Neste soneto XVII, dos 21 que compõem “As Evidências”, aquando da minha leitura inicial, logo após a sua morte, sublinhei, a lápis, um verso que sempre me tem acompanhado: “É pequena a margem pura onde só há tristeza”.
Na noite funda em que das nuvens corre
interceptado o luar prateando a vida,
de tudo a forma é sombra desmedida
como do corpo a contrição qual morre.
Últimas fezes do estertor, na espuma
que aos lábios sobe envidraçando o olhar,
crispam-se os dedos, quanto devagar
memórias se desatam uma a uma.
De súbito explodido, ou na serena
e distendida muscular dureza,
o espírito se quebra nas miríades
que o foram sucessivas. É pequena
a margem pura onde só há tristeza.
Da podridão logo renascem tríades.
25-3-1954
Jorge de Sena
Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,
Editado por Eduardo Graça
Mostrar mensagens com a etiqueta POESIA. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta POESIA. Mostrar todas as mensagens
domingo, junho 30
quinta-feira, junho 27
AS EVIDÊNCIAS - XVI
Livres de ser o que os acasos tecem
na teia de eras que aumentando os muda,
não sendo vamos contrição desnuda,
e como nós as coisas acontecem.
E porque acontecidas logo cessem
de ser a liberdade ponteaguda
que de entre teias como gota exsuda,
mudam-se em nós as que a mudança esquecem.
E um sentimento, a máquina, um abraço,
um filho, a estátua, as dimensões do espaço
- pensado ou não, sentido ou não, talhado
ou não – fado serão do próprio fado,
qual como em fios luminosos vemos
o gecto igual com que outra fronte erguemos.
15-3-1954
Jorge de Sena
segunda-feira, junho 24
AS EVIDÊNCIAS - XV
Manhã de glória! – ó deuses, ó imagens,
palavras, gestos, silenciosa crença,
ó plácida ternura das paisagens,
brincar das crianças na convalescença,
lembrado vento das remotas viagens,
saber perpétuo das ciências novas,
sereno deslisar de astrais paragens,
mentiras, crimes, proclamadas provas
de tudo contra tudo: universal
visão que sois, só porque sois tão mal
a mão que toca e que a si própria sente;
nessa mentira veramente ouvida,
nessa verdade que, de o ser, já mente,
o mal que sois é o bem de haver só vida.
palavras, gestos, silenciosa crença,
ó plácida ternura das paisagens,
brincar das crianças na convalescença,
lembrado vento das remotas viagens,
saber perpétuo das ciências novas,
sereno deslisar de astrais paragens,
mentiras, crimes, proclamadas provas
de tudo contra tudo: universal
visão que sois, só porque sois tão mal
a mão que toca e que a si própria sente;
nessa mentira veramente ouvida,
nessa verdade que, de o ser, já mente,
o mal que sois é o bem de haver só vida.
9-3-1954
Jorge de Sena
sábado, junho 22
AS EVIDÊNCIAS - XIV
Nenhuma voz me atinge por destino
dela, e nenhuma me procura ansiosa.
Se o espaço cruzam num murmúrio fino
ou gritam seu destino, a mais formosa
é sempre aquela que eu encontro agora,
apenas porque a encontro e por mais nada.
E para ouvi-las não existo, embora
as ouça claramente, na humilhada,
ténue, profunda, vasta e dolorosa,
conquanto doce, humanidade alheia,
que em mim se alberga tímida e receosa.
Assim se escutam vozes. Delicada,
sopra no espírito a formosa ideia,
e encrespam-se as palavras na alvorada.
dela, e nenhuma me procura ansiosa.
Se o espaço cruzam num murmúrio fino
ou gritam seu destino, a mais formosa
é sempre aquela que eu encontro agora,
apenas porque a encontro e por mais nada.
E para ouvi-las não existo, embora
as ouça claramente, na humilhada,
ténue, profunda, vasta e dolorosa,
conquanto doce, humanidade alheia,
que em mim se alberga tímida e receosa.
Assim se escutam vozes. Delicada,
sopra no espírito a formosa ideia,
e encrespam-se as palavras na alvorada.
9-3-1954
Jorge de Sena
quarta-feira, junho 19
AS EVIDÊNCIAS - XIII
XIII
Quando me encontro sempre sem poesia
do ritmo ouvindo o cadenciar perfeito
em que as palavras passam como um dia
que é fluído e pálido, gelado e estreito,
sempre uma voz, que eu antes não ouvia,
me preenche o espaço entre o destino e o leito
de fogo e de cristal em que me deito
na música sem dor nem alegria.
Alguém que eu fui ou não cheguei a ser,
que alguém não teve tempo de viver
na ondulação do transitório acaso,
é por acaso que em mim próprio escuto,
qual do vazio ocasional refuto
a vacuidade inane do seu vaso.
Quando me encontro sempre sem poesia
do ritmo ouvindo o cadenciar perfeito
em que as palavras passam como um dia
que é fluído e pálido, gelado e estreito,
sempre uma voz, que eu antes não ouvia,
me preenche o espaço entre o destino e o leito
de fogo e de cristal em que me deito
na música sem dor nem alegria.
Alguém que eu fui ou não cheguei a ser,
que alguém não teve tempo de viver
na ondulação do transitório acaso,
é por acaso que em mim próprio escuto,
qual do vazio ocasional refuto
a vacuidade inane do seu vaso.
sábado, junho 15
AS EVIDÊNCIAS XII
XII
Uma outra vida espera em vosso peito.
Dentro do meu que em gestos se condensa
a carne fala e vibra, a carne pensa
por vós como por mim, que não aceito
mais que a linguagem de ter sido eleito
igual aos outros: tão igual, que sou
a identidade vária com que vou
sendo a diferença dolorosa – o jeito
de uma pura perda celebrar o amor,
sagrando-vos humanos e lembrados
na plena luz a que viveis os fados.
Beijemo-nos então. Língua na língua,
essa outra vida que trazeis, distingo-a,
e como liberdade aceito a dor.
Jorge de Sena
6-3-1954
Uma outra vida espera em vosso peito.
Dentro do meu que em gestos se condensa
a carne fala e vibra, a carne pensa
por vós como por mim, que não aceito
mais que a linguagem de ter sido eleito
igual aos outros: tão igual, que sou
a identidade vária com que vou
sendo a diferença dolorosa – o jeito
de uma pura perda celebrar o amor,
sagrando-vos humanos e lembrados
na plena luz a que viveis os fados.
Beijemo-nos então. Língua na língua,
essa outra vida que trazeis, distingo-a,
e como liberdade aceito a dor.
Jorge de Sena
6-3-1954
terça-feira, junho 11
EVIDÊNCIAS - XI
Um 11º soneto.
Marinha pousa a névoa iluminada,
e dentro dela os pássaros cantando
são crepitar das ondas doce e brando
na fímbria oculta e só adivinhada.
Verdes ao longe os montes na dourada
encosta pelos tempos deslisando,
suspensos pairam no frescor de quando
eram da sombra a forma congelada.
Ao pé de mim respiras. No teu seio,
como nas grutas fundas e sombrias
os animais pintados adormecem,
sereno seca um amoroso veio.
Um após outro hão-de secar-se os dias
na teia ténue que das eras tecem.
Jorge de Sena
Marinha pousa a névoa iluminada,
e dentro dela os pássaros cantando
são crepitar das ondas doce e brando
na fímbria oculta e só adivinhada.
Verdes ao longe os montes na dourada
encosta pelos tempos deslisando,
suspensos pairam no frescor de quando
eram da sombra a forma congelada.
Ao pé de mim respiras. No teu seio,
como nas grutas fundas e sombrias
os animais pintados adormecem,
sereno seca um amoroso veio.
Um após outro hão-de secar-se os dias
na teia ténue que das eras tecem.
Jorge de Sena
sábado, junho 8
EVIDÊNCIAS - X
1 de Março
Esta manhã, um 10º soneto. Suponho que apenas faltam mais dois.
Fui ao aeroporto despedir-me do Couvreur, que ia na viagem que seria para mim. Como o avião vinha atrasado, aproveitei para procurar o Zé que há tanto tempo não via. E li-lhe os dez sonetos, de que ele gostou, achando que a “coisa” ainda vai a meio.(…)
X
Rígidos seios de redondas, brancas,
frágeis e frescas inserções macias,
cinturas, coxas rodeando as ancas
em que se esconde o corredor dos dias;
torsos de finas, penugentas, frias,
enxutas linhas que nos rins se prendem,
sexos, testículos, que inertes pendem,
de hirsutas liras, longas e vazias
da crepitante música tangida,
húmida e tersa, na sangrenta lida
que a inflada ponta penetrante trila;
dedos e nádegas, e pernas, dentes.
Assim, no jeito infiel de adolescentes,
a carne espera, incerta, mas tranquila.
Jorge de Sena
27-2-54 [O soneto a que se refere Sena no “Diário” deve ser, na verdade, o 11º publicado em “Poesia I”].
sexta-feira, junho 7
EVIDÊNCIAS - IX
Esta manhã, um 9º soneto, obsceníssimo, mas demasiado formal, por demasiado “descritivo”. No entanto, é de certo modo o que eu queria fazer no sentido da violência. O Casais, a quem no café (a nossa “tertúlia” é este “tête-à-tête”, em que ele se torna muito mais o delicado que não quer, prudentemente, ser) o mostrei e ao de ontem, sentiu isso mesmo, porque disse: “Não gosto que se fale cerebralmente dessas coisas” (tomando cerebral pelo impressionismo descritivo). Vai proferir uma conferência sobre o Pessoa no Inst. Britânico; e ao Estorninho disse que para as influências inglesas era eu e não ele. Gostou muito do outro soneto. E achou, como eu acho, notável o artigo que o Lemos me mandou, e que vou rever para enviar ao C. Barreto.
IX
Com a mão brincando sem virtude ou vício,
o sexo antes do sexo pressentido,
conhecem-se as crianças, que, dormindo,
irão morrendo em sexo e juventude.
Da vã cidade o pálido bulício
em sonhos se dilui. Sombras sorrindo
afastam-se, crianças conduzindo
à virgindade ansiosa, austera e rude.
Pelas esquinas, no limiar da terra,
lá onde os sóis os prados ainda rasam
e as ervas vibram num tremor obscuro,
nocturno o espaço os milhares de olhos cerra,
sombras serão as crianças que se atrasam,
e a Graça, alheada, é o gesto ainda futuro.
Jorge de Sena
IX
Com a mão brincando sem virtude ou vício,
o sexo antes do sexo pressentido,
conhecem-se as crianças, que, dormindo,
irão morrendo em sexo e juventude.
Da vã cidade o pálido bulício
em sonhos se dilui. Sombras sorrindo
afastam-se, crianças conduzindo
à virgindade ansiosa, austera e rude.
Pelas esquinas, no limiar da terra,
lá onde os sóis os prados ainda rasam
e as ervas vibram num tremor obscuro,
nocturno o espaço os milhares de olhos cerra,
sombras serão as crianças que se atrasam,
e a Graça, alheada, é o gesto ainda futuro.
Jorge de Sena
terça-feira, junho 4
EVIDÊNCIAS - VIII
Um 8º soneto (que deverá ocupar o lugar do 7º), um dos mais belos senão o mais belo – e que me emocionou tanto, que julguei que ia escrever logo outro. Mas era só emoção dele.
VIII
Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.
Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,
um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,
tão quase é coisa ou sucessão que passa …
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.
Jorge de Sena
Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.
Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,
um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,
tão quase é coisa ou sucessão que passa …
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.
Jorge de Sena
domingo, junho 2
EVIDÊNCIAS VII
(…) Trabalhei no serviço o dia inteiro e, à tarde, escrevi em três horas de expectativa tenteada, um 7º soneto, que me parece o penúltimo das “evidências”.
25
Dei os sete sonetos (até agora) ao Casais (que já ouvira os 3 primeiros) a ler. Achou de “primeiríssima ordem” os 5 primeiros – com a reserva do final violento do 3º, que o choca -, menos bom o 6º, e o 7º ainda que muito bom, pareceu-lhe desviado da linha dos outros.
VII
25
Dei os sete sonetos (até agora) ao Casais (que já ouvira os 3 primeiros) a ler. Achou de “primeiríssima ordem” os 5 primeiros – com a reserva do final violento do 3º, que o choca -, menos bom o 6º, e o 7º ainda que muito bom, pareceu-lhe desviado da linha dos outros.
VII
Atentos sobre a terra ao que sem nós
connosco é o movimento em que levados
vamos criando qual somos criados
na recessão dos mundos fugitivos,
é nossa a luz que vemos, nossa a voz
com que a dizemos de astros apagados,
é nossa a carne com que estamos vivos,
e é dela a só ternura que abraçados
connosco esquece a distinção das cousas.
Humano escutarás, único vais
na numerosa multidão esquecida.
Ímpio de ti, se juras e não ousas
que teus vivos desejos se ergam tais
como em ti próprio aguarda uma outra vida.
Jorge de Sena
22-2-1954
connosco é o movimento em que levados
vamos criando qual somos criados
na recessão dos mundos fugitivos,
é nossa a luz que vemos, nossa a voz
com que a dizemos de astros apagados,
é nossa a carne com que estamos vivos,
e é dela a só ternura que abraçados
connosco esquece a distinção das cousas.
Humano escutarás, único vais
na numerosa multidão esquecida.
Ímpio de ti, se juras e não ousas
que teus vivos desejos se ergam tais
como em ti próprio aguarda uma outra vida.
Jorge de Sena
22-2-1954
quarta-feira, maio 29
EVIDÊNCIAS VI
Concluí pela manhã o 6º soneto.
VI
Ambígua identidade, incauto amor
que o vento esculpe em pedras do deserto
como as que, vagas, pelo mar incerto
o mesmo vento aos areais conduz;
serena insaciedade, ausente ardor,
limiar a que a não-vida a descoberto
assoma viva qual se fôra perto
a fímbria clara exposta a contra-luz;
marcado e repetido, ou imperceptível
e como que perene, o suceder
das coisas, cujo ser é noutras ser
a forma contornada e previsível;
- demoram-se as estátuas, e quebradas
serão tristeza de outras não talhadas.
Jorge de Sena
domingo, maio 26
EVIDÊNCIAS V
O dia inteiro lutando com um 5º soneto. O que foi dolorosamente interrompido pela visita dos pais do Lemos* - que ouvi suspenso na aparência amável e divertida, mesmo simpatizando porque o estimo muito. Excelente a anedota autêntica de a Estrela Faria ter “ganho” na Bienal o prémio que o amante dela, um brásio rico, inventou com o próprio nome … e pagou (10 contos). Depois num aflitivo esforço de concentração, o soneto organizou-se, e terminei-o inteiramente outro do que planejara ou supusera que ele seria. E, enquanto escrevo, ouço a espectacular mas emocionante Rapsódia Hebraica de Block, para violoncelo e orquestra. Aprecio neste compositor a veemência e uma certa facilidade dramática que faltam, tão francamente sentimentais, em quase todos os modernos.
Envolvido no Zaratustra, de Strauss, sai-me o esperado soneto das galáxias (para o que refolheara o Eddington – ó eruditos do piolho catado!).
*Refere-se, certamente, aos pais de Fernando Lemos que, em 1953, havia emigrado para o Brasil.
V
Na antiga e fácil pátria da amargura
com qual quais chegam vossas vozes vão
quebrando as ondas minha voz mais pura
só de ter visto o mesmo coração
que como exílio fora não perdura,
eis-me silêncio arrebatado e não
nenhuma ausência ou extrema formosura
de um Deus que volta em pompa e escuridão.
Desnudo e em sangue, ai que não volta: existe
suspenso a vosso lado, e o duplo sexo
goteja embora no pudor perplexo
com que O não vedes na paisagem triste.
Eis-me que apenas me roubais quem sois:
se Deus deseja é desejar por dois.
Jorge de Sena
20-2-1954
quinta-feira, maio 23
AS EVIDÊNCIAS IV
Um 4º soneto, que apareceu a correr pouco antes de eu ir para S. Carlos ouvir a Electra …
IV
Da solidão que o vosso mal povoa
de monstruosas mãos e duros dentes,
lá onde agudo só um latido ecoa,
e o amor se esconde em piolhosos pentes;
Do vácuo fedorento, excrementício,
com que de roubos vosso rasto acaba
idêntico a vós próprios desde o início,
que desde sempre foi a mesma baba;
Da solidão que dais e que roubais,
do vácuo que levais e que deixais,
do pavoroso nada que imitais
quando cobris dos ouropéis legais
o horror de estardes sós em companhia –
o mal que sois em mim se refugia.
Jorge de Sena
15-4-1954*
sábado, maio 18
AS EVIDÊNCIAS - II
Prosseguindo a publicação dos 21
sonetos de “As Evidências”. Nos
“Diários” de Jorge de Sena surge, no dia 12 de
Fevereiro de 1954, a seguinte anotação: “Das 24 à 1.15, um segundo
soneto.” É este:
II
Desta vergonha de existir ouvindo,
amordaçado, as vãs palavras belas,
por repetidas quanto mais traindo
tornadas vácuas da beleza delas;
desta vergonha de viver mentindo
só porque escuto o que dizeis com elas;
desta vergonha de assistir medindo
por elas as injúrias por trás delas
ao mesmo sangue com que foram feitas,
ao suor e ao sémen por que não eleitas
e à simples morte de chegar-se ao fim;
desta vergonha inominável grito
a própria vida com que às coisas fito:
Calai-vos, ímpios, que jurais por mim!
12-2-1954
quarta-feira, maio 15
AS EVIDÊNCIAS
Jorge de Sena nasceu em 2 de Novembro de 1919. Engenheiro de
profissão dedicou a sua vida à literatura, sendo grande como poeta, romancista,
contista, tradutor e estudioso de obras alheias e é, para mim, com Pessoa, o
poeta mais importante do século XX português.
Li finalmente, este fim-de-semana, os “Diários” livro no
qual a sua mulher Mécia reuniu os escritos do género ao qual Sena dedicou pouca
importância. Além dos textos acerca da sua viagem, como cadete, na Sagres, o
livro vale a pena por duas peças, uma referente a um período do ano de 1953/54
e outra ao ano de 1968 que permitem conhecer, além das circunstâncias da época,
os seus gostos pessoais, processos de trabalho, amizades e ódios de estimação.
Retive, do período de 1953/54, um conjunto de referências à
escrita dos 21 sonetos que compõem “As Evidências”, com data de publicação de
1955, que mais tarde viriam a integrar “Poesia I” em cujo prefácio, à 2ª
edição, escrito pouco antes da sua morte, lhes faz referência:
“… Nos princípios de 1954, entre Fevereiro e Abril, escrevi
os 21 sonetos de As Evidências, sequência que não queria publicar como parte de
um livro de poemas, aonde ficasse submersa, mas para a qual não encontrava
editor. Foi quando, nesse ano, me foi oferecida, se não estou em erro,
paralelamente por Armindo Rodrigues e por João José Cachofel, a possibilidade
de uma edição daqueles sonetos na série “Cancioneiro Geral” do Centro
Bibliográfico. O livrinho ficou impresso nos primeiros dias de Janeiro de 1955,
foi logo apreendido pela PIDE que assaltou então o dito Centro, e só pôde ser
distribuído um mês depois de repetidas visitas à Censura, para onde se entrava
por uma portinha da Calçada da Glória, embora os censores estivessem realmente
instalados no Palácio Foz ocupado pelo SNP ou SNI, ou lá como se chamava na
altura. O livro era, além de subversivo, pornográfico, segundo me repetia
sistematicamente, com um sorriso ameno e algum sarcasmo nos olhos pontilhados
de ramela branca, por trás de uns óculos de aro finamente metálico, suponho que
o subdirector que era um major ou tenente-coronel. Eu contestava que o livro,
ora essa, não era nem uma coisa nem outra, e ele, dando-me palmadinhas no
joelho mais próximo, dizia: - Ora, ora … nós sabemos -. Ao fim de um mês destas
periódicas sessões, o livro foi libertado, e para dizer a pura verdade
evidente, era realmente subversivo e, se não propriamente pornográfico, sem
dúvida que respeitavelmente obsceno. …”
Integrado num conjunto de iniciativas pessoais, em homenagem
a Jorge de Sena, pelo 90º aniversário do seu nascimento, que agora inicio, e
que terminarei com uma surpresa para os meus amigos, publicarei os 21 sonetos
de “As Evidências” fazendo anteceder cada um deles com as referências, mais ou
menos detalhadas, que o autor lhes faz nos “Diários”.
No Diário referente ao período de 23 de Agosto de 1953 a 20
de Outubro de 1954, no dia 12 de Fevereiro de 1954, escreveu:
“Hoje, pela manhã, surgiram-me vários fragmentos de versos
ou versos inteiros, que se me organizaram num poema e num soneto, que espero
seja o primeiro da sequência por que anseio há tanto. Julgo-os do melhor que
tenho feito, e satisfazem-me em comparação com o que, e raramente, andava
fazendo.”
I
Ao desconcerto humanamente aberto
entendo e sinto: as coisas são reais
como meus olhos que as olharam tais
a luz ou treva que há no tempo certo.
De olhá-las muito não as vejo mais
que a luz mutável com que a treva perto
sempre outras as confunde: entreaberto,
menos que humano, só verei sinais.
E sinta que as pensei, ou que as senti
eu pense, ou julgue nos sinais que vi
ler a harmonia, como ali surpresa,
oculta que era para eu vê-la agora,
meu desconcerto é o desconcerto fora,
e Deus um só pudor da Natureza.
12-2-1954
Jorge de Sena
domingo, maio 12
Dia do mar no ar
Dia do mar no ar, construído
Com sombras de cavalos e de plumas
Dia do mar no meu quarto – cubo
Onde os meus gestos sonâmbulos deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.
Dia do mar no ar, dia alto
Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem
Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.
Sophia de Mello Breyner Andresen
In Coral - 1950
Com sombras de cavalos e de plumas
Dia do mar no meu quarto – cubo
Onde os meus gestos sonâmbulos deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.
Dia do mar no ar, dia alto
Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem
Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.
Sophia de Mello Breyner Andresen
In Coral - 1950
segunda-feira, maio 6
CAMÕES - SETE SONETOS
Um ressonância de uma outra ressonância de 26 de Agosto de 2004. Nesse dia publiquei o último de sete sonetos de Camões, segundo a “Edição de Lobo Soropita de 1595”, por sinal um dos menos conhecidos:
Oh! Como se me alonga de ano em ano
Oh! Como se me alonga de ano em ano
A peregrinação cansada minha!
Como se encurta e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!
Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
Perde-se-me um remédio que inda tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.
Corro após este bem que não se alcança;
No meio do caminho me falece;
Mil vezes caio e perco a confiança.
Quando ele foge, eu tardo; e na tardança,
Se os olhos ergo, a ver se inda parece
Da vista se me perde e da esperança.
---------------------------------------------------------------------------------
Ou restantes seis podem ser lidos clicando em baixo no respectivo primeiro verso:
Sete anos de pastor Jacob servia
Tanto de meu estado me acho incerto,
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Busque Amor novas artes, novo engenho
Aquela triste e leda madrugada,
Alma minha gentil, que te partiste
---------------------------------------------------------------------------------
Ou restantes seis podem ser lidos clicando em baixo no respectivo primeiro verso:
Sete anos de pastor Jacob servia
Tanto de meu estado me acho incerto,
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Busque Amor novas artes, novo engenho
Aquela triste e leda madrugada,
Alma minha gentil, que te partiste
sábado, maio 4
JOSÉ GOMES FERREIRA
"Viver sempre também cansa"
Descobri pelos meus apontamentos nos Cadernos de Camus a leitura entusiástica que, pelos meus 19/20 anos, fiz da poesia de José Gomes Ferreira. Aqui está a explicação, dada pelo próprio poeta, das circunstâncias em que surgiu o poema "Viver sempre também cansa" e de como, nesse momento, se afirmou a própria identidade do poeta. Esta é uma época muito marcada pela resistência comunista ao Estado Novo quando a ditadura vivia a sua primeira fase ainda antes da Constituição de 1933. A qualidade deste poeta e do seu trabalho ultrapassa, no entanto, as circunstâncias históricas da época em que iniciou a sua criação poética. Vale a pena revisitar este poeta e a sua poesia.
"Na noite de 8 de Maio de 1931, num segundo andar da Rua Marquês de Fronteira, encontrei, finalmente, a expressão autêntica do poeta autêntico, há tanto procurada. À terceira tentativa, para uma série de poesias que eu intitulava Poemas de Reincidência, escrevi dum jacto e quase sem emendas o poema 'Viver sempre também cansa'. Mostrei-o ao Carlos Queiroz, então meu amigo de todos os dias, que, sem me consultar (e se consultasse daria logo o meu consentimento, claro), o enviou a João Gaspar Simões. Pouco depois aparecia na Presença. E assim entrei no âmbito da chamada Poesia Modernista. A propósito, devo dizer que nunca fiz parte do grupo presencista. Como nunca pertenci a qualquer grupo saudosista . Ou à Seara Nova. voltemos à noite de 8 de Maio de 1931 e à poesia de 'Viver sempre também cansa', onde já havia - coisa insólita na época! - uma referência a Mussolini...Desde então senti que surgia em mim a expressão do poeta verdadeiro. E para marcar bem, para separar bem o novo do antigo poeta, acrescentei sub-repticiamente ao Gomes Ferreira, com que assinara os 'Lírios do Monte' e as duas edições de 'Longe', o meu nome próprio: José! Passei a bagatela, reputo eu de valor psicológico importantíssimo. E, assim, num novelo terrível de ganhar a vida com artigos diversos, crónicas anedóticas, contos e contecos, anúncios das cintas Pompadour, publicidade, traduções de fitas, etc., iniciei a minha carreira de poeta, a que mais tarde chamei de poeta militante."
"Na noite de 8 de Maio de 1931, num segundo andar da Rua Marquês de Fronteira, encontrei, finalmente, a expressão autêntica do poeta autêntico, há tanto procurada. À terceira tentativa, para uma série de poesias que eu intitulava Poemas de Reincidência, escrevi dum jacto e quase sem emendas o poema 'Viver sempre também cansa'. Mostrei-o ao Carlos Queiroz, então meu amigo de todos os dias, que, sem me consultar (e se consultasse daria logo o meu consentimento, claro), o enviou a João Gaspar Simões. Pouco depois aparecia na Presença. E assim entrei no âmbito da chamada Poesia Modernista. A propósito, devo dizer que nunca fiz parte do grupo presencista. Como nunca pertenci a qualquer grupo saudosista . Ou à Seara Nova. voltemos à noite de 8 de Maio de 1931 e à poesia de 'Viver sempre também cansa', onde já havia - coisa insólita na época! - uma referência a Mussolini...Desde então senti que surgia em mim a expressão do poeta verdadeiro. E para marcar bem, para separar bem o novo do antigo poeta, acrescentei sub-repticiamente ao Gomes Ferreira, com que assinara os 'Lírios do Monte' e as duas edições de 'Longe', o meu nome próprio: José! Passei a bagatela, reputo eu de valor psicológico importantíssimo. E, assim, num novelo terrível de ganhar a vida com artigos diversos, crónicas anedóticas, contos e contecos, anúncios das cintas Pompadour, publicidade, traduções de fitas, etc., iniciei a minha carreira de poeta, a que mais tarde chamei de poeta militante."
quinta-feira, maio 2
ACONTECEU-ME
Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.
Almada Negreiros
Publicado em Almada: O Escritor - O Ilustrador, 1993
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.
Almada Negreiros
Publicado em Almada: O Escritor - O Ilustrador, 1993
Subscrever:
Mensagens (Atom)