quarta-feira, setembro 20

UM RETRATO

O Presidente da República, numa visita de Estado, apurou duas boutades, ou, em bom português, duas calinadas. Uma a seguir à outra. A primeira era uma espécie de comentário sobre um decote e o clima apropriado ao decote, que nem pode ser classificada de sexista, apenas grosseira. Num chefe de Estado, seguramente. A segunda foi uma declaração identitária que nos apresenta a uma comunidade de emigrantes ou descendentes de emigrantes portugueses como um país de “fado, bacalhau e Cristiano Ronaldo”. Somos era o verbo definidor, somos isto. Fado, bacalhau e futebol. E, talvez para Marcelo Rebelo de Sousa, sejamos isto. Não somos isto. Já passámos disto há muito tempo e não me revejo na certificação identitária. Há 50 anos talvez fizesse sentido. Há um momento em que a obsessão da empatia como virtude dialogal gera uma familiaridade grotesca. Marcelo Rebelo de Sousa, sobre o qual raramente escrevo, no qual votei duas vezes e que considerava uma peça equilibrante do regime, foi sempre uma figura simpática. Mais do que empática. Na verdade, ele mesmo me disse um dia ser um animal de sangue frio. A simpatia decorria da familiaridade, que na televisão adquiria contornos de proximidade. Já Marcello Caetano, de que herdou o nome, tinha ensaiado o estilo nas “Conversas em Família”, que se opunham ao estilo reservado, distante e antipático, no sentido literal, de Salazar. A televisão dá às pessoas a ilusão de que conhecem o boneco televisivo e, pior ainda, de que o boneco os conhece a eles. E os representa ou, pelo menos, fala em nome deles. É uma ilusão perigosa que, no caso do “professor Marcelo”, transformou um barão do PSD, vindo da Linha de Cascais e com os maneirismos da Linha de Cascais, numa figura mais de salão do que de comício, num tio coletivo e num oráculo político. Reconhecido pela formidável capacidade de intrigar e enlear, com a televisão Marcelo elevou-se acima de si mesmo, e elevou a intriga política a preocupação patriótica. E nacional. Por grosso, era o que se chama em bom português uma simpatia, um amor de pessoa, nunca um tipo “porreiro” porque teve sempre a inteligência de não descer, mas de subir. Elevar, justamente. O tipo “porreiro” era de outra classe social, e Marcelo era um típico produto de classe. Era também um dos comentadores dotados de mais argúcia, disfarçando uma filiação partidária, e usando o comentário umas vezes para exercer pequenas vendettas e outras para manipular e recrutar correligionários. Esta orientação levou-o ao Palácio de Belém, depois de ter sido um presidente do PSD atacado e vencido e um político de um governo cujo primeiro-ministro não tinha confiança nele. As memórias de Francisco Pinto Balsemão não o poupam. Restava a última sinecura, a presidência. A oposição de Passos Coelho, que o classificou como um cata-vento, um homem despido de convicções, mais interessado em agradar, acabaria por ser-lhe útil. Passos Coelho sairia da política como o autor de malfeitorias mil e vaiado pelas esquerdas unidas sob o chapéu largo e bondoso de António Costa, o grande reformador e conciliador nato. Se Passos Coelho era mau, fazendo esquecer os desvarios de Sócrates e os abusos da confiança dos portugueses, e a propaganda da esquerda extrema ou liberal foi exímia e eficacíssima para desalojar o PSD e seus vestígios, Marcelo era a face humana dos sociais-democratas. O PSD não se refez da manobra, que atirou Passos para um patamar de ignomínia donde desalojou Sócrates. Passos era o diabo. Marcelo trabalhou este terreno minado de insatisfações e esperanças, algumas falsas, com a inteligência que conhecemos. Resolveu fazer uma campanha à parte dos partidos, baseada na tal proximidade. E tomou-lhe o gosto. O que não tinha tido como político, o amor das massas, teve como comentador e como candidato. A campanha foi um manual de populismo disfarçado de empático entendimento das forças e fraquezas do povo português habituado a presidentes litúrgicos e que nunca se desviaram da solenidade do cargo. Eanes, Soares, Cavaco e Sampaio nunca comprometeram a autoridade e a gravidade do cargo para adquirir simpatia avulsa. No caso de Soares, o comportamento era monárquico, mas a autoritas e a gravitas, para ele essenciais, estavam lá, a par dos afetos. Afetos, como diz Marcelo. E dos afetos foi a campanha. O primeiro mandato foi o que foi. Belém suportou os erros de Costa e foi o esteio. A esquerda unida ficou grata, e Marcelo baniu oposições ideológicas apesar de começar a dizer que a direita era ele, o único representante legítimo do que restava do PSD e do defunto CDS. O comportamento era de centro-esquerda mais do que de centro-direita, exceto quando as leis conflituavam com uma arreigada fé católica. A direita que Marcelo representava era a direita cristã da educação e não a da ideologia do partido. Tanto mais que o Presidente parecia ganhar uma nova apreciação por António Costa, que personificava o centrão e o bom senso, e alguém que tinha as esquerdas na mão. Aproximá-las do poder neutralizava-as e garantia alguma paz social. Marcelo viu isto primeiro do que toda a gente. De todos os Presidentes, foi o que menos se interessou por dois vetores do cargo, a política internacional e a cultura. Marcelo Rebelo de Sousa nunca foi um intelectual, foi um homem de agência política, direcionada. A sua perceção estava vocacionada para tecer redes de poder e para destruir redes de poder que o ameaçassem, e as representações da realidade política, desde o tempo dos comentários, continham ligeiras usurpações dessa realidade. O poder coercivo do discurso disfarçado de bonomia. O segundo mandato estava no bolso. O país, entretanto, mudara. Choques internacionais, que ele mal administrou, e falências nacionais, sobretudo as da maioria absoluta, foram absorvidas pelo Presidente como desafios à capacidade mobilizadora dos afetos. Quanto mais crescia o descontentamento mais Marcelo se tornava o mais populista dos políticos portugueses. Já não era a teologia da selfie e do abraço, eram frases soltas e comentários políticos ao minuto à ação do Governo, expedidos como se em Belém estivesse o comentador e não o Presidente. A maioria destes comentários era deslocada e uma usurpação do poder do Executivo. As reuniões do Conselho de Estado, instrumentalizadas como arma de arremesso contra o Governo, foram o último degrau do populismo. Os conselheiros, contaminados pelo procedimento e a leviandade, acabaram a comentar e intrigar o que lá se tinha passado, num dos instantes mais desoladores da democracia. O populismo marcelista degenerou em práticas pouco democráticas, e certamente inadequadas à função presidencial. Um casal desavindo é sempre um espetáculo deprimente. A função presidencial está comprometida. Atores políticos vários, no segredo das confidências, começam frases assim: eu até gosto do Marcelo, mas... Este “mas” é uma interrogação e a expressão de um cansaço. Quosque tandem abutere, Marcelo, patientia nostra? Qualquer observador sensato, não precisa ser Cícero, está farto das manifestações instantâneas de portuguesismo “fixe” que ganham atributos de cerimónias de Estado. A recusa de uma atitude séria sobre o mundo não serve o momento grave. A sociedade portuguesa, empobrecida e classificada pelos mecanismos do capitalismo e do mercado como não rentável, está a tornar-se um estudo antropológico sobre o ressentimento. E o desapontamento. Marcelo talvez ache que a sua marca de populismo conseguirá estancar marcas mais viciosas, impedindo-as de se tornarem dominantes. Está errado. O pensamento popularucho, somos fado, bacalhau e Ronaldo, coloniza o discurso português, transformando-o no beneficiário de todos os niilismos. Se só somos isto, somos nada. Somos repasto de turistas, fado e bacalhau, e das paixões tribais da bola. Não temos método nem propósito, não temos história, não temos ciência, não temos cultura, não temos nada exceto o juízo dos outros sobre o valor de entretenimento. Nem por ironia é aceitável. Uma sociedade sem reportório crítico, sem vitalidade intelectual, sem convicção, sem educação. Fado e bacalhau, a retórica pobre dos pobres de espírito. Ronaldo, o novo Camões. A estrutura deste vocabulário é perigosa, embalando a ignorância num contexto político e, dir-se-ia, estético, que faz dos portugueses seres que não governam o seu destino, são governados. A versão identitária da portugalidade no texto de Marcelo não passa de indulgência e transtorno cognitivo. O estereótipo é tudo menos uma experiência estética. Outros Presidentes, como Soares e Sampaio, leram muitos livros de História. Talvez fosse bom que Marcelo se retirasse dos afetos e, por uma vez, lesse até ao fim um livro em vez de o apresentar, recomendar e prefaciar. Recomendo-lhe dois, “O Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares, e “Os Lusíadas”, de Luís de Camões. E releia, supondo que leu, “Os Maias”. Nele encontrará uma personagem chamada Dâmaso Salcede. Um estremeção de reconhecimento e identificação será inevitável. (Clara Ferreira Alves, in Expresso/ Fotografia de Hélder Gonçalves).

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