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terça-feira, dezembro 22

Sublinhados da leitura de juventude dos Cadernos de Albert Camus (VI)
























Palante diz com razão que se há uma verdade una e universal a liberdade não tem razão de ser.

É como se para o homem fosse absolutamente necessário escolher entre o aviltamento e o castigo.

Mas ninguém é culpado absolutamente, não se pode pois condenar ninguém absolutamente. Ninguém é absolutamente culpado. I) aos olhos da sociedade 2) aos olhos do indivíduo.

Sócrates atingido por um pontapé. "Se um burro me tivesse batido iria porventura apresentar queixa?" (Diógenes Laércio, II, 2I)

Para Schopenhaurer : a existência objectiva das coisas, a sua "representação" é sempre agradável, ao passo que a existência subjectiva, é sempre dor.
"Todas as coisas são belas à vista e terríveis no seu ser, donde a ilusão, tão corrente e que sempre me impressiona, da unidade exterior da vida dos outros."

Problema da transição. Deveria a Rússia passar pelo estádio da revolução burguesa e capitalista, como o exigia a lógica da história? Neste ponto só Tkatchev* (com Netchaev e Bakunine) é o predecessor de Lénine. Marx e Engels eram mencheviques. Eles só tinham em vista a revolução burguesa futura.
As constantes discussões dos primeiros marxistas sobre a necessidade do desenvolvimento capitalista da Rússia e a sua tendência para acolherem esse desenvolvimento. Tikhomirov, velho membro do partido da vontade do povo, acusa-os de se fazerem "os paladinos das primeiras capitalizações."

Finalmente, é a vontade do proletariado que transforma o mundo. Há por conseguinte verdadeiramente no marxismo uma filosofia existencial que denuncia a mentira da objectivação e afirma o triunfo da actividade humana.

Em russo volia significa igualmente vontade e liberdade.

Pergunta dirigida ao marxismo:
“A ideologia marxista será o reflexo da actividade económica, como todas as outras ideologias, ou pretenderá descobrir a verdade absoluta, independente das formas históricas da economia e dos interesses económicos”. Por outras palavras será um pragmatismo ou um realismo absoluto?
Lénine afirma o primado do político sobre o económico (a despeito do marxismo).

Lucaks: O sentido revolucionário é o sentido da totalidade. Concepção do mundo total em que a teoria e a prática são identificadas.
Sentido religioso segundo Bardiaev.
(Andava eu, certamente, a ler Lucaks)
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*Piotr Nikitich Tkatchev (1844-1886) – filósofo russo.
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Extractos, in "Cadernos" (1964-Editions Gallimard), Colecção Miniatura das Edições "Livros do Brasil", Caderno nº5 (Setembro de 1945/ Abril de 1948).
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quinta-feira, dezembro 17

Sublinhados da leitura de juventude dos Cadernos de Albert Camus (V)





























Nestes sublinhados omito, pela primeira vez, dois excertos de diálogos que viriam a integrar a futura peça de teatro "Os Justos". Mantive, no entanto, um excerto dos diálogos preparatórios da mesma.

Há quem se remanseie numa mentira como os que se refugiam na religião.
(Esta frase sublinhada faz parte de um texto longo, que não transcrevo na íntegra, no qual, à margem, escrevi à mão: "cuidado!")

Conheço-me bem de mais para crer na virtude completamente pura.

O problema mais sério que se põe aos espíritos contemporâneos: o conformismo.

O grande problema da vida é saber como viver entre os homens.
(Apresenta uma nota de pé de página onde se lê: "No manuscrito, encontra-se entre parênteses: A.F.")

Grenier. "Sou um homem que não crê em nada e que não ama ninguém, pelo menos no âmago. Há em mim um vazio, um deserto horrível..."

Marc condenado à morte na prisão de Loos. Recusa que lhe tirem os ferros durante a Semana Santa para se parecer mais com o seu Salvador. Antigamente, disparava contra os crucifixos nas estradas.

Cristãos felizes: Guardaram a graça para si próprios e deixaram-nos a caridade.

Peça.
D. - O que há de triste, Yanek, é que tudo isto nos envelhece. Nunca mais, nunca mais seremos crianças. Podemos morrer desde este instante, já esgotámos o homem (o homicídio, é o limite.)
- Não, Yanek, se a única solução é a morte, então não seguimos a boa via. A boa via é a que leva à vida.
- Tomámos sobre nós o mal do mundo, é um orgulho que será castigado.
- Passámos dos amores infantis a essa inicial e derradeira amante que é a morte. Andámos depressa de mais. Não somos homens.

(Este excerto é o único que transcrevo daqueles que sublinhei dos textos preparatórios da peça de teatro "Os Justos". Esta peça foi concluída, após uma viagem à América Latina, no Verão de 1949, estando Camus gravemente doente. Nela é abordada a questão, fundamental para Camus, da violência política cujo debate requer, em qualquer circunstância, um adequado enquadramento filosófico e histórico.)

Miséria deste século. Ainda não há muito tempo eram as más acções que precisavam de ser justificadas, hoje são as boas.

A solidão perfeita. No urinol de uma grande estação à uma hora da manhã.
(Contém uma nota de pé de página onde se escreve. "Esta observação foi acrescentada à mão sobre a primeira redacção à máquina").

Bayle :pensamentos diversos sobre o cometa.
"Não de deve julgar a vida de um homem nem pelas suas crenças nem pelo que publica nos livros."

"Como fazer compreender que uma criança pobre pode ter vergonha sem ter inveja"
(Clara referência à infância pobre do próprio Camus.)

Vigny (correspondência): " A ordem social é sempre má: de tempos a tempos é apenas suportável. Do mau ao suportável, a disputa não vale uma gota de sangue". Não, o suportável merece, se não o sangue, pelo menos o esforço de uma vida inteira.
Misantropo em grupo, o individualista perdoa ao indivíduo."

Sait-Beuve: "Sempre acreditei que se as pessoas dissessem o que pensam durante um só minuto a sociedade ruiria."

Extractos, in "Cadernos" (1964-Editions Gallimard), Colecção Miniatura das Edições "Livros do Brasil", Caderno nº5 (Setembro de 1945/ Abril de 1948).

segunda-feira, dezembro 14

Sublinhados da leitura de juventude dos Cadernos de Albert Camus (IV)


Os meus sublinhados de leitura saltam, por razões que não sou capaz de explicar, para o Caderno nº5.

Em Junho de 1947 Camus abandona a redacção do jornal “Combat” e no dia 10 de Junho, desse ano, é publicado o romance "A Peste" que o torna célebre o que, sem dúvida, explica a reflexão acerca do êxito que percorre alguns destes excertos. Repare-se, por outro lado, como o tema do terrorismo é antigo na acção política, na doutrina e no debate. Nos meus sublinhados verifico a curiosidade de ter colocado entre aspas a frase "A adversidade é necessária". Um sublinhado do sublinhado.

O ar de pobres diabos que têm as pessoas nas salas de espera dos médicos.

Conversações com Koestler *. O fim não justifica os meios senão quando a ordem de grandeza recíproca for razoável. Ex: Posso mandar Saint-Exupéry em missão mortal para salvar um regimento. Mas não posso deportar milhões de pessoas e suprimir toda a liberdade por um resultado quantitativo equivalente e estipular previamente o sacrifício de três ou quatro gerações.
- O génio: Não existe.
- A grande miséria do criador começa quando se lhe reconhece talento (Já não tenho coragem de publicar os meus livros).

1947
Como todos os fracos, as suas decisões eram brutais e de uma firmeza insensata.

Que vale o homem? Que é o homem? Depois de tudo o que vi, enquanto viver, hei-de ficar sempre com uma desconfiança e uma inquietação fundamental a seu respeito.

Terrorismo.
A grande pureza do terrorista estilo Kaliayev é que para ele o homicídio coincide com o suicídio (cf. Savinkov**: Recordações de um terrorista). Uma vida paga-se com outra vida. O raciocínio é falso, mas respeitável. (Uma vida ceifada não vale uma vida dada.) Hoje o homicídio por procuração. Ninguém paga.
1905 Kaliayev: o sacrifício do corpo. 1930: o sacrifício do espírito.

Que é impossível, a respeito de quem quer que seja, dizer que é absolutamente culpado e, por conseguinte, impossível pronunciar um castigo total.

25 de Junho de 1947
Tristeza do êxito. A adversidade é necessária. Se tudo me fosse mais difícil, como dantes, teria mais direito a dizer o que digo. O que vale é que posso ajudar muitas pessoas - entretanto.
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* O diálogo mantido com o anti-estalinista Koestler levou, em 1957, à co-publicação de “Reflexões sobre a pena capital”.

** Boris Viktorovitch Savinkov (1879-1925). “Recordações de um terrorista” (Payot -1931). O lema “uma vida por uma vida” resume a moral de Kaliayev em “Os Justos”.
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Extractos, in "Cadernos" (1964-Editions Gallimard), Colecção Miniatura das Edições "Livros do Brasil", Caderno nº5 ( Setembro de 1945/ Abril de 1948).

quarta-feira, dezembro 9

Sublinhados da leitura de juventude dos Cadernos de Albert Camus (III)



























Albert Camus. Excertos que mereceram os meus sublinhados, por sinal escassos, na leitura inaugural do Caderno nº 2 escrito entre 22 de Setembro de 1937 e Abril de 1939.

Huxley."No fim de contas, vale mais ser um bom burguês como os outros que um mau boémio ou um falso aristocrata, ou um intelectual de segunda ordem…"
(Deveria eu ter acabado de ler "O Admirável Mundo Novo" e uma enorme emoção resultou dessa leitura.)

Aquele que ama neste mundo e aquela que o ama com a certeza de se lhe juntar na eternidade. Os seus amores não estão no mesmo plano.

O parzinho no comboio. Ambos feios. Ela agarra-se a ele, ri, excitada, seduzindo-o. Ele, de olhar sombrio, sente-se embaraçado por ser amado diante de toda a gente por uma mulher da qual não se orgulha.

A Argélia, país ao mesmo tempo medido e desmedido. Medido nas suas linhas, desmedido na sua luz.

Esta manhã cheia de sol: as ruas quentes e cheias de mulheres. Vendem-se flores por todas as esquinas. E estes rostos de raparigas que sorriem.
(Esta frase, como outras que constam neste Caderno, e que não sublinhei, manteve-se sempre muito viva na minha memória. Desperta fortes ressonâncias afectivas da minha infância no campo, e na pequena cidade de Faro, na distante província que era o Algarve rural dos anos 50.)

Extractos, in "Cadernos" (1962-Editions Gallimard), Colecção Miniatura das Edições "Livros do Brasil", Caderno nº2 ( Setembro de 1937/ Abril de 1939).
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segunda-feira, dezembro 7

Sublinhados da leitura de juventude dos Cadernos de Albert Camus (II)


Albert Camus. Releio o Caderno nº 1 (Maio de 1935/Setembro de 1937), edição portuguesa da Livros do Brasil. Anoto, uma vez mais, os sublinhados da minha primeira leitura pela segunda metade dos anos 60. Acrescento breves notas pessoais e, desta vez, corrijo, pontualmente, a tradução. Os sublinhados surgem sempre em itálico. O último fragmento sublinhado, no Caderno nº 1, foi escrito em Julho de 1937.


Jovem eu pedia às pessoas mais do que elas me podiam dar: uma amizade contínua, uma emoção permanente.
Hoje sei pedir-lhes menos do que podem dar: uma companhia sem palavras. E as suas emoções, a sua amizade, os seus gestos nobres mantêm a meus olhos o autêntico valor de milagre: um absoluto resultado da graça. [pág. 12]

(Tenho dificuldade em interpretar as razões que me levaram, com 20 anos, a escolher este excerto mas seria capaz, hoje, de o sublinhar de novo com acrescidas razões.)

Abril.
Primeiros dias de calor. Sufocante. Todos os animais estão deitados. Quando o dia começa a declinar, a natureza estranha da atmosfera por cima da cidade. Os ruídos que nela se elevam e se perdem como balões. Imobilidade das árvores e dos homens. Pelas esplanadas, mouros à conversa na espera da noite. Café torrado, cujo aroma também se eleva. Hora suave e desesperada. Nada para abraçar. Nada onde ajoelhar, louco de reconhecimento. [pág. 25]

(Nesta página escrevi à mão em frente a Abril: "3-1968-Faro-Cais".
O ambiente da Argélia natal de Camus tem algo a ver com o ambiente de Faro, a minha cidade natal. Devia ser o período das Férias de Páscoa. Curiosamente nas vésperas do "Maio de 68")

Os sentidos e o mundo – Os desejos confundem-se. E neste corpo que aperto contra o meu, aperto também essa alegria estranha que vem do céu em direcção ao mar. [pág. 25]

Perna partida do carregador. A um canto, um homem novo que ri silenciosamente. [pág.26]

Maio.
Estes fins de tarde em Argel em que as mulheres são tão belas. [pág.27]

Intelectual? Sim. E nunca renegar. Intelectual = aquele que se desdobra. Isto agrada-me. Sinto-me contente por ser ambos. "Se isto se adapta?" Questão prática. É preciso meter mãos à obra. "Eu desprezo a inteligência" significa na realidade: "não posso suportar as minhas dúvidas". Prefiro manter os olhos abertos. [pág. 35]

Fevereiro. (de 1936)
A civilização não reside num grau mais ou menos elevado de requinte. Mas numa consciência comum a todo um povo. E essa consciência nunca é requintada. Ela é mesmo completamente sincera. Fazer da civilização a obra de uma elite, é identificá-la à cultura, que é uma coisa diferente. Há uma cultura mediterrânea. Mas há também uma civilização mediterrânea. Pelo contrário, não confundir civilização e povo. [pág. 32]

Narrativa – o homem que não se quer justificar. A ideia que se faz dele é a preferida. Ele morre, único a guardar consciência da sua verdade. Futilidade dessa consolação. [pág.33]
(Com uma nota: "Prefiguração do tema chave de “O Estrangeiro”.)

Maio.
Erro de uma psicologia de pormenor. Os homens que se procuram, que se analisam. Para nos conhecermos bem, temos que nos afirmar. A psicologia é acção - não reflexão sobre si próprio. Definimo-nos ao longo da vida. Conhecermo-nos perfeitamente, é morrer. [pág.34]

As filosofias valem aquilo que valem os filósofos. Maior é o homem, mais a filosofia é verdadeira. [pág. 36]

Combate trágico do mundo sofredor. Futilidade do problema da imortalidade. Aquilo que nos interessa, é de facto o nosso destino. Mas não "depois", "antes". [pág. 37]

Regra lógica. O singular tem valor de universal.
-ilógica: o trágico é contraditório.
-prática: um homem inteligente em certo plano pode ser um imbecil noutros. [pág. 37]

Os casais: o homem tenta brilhar diante de terceiros. A mulher imediatamente: "Mas tu também…", e tenta diminui-lo, torná-lo solidário da sua mediocridade. [pág. 41]

Mulheres na rua. A besta arrebatada do desejo que trazemos enroscada na cavidade dos rins e que se agita com uma suavidade estranha. [pág. 43]

Extractos, in "Cadernos" (1962-Editions Gallimard), Colecção Miniatura das Edições "Livros do Brasil", Caderno nº1 (Maio de 1935/Setembro de 1937).
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quarta-feira, dezembro 2

Sublinhados dos Cadernos de Albert Camus - uma leitura de juventude (I)


A propósito do 50º aniversário da morte de Albert Camus, ocorrida no dia 4 de Janeiro de 1960, retomo o conjunto de “sublinhados da leitura de juventude dos Cadernos”. Desta vez introduzo algumas correcções, desde o alinhamento cronológico à tradução, sem pretensões de atingir a perfeição a qual, nesta matéria, sendo sempre inalcançável ainda mais o seria para um “não estudioso” pois sou, tão-somente, um simples amante da obra do autor de “A Queda”.

Mas dói-me que esta efeméride passe em claro no nosso país, sem uma única reedição da obra de Camus, sem que um novo trabalho académico ganhe a luz do dia, porventura, sem uma única referência pública, perdendo-se uma oportunidade de ouro para levar ao conhecimento das novas gerações a obra de um autor que, para além de ter sido aureolado com o Nobel da Literatura em 1957, é um acérrimo defensor dos valores da liberdade contra todos os totalitarismos.

O projecto inicial de compilar os sublinhados da minha primeira leitura dos Cadernos de Albert Camus foi suscitado pela criação de um blogue intitulado CADERNOS DE CAMUS, uma iniciativa de José Pacheco Pereira, ao qual, desde a primeira hora, aderi e que, apesar de ter abortado pouco tempo depois, continua disponível na rede. Escrevi, à época da criação desse blogue, que um projecto semelhante, antes do surgimento do fenómeno dos blogues, já me tinha, por diversas vezes, assaltado a imaginação.

Esta primeira leitura dos Cadernos de Albert Camus aconteceu pela primavera de 1968, pelos meus 20 anos. Os sublinhados que agora se apresentam, na íntegra, sem algumas supressões da edição anterior, foram assinalados nos livros, de forma "assassina", a esferográfica que, no entanto, sobreviveram tendo sido, posteriormente, restaurados e encadernados, a capa dura, com a ajuda preciosa da Manuela Espírito Santo.

Esta é uma daquelas tarefas que me continua a dar um prazer autêntico, quer pelo facto de partilhar uma leitura de toda a vida, quer por me sentir, não raras vezes, surpreendido pela actualidade das referências contidas nos excertos que leio e volto a ler. E o que me apraz dizer é que, hoje, tal como aquando da leitura inaugural, sinto a mesma adesão de fundo às ideias e à filosofia de vida que, no essencial, Albert Camus defendeu e que, de forma fragmentada, como se fora um blogue “avant la lettre”, plasmou nos seus Cadernos.

A publicação desta série de posts decorrerá até ao dia 4 de Janeiro de 2010 e será acompanhada por um conjunto de links com notícias de actualidade acerca do autor que introduzo ao longo do texto.