Muitos respondem que a Bíblia, talvez porque é
uma biblioteca num só livro. Umberto Eco optava pela lista telefónica, para
poder inventar com aquelas personagens um número infinito de histórias. Outros,
mais pragmáticos, um manual de Como se
faz uma canoa. Todas as respostas nos dizem afinal que o ser humano é
gregário: dá-se mal com a solidão e, quando se vê sem companheiros de aventura,
gosta de os criar. Como fazia Robinson Crusoé até encontrar Sexta-feira, içando
regularmente a bandeira inglesa na ilha fora do mapa.
A resposta pode ser ligeira e em nada nos
comprometer. Talvez mais difíceis de escolher (e muito mais comprometedores) sejam
os livros que queremos guardar na nossa ilha habitada. Uma ilha sim, aquele
círculo de lugares, coisas e pessoas entre os quais moramos todos os dias e a
partir do qual avistamos o resto do mundo, se formos ao cais. A sobreposição de
factos, de tempos e de espaços que existe na vida real depressa nos leva a
esquecer o quão importante é guardar algumas coisas, poucas, algumas pessoas,
amigas, alguns livros, escolhidos. Vivemos com o que nos põem à frente, muitas
vezes sem nos preocuparmos com o pó que foi naturalmente tapando as rosas que
recebemos, os amigos que já não vemos, os livros que já não lemos. Até que um
pequeno abalo sísmico na nossa ilha habitada nos abre uma brecha na paisagem. É
sempre por causa dos abalos que refletimos no que é importante guardar. Eu sei
que levo pelo menos um livro de Albert Camus comigo, apesar de não estar na
moda em Portugal. A ilha em que eu habito não lê agora muito os autores
franceses e não gosta de ler coisas que ponham (mais) problemas. A ilha anda a
ler romance histórico: que é uma forma de enganar a memória atirando os
problemas para trás. Fazemos mal, se esquecermos Albert Camus. É um autor
francês que deve ser lido em período de abalos. Camus é importante na medida em
que nos obriga a questionar os velhos clichés e a identificar as novas
falácias. Camus é urgente, na medida em que nos interroga e nos incomoda,
levando-nos a ver para além da ilha, círculo vicioso e absurdo em que
habitamos.
Vê-se bem a marca do livro de Camus na mala com
que ando pela vida. Só não consigo ver bem o título, talvez porque eu vá
mudando o livro, mantendo a editora. Tenho quase a certeza de que é A Queda. Acorda-me do sono mortal da
indiferença. Levei-o quando estive em Amesterdão. Para que me aparecesse de
novo Clamence, juiz-penitente, e ele me fosse acusando das minhas cobardias,
confessando as suas. Para que ele me alerte para as formas rituais de
dignificação dos vícios: “Até amanhã, pois, meu caro senhor e compatriota. Não,
agora facilmente atina com o caminho; deixo-o nesta ponte. Nunca passo, de
noite, numa ponte. É a consequência de um voto. Suponha, no fim de contas, que
alguém se atira à água. Das duas uma, ou o senhor o segue, para o tirar, ou o
abandona à sua sorte e os mergulhos retidos causam por vezes estranhas cãibras”…
Ou talvez seja O Estrangeiro. Releio agora sem professor, admirando cada vez mais a
conotação indelével das coisas ditas com simplicidade. Disseram-me seca a frase
“Hoje, a mamã morreu”. Mas se assim fosse, porquê a ternura da palavra “mamã”?
Tento variantes: “Hoje, a minha mãe morreu”, mais seco. “Hoje, a mãe morreu”:
mais seco ainda? O que é hoje evidente em Meursault é o percurso iniciático de
um homem que aprende a sair da indiferença que nunca foi absoluta. O Estrangeiro é a história do caminho
que vai do “para mim tanto faz” ao “não” final, forma extrema de compromisso
solitário. Ensinou-me que Camus não é um filósofo do absurdo, mas um filósofo anti-absurdo,
na medida em que constrói os sentidos da vida a partir da consciência indelével
do absurdo.
Não, talvez sejam as Núpcias. Ou O Verão.
Nestas obras reaprendo a vitalidade da Natureza, vitalidade engenhosa,
resistente, teimosa, ardilosa. Somos como as ruínas de Tipasa, o vento de
Djémila, a cidade babélica de Argel, o deserto afinal habitado. Somos ainda o
tronco daquelas amendoeiras que resistem à neve do Inverno, e ainda a neve que
resiste ao vento, e a flor que nasce de um tronco que parece morto, ainda antes
da primavera despontar. Camus recorda-nos a democracia da beleza: “Bem pobres são aqueles que precisam de mitos. Descrevo e
digo: ‘Isto é vermelho, azul, verde. Isto é o mar, as montanhas, as flores.’
Tenho eu necessidade de falar de Dioniso para dizer que gosto de esmagar bolas
de lentiscos debaixo do meu nariz?”
Bem pobres somos nós, que
precisamos de mitos. E de livros que nos recordem o essencial. Mais pobres
ficaremos se os não buscarmos.
Maria
Luísa Malato