domingo, outubro 20

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (16)

Albert Camus era um apaixonado pelo futebol e só não foi praticante “a sério” por razões de saúde. Era guarda redes, ao que dizem, dos bons e a escolha do lugar tem uma comezinha razão de natureza económica. É que lhe permitia gastar menos as solas das botas que a avó inspeccionava, minuciosamente, da cada vez que chegava a casa.

C'est le football qui lui a laissé les meilleurs souvenirs. Il jouait comme gardien de but dans la cour du lycée, et aussi le dimanche dans l'équipe junior du RUA, le Racing Universitaire Algérois. Certes, il n'a jamais joué dans la grande équipe première du RUA, celles des frères Couard et de Faglin. Mais il a écrit sur le foot des pages savoureuses. Il a d'abord joué un an à l'Association Sportive de Montpensier à cause d'un " ami velu " qui avait voulu suivre une fille qui dansait mal. Alors Albert s'est inscrit au Racing Universitaire puisqu'on y jouait " scientifiquement ". Il a raconté des matches mémorables contre l'O.H.D., le club d'Hussein-Dey, où les avants essayaient de l'impressionner en lui montrant le cimetière tout proche; et contre Boufarik, où il avait un avant surnommé Pastèque qui le chargeait furieusement. " Le football, a dit Gabriel Conesa, c'était notre religion ". Et Camus d'ajouter : " Ce que je sais de plus sûr sur la morale des hommes, c'est au sport que je le dois, c'est au RUA que je l'ai appris ". Et encore dans " La Chute " : " Avec le théâtre, le stade est le seul endroit au monde où je me sens innocent ".

sábado, outubro 19

VINICIUS DE MORAIS - DIA DO CENTENÁRIO

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
 
Vinicius de Morais
 

POUPANÇA

Eu nasci no tempo da escassez, sou um “baby boomer”, ou seja, nascido no período imediatamente posterior à 2ª Grande Guerra.

Os meus pais eram camponeses remediados que "emigraram" para a cidade, logo após o casamento, em busca de uma vida melhor. O meu pai enveredou pelo comércio e no tempo da guerra acumulou riqueza que, à sua escala, permitiu que a família alcançasse um padrão de vida próprio da “classe média” da época.

Apercebi-me da existência do dinheiro por ver o meu pai fazer as contas da receita do dia. Eram muitas moedas que separava e juntava fazendo rolos em papel com quantias certas, escriturando, ao mesmo tempo, as importâncias que somava à mão.

Os rolos eram criteriosamente organizados e, depois de separada uma parte para as despesas da casa, depositados no Banco. Até à alta adolescência não me cabia qualquer parte desse bolo. Não havia mesada.

Os anos 40/50 do século passado foram uma época de uma espécie de “aforro forçado” e aprendi que o dinheiro era um bem sagrado e raro, destinado mais à poupança que ao consumo. Somente na alta adolescência, já em outra fase dos negócios da família, me foi permitido o acesso ao dinheiro. Acesso livre e sem restrições.

Curiosamente sempre me deram, em família, o privilégio desse acesso sem necessidade de qualquer controle, já que havia um contrato não escrito fundado na confiança. Nunca ninguém me ralhou por gastar de mais, nem se condoeu por gastar de menos.

O aforro assumiu, como contraparte à moderação do consumo por opção própria, a face mais importante da minha educação financeira.

Uma das questões centrais que se colocam às organizações de todas as naturezas, mesmo as que lidam com atividades do chamado não mercado (entre as quais as organizações que atuam na área social), é a autossustentabilidade.

Ainda antes da questão da poupança, mas em interligação com ela, surge a necessidade de cuidar de prover de forma criteriosa à cobertura dos encargos e dos riscos de toda e qualquer atividade ou negócio. Assume, de novo, uma importância central a questão do crédito, pela escassez e preço do mesmo, devolvendo à agenda dos gestores questões antigas, e que alguns julgavam obsoletas, como a do valor do capital próprio, a capacidade de gerar excedentes, ou lucros, para afetar a reservas, a solvabilidade, a confiança como valor de mercado, a solidariedade como valor humano do que alguns começam a apelidar de valores da economia social de mercado.

Os valores e princípios da economia social solidária, entre os quais avultam os da cooperação e da solidariedade, têm ganho “direito de cidade”, assomam nos discursos e preocupações dos economistas de referência, explodem em notoriedade com as intervenções públicas do Papa Francisco (de leitura obrigatória!), relativizando o valor do dinheiro e resgatando o valor do Homem.

Neste contexto de mudança, de contornos ainda mal definidos, a escassez associada à valorização do fator trabalho gera, como todos os especialistas sabem, uma revalorização da poupança associada à necessidade de cuidar cada vez com mais cuidado e atenção da autossustentabilidade.

Não sou capaz de dar conselhos de poupança mas tão-somente de sugerir um investimento mais forte, duradouro e estruturado na educação para um consumo criterioso e moderado, não só por imposição de critérios políticos de austeridade macro, com profundas implicações micro, mas, mais importante, por imperativos de uma filosofia de vida em sociedade orientada no combate ao desperdício e à plena utilização dos recursos disponíveis.

[Um testemunho para a revista digital do Montepio acerca do tema poupança no qual introduzo uma pequena correção pois podia dar a ideia que os meus pais emigraram para o estrangeiro e o que queria dizer é que "emigraram" para a cidade.]

quinta-feira, outubro 17

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (15)

Calígula. O gládio e o punhal.

“Creio que não me compreenderam bem anteontem quando ataquei o sacrificador com o maço com que ele ia matar a bezerra. No entanto era muito simples. Por uma vez, quis alterar a ordem das coisas – para ver, em suma. O que vi, é que nada mudou. Um pouco de espanto e de pavor nos espectadores. Quanto ao resto, o sol pôs-se à mesma hora. Concluí que era indiferente alterar a ordem das coisas.”
Mas por que motivo um dia o sol não nascerá a oeste?

*

Id. (Ptolémée). Mandei-o matar porque não havia razão para que ele fizesse um casaco mais belo que o meu. De facto não havia razão. Claro que também não havia razão para que o meu casaco fosse o mais belo. Mas ele não estava consciente disso e, visto que eu era o único a ver claro, é normal que obtivesse vantagens.

*
Dom Quixote e La Pallice.

La Pallice. – Um quarto de hora antes da minha morte, ainda estava com vida. Isso bastou para a minha glória. Mas essa glória é usurpada. A minha verdadeira filosofia é que um quarto de hora após a minha morte, já não estarei com vida.

Dom Quixote. – Sim. Combati moinhos de vento. Pois é profundamente indiferente combater moinhos de vento ou gigantes. A tal ponto indiferente que é fácil confundi-los. Tenho uma metafísica míope.

In Cadernos (Caderno nº 3 – Abril 1939/Fevereiro 1942) - Albert Camus – Edições Livros do Brasil

CARLOS DE OLIVEIRA

"Dêem-me a terra, mesmo poluída."
“Lá em baixo, onde as avenidas desaguam no rio (afluentes de alcatrão em pedra), os esgotos, o lixo pela água dentro. Mais adiante cemitérios de comboios, a ferrugem cor de chocolate espesso e uma tímida erva selvagem nos reiles carcomidos. O hidrovião, de súbito, poisado a meio da estrada marginal, com gaivotas sobre as asas desmanteladas. Outros dois suspensos nas breves rampas de lançamento, enquanto a aragem fluvial lhes desenha manchas de óxido na fuselagem, esquecidos à beira do cais cheio de lodo, limos, detritos encrostados na alvenaria, e apesar disso a água dum azul claríssimo. Por enquanto. Depois o extenso gradeamento do parque militar. Mais detritos. A manhã desolada. Centenas de viaturas podres, jipes, tanques, milhares de pneus abandonados, pirâmides negras de borracha, e (ao voltarmos) milhões de estrelas no firmamento. Dêem-me a terra, mesmo poluída. Este carbono pulmonar, onde contudo adeja ainda a nossa ração de oxigénio. Toda a tarde o calor turvo no horizonte, que nos lembrava o halo silencioso de um incêndio. Árvores em fogo. Três nuvens rectilíneas de céu a céu, três traços de fumo deixados pelos jactos de uma patrulha. Urbanização nas alturas. Como é que a tua beleza, Gelnaa, há-de sobreviver sem uma máscara antigás?”

Carlos de Oliveira, In “O Aprendiz de Feiticeiro”.  (Um ecologista "avant la lettre").

terça-feira, outubro 15

ALBERT CAMUS (CENTENÁRIO) - 14

Não se pode dizer que já não há piedade, não, deuses do céu, nós não cessámos de falar nela. Simplesmente, já não se absolve ninguém. Sobre a inocência morta pululam os juízes, os juízes de todas as raças, os de Cristo e os do Anticristo, que são, aliás, os mesmos, reconciliados no «desconforto».
Aquele que adere a uma lei não teme o julgamento que o reinstala numa ordem em que crê. Mas o maior dos tormentos humanos é ser julgado sem lei. Nós vivemos, porém, neste tormento.
Uma pessoa das minhas relações dividia os seres em três categorias: os que preferem não ter nada que esconder a serem obrigados a mentir, os que preferem mentir a não ter nada que esconder e, finalmente, os que amam ao mesmo tempo a mentira e o segredo. Deixo à sua escolha o compartimento que me convém.
Que importa, no fim de contas? As mentiras não conduzem finalmente à via da verdade? E as minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tenderão todas para o mesmo fim, não terão o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas se, nos dois casos, são significativas do que fui e do que sou?

Albert Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) in Cadernos de Camus

GOSTO

Gosto que me tomes
me abras
me invadas

Me voltes e tornes
me envolvas
e faças

Gosto que me entornes
me abraces
me lavres

Me beijes e bebas
me enlaces
e largues

Gosto que me voltes
me pegues
me mates

Me dês um nó
cego
e depois me desates


In Inquietude – Poesia Reunida

domingo, outubro 13

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (13)

Quando soube da atribuição do Prémio Nobel “pela sua importante obra literária, que foca com penetrante seriedade os problemas que se colocam nos nossos dias à consciência dos homens”, Albert Camus escreveu nos Cadernos: Prémio Nobel: estranho sentimento de desânimo e melancolia. Aos vinte anos, pobre e nu, conheci a verdadeira fama”.


Camus afirmou então que o Prémio deveria ter sido atribuido a André Malraux e manifestou dúvidas acerca da sua própria capacidade e força criadora que sempre o atormentaram. Após o anúncio da atribuição do Nobel sujeitou-se a ataques odiosos, que o não deixaram indiferente e comentou: “Assustado com aquilo que me acontece e que não pedi. E, para cúmulo, ataques tão infames que o coração se me aperta.”(Cadernos).

Mas Camus, segundo todos os testemunhos, não podia, nem queria, recusar o Prémio. Telefonou, de imediato, à mãe, que sempre viveu na Argélia, como que a agradecer à sua origem a honra que lhe tinha batido à porta. Escreveu a Jean Grenier, o seu professor e mentor intelectual : “(…) quando recebi a notícia, o meu primeiro pensamento foi, depois de minha mãe, dirigido ao senhor. Sem o senhor, sem essa mão efectuosa que estendeu à criança pobre que eu era, sem a sua instrução e o seu exemplo nada disto tinha acontecido.” (citado a partir de Roger Quilliot).

René Char, um amigo de todas as horas, não cabia em si de contente e manifesta esse contentamento de várias formas incluindo um artigo publicado, logo em 26 de Outubro de 1957, no Figaro littéraire, intitulado “Je veux parler d’ un ami”.

No ínicio de Dezembro de 1957 Camus partiu com a mulher, Francine, para Estocolmo e, em todas as suas aparições em público, tinha a consciência que devia estar preparado para ser atacado a propósito da sua discrição a respeito do conflicto na Argélia que estava no auge.

Albert Camus , a 10 de Dezembro de 1957, recebeu das mãos do Rei Gustavo VI da Suécia o diploma e, no banquete que se seguiu, proferiu o seu discurso de agradecimento. Logo num dos dias seguintes escreveu a Jean Grenier descrevendo, de forma sintética, o que sentia: “A corrida acaba, o touro está morto, ou quase.

Albert Camus – discurso de 10 de Dezembro de 1957

Dircurso pronunciado, segundo a tradição, na Câmara Municipal de Estocolmo, no fim do banquete que encerrava as cerimónias da atribuição dos Prémios Nobel. (Versão integral em francês.)

Alguns excertos:

Je ne puis vivre personnellement sans mon art. Mais je n'ai jamais placé cet art au-dessus de tout. S'il m'est nécessaire au contraire, c'est qu'il ne se sépare de personne et me permet de vivre, tel que je suis, au niveau de tous. L'art n'est pas à mes yeux une réjouissance solitaire. Il est un moyen d'émouvoir le plus grand nombre d'hommes en leur offrant une image privilégiée des souffrances et des joies communes.
(...)
C'est pourquoi les vrais artistes ne méprisent rien ; ils s'obligent à comprendre au lieu de juger. Et s'ils ont un parti à prendre en ce monde ce ne peut être que celui d'une société où, selon le grand mot de Nietzsche, ne règnera plus le juge, mais le créateur, qu'il soit travailleur ou intellectuel.

(...) l'écrivain peut retrouver le sentiment d'une communauté vivante qui le justifiera, à la seule condition qu'il accepte, autant qu'il peut, les deux charges qui font la grandeur de son métier : le service de la vérité et celui de la liberté. Puisque sa vocation est de réunir le plus grand nombre d'hommes possible, elle ne peut s'accommoder du mensonge et de la servitude qui, là où ils règnent, font proliférer les solitudes. Quelles que soient nos infirmités personnelles, la noblesse de notre métier s'enracinera toujours dans deux engagements difficiles à maintenir : le refus de mentir sur ce que l'on sait et la résistance à l'oppression.
(...)
Ces hommes, nés au début de la première guerre mondiale, qui ont eu vingt ans au moment où s'installaient à la fois le pouvoir hitlérien et les premiers procès révolutionnaires, qui furent confrontés ensuite, pour parfaire leur éducation, à la guerre d'Espagne, à la deuxième guerre mondiale, à l'univers concentrationnaire, à l'Europe de la torture et des prisons, doivent aujourd'hui élever leurs fils et leurs œuvres dans un monde menacé de destruction nucléaire.
(...)
Chaque génération, sans doute, se croit vouée à refaire le monde. La mienne sait pourtant qu'elle ne le refera pas. Mais sa tâche est peut-être plus grande. Elle consiste à empêcher que le monde se défasse.
(...)
Je n'ai jamais pu renoncer à la lumière, au bonheur d'être, à la vie libre où j'ai grandi. Mais bien que cette nostalgie explique beaucoup de mes erreurs et de mes fautes, elle m'a aidé sans doute à mieux comprendre mon métier, elle m'aide encore à me tenir, aveuglément, auprès de tous ces hommes silencieux qui ne supportent, dans le monde, la vie qui leur est faite que par le souvenir ou le retour de brefs et libres bonheurs.

Ramené ainsi à ce que je suis réellement, à mes limites, à mes dettes, comme à ma foi difficile, je me sens plus libre de vous montrer pour finir, l'étendue et la générosité de la distinction que vous venez de m'accorder, plus libre de vous dire aussi que je voudrais la recevoir comme un hommage rendu à tous ceux qui, partageant le même combat, n'en ont reçu aucun privilège, mais ont connu au contraire malheur et persécution. Il me restera alors à vous en remercier, du fond du cœur, et à vous faire publiquement, en témoignage personnel de gratitude, la même et ancienne promesse de fidélité que chaque artiste vrai, chaque jour, se fait à lui-même, dans le silence.

sábado, outubro 12

POLITICA - 22

Escrevendo diretamente na tela após uma visita rápida a Salamanca - para participar numa iniciativa da Caritas - caindo num quase vazio de debate politico tolhido pela informação e contrainformação em torno do Orçamento de Estado para 2014. Nos USA a situação da crise orçamental é muitíssimo mais delicada não pela dimensão do país, se comparado com o nosso, mas pelo efeito global que essa crise ameaça provocar. Curioso e notável, além da situação dos USA: a Alemanha ainda não tem governo após as eleições legislativas - buscando uma solução; em França as sondagens apontam para o crescimento da FN (extrema direita) ameaçando uma vitória nas próximas eleições europeias. Estes temas estão ausentes do debate interno apesar de dizerem respeito a países centrais do ocidente, de cujas economias e orientações politicas dependem muitas das soluções para a Europa e o Mundo ...  e também para Portugal.  

sexta-feira, outubro 11

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (12)

Camus publicou em vida dezanove obras, de 1937 a 1959, entre as quais se destacam os romances (“L’Étranger” em 1942, “La Peste” em 1947), as novelas (“La Chute” em 1956, “L’Exil et le Royaume” em 1957) as peças de teatro (“Caligula” e “Le Malentendu" em 1944, “L’État de siège" em 1948, “Les Justes” em 1950), e os ensaios (“L’Envers et l’Endroit" em 1937, “Noces” em 1939, “Le Mythe de Sisyphe” em 1942, “Les lettres à un ami allemand” em 1945, “L´Homme révolté” em 1951 e”LÊté” em 1954). É necessário anda juntar três recolhas de ensaios políticos (“Les Actuelles”), “Les deux Discours de Suède” (pronunciados aquando da atribuição do Nobel) e a contribuição para a obra de Arthur Koestler intitulada “Réflexions sur la peine capitale”.

Outras obras foram editadas após a sua morte entre as quais se contam o “diário” dos seus pensamentos e leituras, assim como notas de trabalho, publicado sob o título “Carnets”; o diploma de estudos superiores de 1936: “Métaphysique chrétienne et néoplatonisme”, publicado pela “La Pléiade”; o romance inédito, “La Morte heureuse”, cuja redacção data de 1937; o manuscrito inacabado, encontrado na pasta de Camus depois do acidente de viação que o vitimou:“Le Premier Homme”, esboço do que viria a tornar-se o seu grande romance quasi autobiográfico e ainda a sua correspondência com o amigo Jean Grenier.

PORTUGAL

                                                                  
                                                                      Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

quinta-feira, outubro 10

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (11)

Havia uma porta embutida na parte argamassa na qual se podia ler: “Cantina agrícola Mme. Jacques.” Filtrava-se luz pela frincha inferior. O homem imobilizou o cavalo junto dela e, sem descer, bateu. Acto contínuo, uma voz sonora e decidida inquiriu: “Quem é?” “Sou o novo gerente da propriedade do Santo Apóstolo. A minha mulher vai dar à luz. Preciso de ajuda.” Ninguém respondeu. Passado um momento, foram levantados ferrolhos e a porta entreabriu-se. Descortinou-se a cabeça negra e ondulada de uma europeia de faces cheias e nariz um pouco abaulado acima dos lábios grossos. “Chamo-me Henri Carmery. Pode ir junto de minha mulher? Tenho de chamar o médico.” (…) O médico olhou-o com curiosidade. “Não tenha medo, que tudo há-de correr bem.” Cormery volveu para ele os olhos claros, fitou-o calmamente e declarou com uma ponta de cordialidade: “Não tenho medo. Estou habituado aos golpes duros do destino.” (…) A chuva tombava com mais intensidade no telhado antigo e velho. O médico procedeu a um exame sob os cobertores. Em seguida, endireitou-se e pareceu sacudir algo na sua frente. Soou um pequeno grito. “É um rapaz”, anunciou. “E bem constituído.” “Começa bem”, disse a dona da cantina. “Com uma mudança de casa.” A mulher árabe riu no canto e bateu as palmas duas vezes.

Albert Camus, in O Primeiro Homem

VERDI


quarta-feira, outubro 9

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (10)

Como já antes escrevi algures, aquando da minha última estadia em Faro de férias, por sinal, curtas demais, o alfarrabista que faz venda na esquina da rua que frequento, trouxe-me um conjunto de livros de Camus em português. Sempre aparece uma surpresa. Desta vez fiquei a saber que existe mais um livro de autor português acerca de Camus: “Do Absurdo à Solidariedade – a visão do mundo de albert camus”, de Hélder Ribeiro. O livro é muito interessante, pelo menos para mim, e estou a finalizar a sua leitura. Foi dele que repesquei a citação seguinte que tem o interesse de, para surpresa de muitos, reforçar a ideia de que Camus não se considerava um autor existencialista o que muitos estudiosos da sua obra têm assinalado de forma abundante. Qual o interesse da questão? Que mais não seja a citação evidencia como os autores são desapropriados do seu papel e do lugar da sua obra na história e se toma por verdade adquirida uma mentira vulgar.  
 
Eis a citação de Camus cujas fontes, referenciadas no livro em apreço, aqui se omitem:

Começo a estar ligeiramente (muito ligeiramente) incomodado pela confusão contínua que me confunde com o existencialismo. Enquanto o mal-entendido passa nos jornais, a coisa não é tão grave. Mas ao chegar às revistas, prova bastante a falta de informação em que se encontra a crítica. Uma vez que Troyat escreve que toda a peça de A. Camus não é senão uma ilustração dos princípios existencialistas de J.-P. Sartre, sinto-me na obrigação de precisar três pontos:

1 – Calígula foi escrito em 1938. Nessa época, o existencialismo francês não existia na sua versão actual, ateia. Nesse tempo, ainda Sartre não tinha publicado as obras onde devia dar forma a essa filosofia.
2 – O único livro de ideias que eu escrevi – Le Mythe de Sisyphe – foi dirigido precisamente contra as ideias existencialistas. Uma parte dessa crítica aplica-se ainda, no seu espirito, à filosofia de Sartre.

3 – Não é pelo facto de dizermos que o mundo é absurdo que se aceita a filosofia existencialista. Nesse caso, 80% dos passageiros do metro, a acreditarmos nas conversas que aí ouvimos, são existencialistas. E não posso acreditar nisso. O existencialismo é uma doutrina completa, uma visão do mundo, que supõe uma metafísica e uma moral.

Embora me aperceba da importância histórica desse movimento, não tenho suficiente confiança na razão para entrar num sistema. Não nutro muito gosto pela demasiado célebre filosofia existencial e, para dizer tudo, creio que as suas conclusões são falsas. Mas ela representa, pelo menos, uma grande aventura do pensamento. Sartre e eu não acreditamos em Deus, é verdade. E também não acreditamos no racionalismo absoluto. Não, não sou existencialista. Sartre e eu ficamos admirados de ver os nossos nomes sempre associados.   
Pensamos mesmo um dia publicar um pequeno anúncio onde assinaremos não ter nada em comum e nos recusaremos a responder ao que cada um deve ao outro. Porque, enfim, é uma brincadeira. Sartre e eu publicámos todos os nossos livros antes de nos conhecermos. E quando nos conhecemos foi para constatar as nossas diferenças. Sartre é existencialista e o único livro de ideias que eu publiquei era dirigido contra as filosofias ditas existencialistas.

(Postado em 30 de setembro de 2012. Abordo um tema dos mais interessantes a respeito de Camus. Porquê? Porque refuta, nas palavras do próprio, o autor existencialista que não assume ter sido e, na verdade, não foi. Palavras escritas ainda nos tempo de uma relação fraternal com Sartre que havia de romper-se de forma brutal mais tarde - outro dos temas que valerá a pena abordar.)

NORMA BENGELL

Morreu Norma Bengell

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (9)

Há rostos que se casam estreitamente com uma parte inteira dos nossos impulsos e com os quais comunicamos tão bem desde o princípio, que se torna impossível pensar séria e justamente diante deles, mas unicamente falar docemente, silenciosamente, utilizando palavras gastas e baças, às quais só o sentimento de uma íntima cumplicidade confere um novo valor.

Albert Camus, in Escritos de Juventude - “O PÁTIO” (Abril de 1933):

segunda-feira, outubro 7

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (8)



 
A um mês do dia em que se celebra o centenário do nascimento de Albert Camus (7/11/1913) aqui vos deixo algumas imagens ilustrando a sua dedicação, e amor, pelo teatro (e pelas mulheres), pelos filhos (gémeos), pelos amigos (na fotografia com Char) e pelo jornalismo.

domingo, outubro 6

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (7)

Tanto tempo passado, como decifrar os caminhos do meu encontro com Albert Camus? Sou levado a crer que me seduziu o ambiente mediterrânico que trespassa a sua escrita. Talvez me tenha atraído o autor existencialista, que hoje sei não ter sido, ou a sua atracção pelo tema do suicídio, ou o alcance político que o apego à defesa da liberdade assume no seu pensamento e acção cívica.
 
 
O que sei é que um dia pelos meus vinte anos, ou talvez dezanove, cursando um curso superior da área das ciências económicas, caíram-me nas mãos os três pequenos volumes dos Cadernos editados, em Portugal, na Colecção Miniatura, pela Livros do Brasil. Devo tê-los comprado por iniciativa própria, buscando o mero prazer da leitura, impulsionado pela curiosidade de conhecer um autor/personagem, oriundo do sul, como eu, atraído pela sua escrita concisa, demasiado perfeita, segundo alguns detractores, feita de fragmentos que se sobrepõem e interagem.
 
A minha memória navega por entre uma nebulosa repleta de impressões fortes mas difusas. A escrita fragmentada ajudou, certamente, no entusiasmo da escolha e os sublinhados, a traço grosso, que os livros estoicamente suportaram, testemunham a cronologia íntima de um leitor frente ao objecto do seu desejo.

No Cadernos I, ao cimo, na página 25, escrevi, a esferográfica azul, em perfeito alinhamento gráfico com a palavra Abril, “ – 3 – 1968 – Faro – Cais”. O texto sublinhado de Camus cuja leitura datei diz mais acerca da minha escolha que todas as palavras que possa escrever:
 
“Primeiros dias de calor. Sufocante. Todos os animais estão deitados. Quando o dia começa a declinar, a natureza estranha da atmosfera por cima da cidade. Os ruídos que nela se elevam e se pedem como balões. Imobilidade das árvores e dos homens. Pelas esplanadas mouros de conversa à espera que venha a noite. Café torrado, cujo aroma também se eleva. Hora suave e desesperada. Nada para abraçar. Nada onde ajoelhar, louco de reconhecimento.”

Esta, como outras das minhas escolhas de juventude, podia ser uma escolha actual. As minhas escolhas actuais vão mais além mas encaminham-se, quase sempre, para uma faceta da reflexão de Camus em que olha a mãe natureza e os outros homens com assumido desprendimento pelas coisas materiais sempre deixando transparecer um problema nunca resolvido na sua vida: a sua relação com o sucesso. Como transparece no texto final do Caderno nº 1:

“ (…) Não é necessário entregarmo-nos para parecer mas apenas para dar. Há muito mais força num homem que não parece senão quando é preciso. Ir até ao fim, é saber guardar o seu segredo. Sofri por estar só, mas por ter guardado o meu segredo venci o sofrimento de estar só. E hoje não conheço maior glória que viver só e ignorado. Escrever, minha profunda alegria! (…)”

O prazer dos meus reencontros com Camus renasce quando afloram à memória os momentos felizes da minha juventude, vivida sob o céu azul nas terras do sul, entre uma sinfonia de abraços apertados como se cada dia fora a despedida do mundo, o último dia, o primeiro do último abraço, aquele que marca o prazer de tudo começar. Quente a juventude, rebelde a paixão.

“ … a criança morrera naquele adolescente magro e vigoroso, de cabelos revoltos e olhar arrebatado, que trabalhara todo o Verão para levar um salário para casa e acabava de ser nomeado guarda-redes titular da equipa do liceu e, três dias antes, saboreara pela primeira vez, quase desfalecido, o contacto com a boca de uma jovem.” *

Como tantos outros leitores apaixonados também sinto que em cada livro leio sempre o mesmo livro e, passados 50 anos sobre a trágica morte de Camus, sou capaz de ouvir os seus passos por entre as suas palavras e a actualidade do seu pensamento não deixa nunca de me surpreender:

« Aquilo a que chama cepticismo das novas gerações – mentira. Desde quando o homem que recusa acreditar no mentiroso é o céptico”*
 
*«O Primeiro Homem»

Publicado em As Artes entre as Letras, edição de 11 de Agosto de 2010

Scarlett Johansson



                                                       Scarlett Johansson