmina com a rejeição da chamada «democracia burguesa»:

«O reformismo, ao defender a democracia burguesa, apoia, no fundo, a única forma possível dessa democracia: o autoritarismo burguês de fachada democrática»; critica, depois, de forma não menos radical o «esquerdismo«, ou seja, a própria essência da orientação com a qual se confrontava no seio do MES: «O esquerdismo tem a vantagem da simplicidade e os inconvenientes da abstracção»; «O esquerdismo é incapaz de propor etapas, estádios, e objectivos intermédios susceptíveis de mobilizar as massas. O esquerdismo é, assim, uma teoria apocalíptica da tomada do poder»; «O esquerdismo esquece que todo o projecto político exige uma alternativa concreta e também uma aliança de forças políticas capazes de o apoiar e levar a cabo».

E depois de escalpelizar o reformismo e o esquerdismo conclui: «Saber ligar a mobilização de base à luta política, a luta no local de trabalho à luta global, ou seja, encontrar a tradução na instância política das lutas de massa, é tarefa revolucionária principal das organizações políticas verdadeiramente de esquerda.»

Mas é no ponto 6) do documento, sob o título O M.E.S. e as tarefas actuais que, deverá ter estado o busílis da questão da ruptura política deste I Congresso. Nunca abandonando a defesa da autonomia política do M.E.S., nem o jargão revolucionário próprio da época, os autores avançam com uma proposta de um «pacto» que permitisse
«agrupar um conjunto de forças políticas e organizações partidárias capazes de veicular, ao nível das instâncias políticas, a luta de massas e de traduzir politicamente essa alternativa apoiada nas massas (…) a constituição de um bloco de forças de esquerda não terá impacto político nem credibilidade se não for capaz de aliar as forças socialistas não dogmáticas com forças reformistas (P.C. e P. S) numa unidade de tipo popular» salvaguardando, no entanto, que «esta unidade pode não revestir a natureza de uma frente política limitando-se a um acordo sobre uma base de realizações mínimas aceitáveis pelo MFA».
O «pacto» político a que se faz apelo, fosse qual fosse a fórmula adoptada, e a sua viabilidade prática, teria uma repercussão significativa no posicionamento do MES face às eleições que estavam no horizonte:
«Julga-se que a participação eleitoral do M.E.S. se deveria fazer no âmbito do pacto político explicitado acima, agrupando um conjunto significativo de forças da esquerda, incluindo as reformistas, cujo apoio popular é inegável.
Este pacto político seria, no tocante à generalidade das forças agrupadas, um acordo de princípio salvaguardando a total autonomia política do M.E.S. e a possibilidade de explicitação da sua perspectiva revolucionária, alternativa ao reformismo e expressão da autonomia de classe do proletariado.»
Vista com o distanciamento que só a passagem do tempo permite, apesar de todas as salvaguardas, que este último parágrafo ilustra, as teses contidas nesta proposta apresentada ao I Congresso, na verdade, pouco discutida, estavam condenadas à derrota por uma maioria radicalizada sendo apelidadas de «posições oportunistas quase sempre encobertas na ambiguidade da fazer o “máximo de revolução possível”, o que sempre veio a dar em não “fazer “revolução nenhuma» [2] … originando a ruptura que designei, noutro texto, como «a primeira morte do MES».

[1] A Joana Lopes teve a amabilidade de me enviar uma cópia em papel desse documento pois, na verdade, não o tinha na minha posse.

[2] In «Relatório da Comissão Política ao II Congresso – 13, 14 e 15 de Fevereiro de 1976».

ALBERT CAMUS - o tempo ...

 

"O tempo não corre depressa quando o observamos. Sente-se vigiado. Mas tira partido das nossas distracções. Talvez haja mesmo dois tempos, o que observamos e o que nos transforma."

Albert Camus, in Cadernos

(Post de 21 de dezembro de 2003 com referência ao autor mas sem referência à obra. Na verdade a obra de Camus esteve desde o início presente como uma marca forte deste blogue. Não foi, no entanto, para divulgar a sua obra, pela qual me apaixonei desde a juventude, que foi criado. Foi criado porque senti a necessidade de dispor de um meio de comunicação pessoal que me permitisse manter uma ligação com os amigos num período difícil da minha vida. O tempo resolveu esse problema e, como sempre acontece, criou outros.)

quarta-feira, dezembro 17

RELAÇÕES USA/CUBA - UM PASSO DE GIGANTE



Em 11 de outubro de 2009 reproduzi um excerto de um artigo de Fidel Castro no qual este apoiava a atribuição do Nobel da Paz a Obama considerando-a uma medida positiva . Castro viu mais longe e Obama não desiludiu os amantes da paz e concórdia entre as nações. 

Estava em vias de manifestar a minha opinião de como as reacções à atribuição do Nobel da Paz a Obama permitem separar os campos entre os defensores consequentes da liberdade e da democracia e os outros. Mas não se podem fazer distinções apressadas, nem juízos definitivos, acerca das convicções dos homens e, muito menos, dos políticos. A confirmação desta realidade foi-me dada pela tomada de posição de Fidel Castro acerca do Nobel atribuído a Obama no final de um longo artigo intitulado Las campanas están doblando por el dólar:

En horas de la mañana de hoy viernes 9, el mundo se despertó con la noticia de que "el Obama bueno" del enigma, explicado por el Presidente Bolivariano Hugo Chávez en las Naciones Unidas, recibió el Premio Nobel de la Paz. No siempre comparto las posiciones de esa institución, pero me veo obligado a reconocer que en estos instantes fue, a mi juicio, una medida positiva. Compensa el revés que sufrió Obama en Copenhague al ser designada Río de Janeiro y no Chicago como la sede de las Olimpiadas del 2016, lo cual provocó airados ataques de sus adversarios de extrema derecha.

Muchos opinarán que no se ha ganado todavía el derecho a recibir tal distinción. Deseamos ver en la decisión, más que un premio al Presidente de Estados Unidos, una crítica a la política genocida que han seguido no pocos presidentes de ese país, los cuales condujeron el mundo a la encrucijada donde hoy se encuentra; una exhortación a la paz y la búsqueda de soluciones que conduzcan a la supervivencia de la especie.
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