quinta-feira, abril 24

sem título - 25 de abril - 40 anos, 75




Fotografia de Hélder Gonçalves


No verão, por vezes, o vento Leste invade
a urbe. O vento da meseta – que o povo
diz não trazer nada de bom -, seca tudo
na sua frente. Também a cidade
está cheia de pessoas que secam tudo
na sua frente. Só conhecem pássaros
em gaiolas, árvores em toros
para crepitarem nas lareiras. O vento
cai, os insectos que arrastou
adubam os canteiros. As pessoas
duram todo o ano, estão sempre
vigilantes nas suas teias. De quem
falo – perguntas –. Ignoro! Abri
o computador a pensar num poema
e o texto foi invadido por um vento
cálido que não sei
para onde se dirige. Esperarei
Setembro, outra atmosfera, poderei
sair de casa, ir até ao correio,
escrever mensagens em que as aves
chilreiem, façam ninhos primaveris,
e pensar a cidade como se eu fosse
um forasteiro, com olhos de espanto:
carregar a memória com o crepúsculo,
coleccionar metáforas para,
no regresso, depositar
sob o teu olhar, avançar a mão
para a floresta, galopar intra-muros,
ouvir depois o boletim meteorológico
para saber onde iremos amanhã.


quarta-feira, abril 23

Sem título - 25 de abril - 40 anos, 74



Fotografia de Hélder Gonçalves

   Para que nasças no mês anterior
Para que nasças muito antes de chegares

Para que amanheças já aberta e recortada
No tempo anterior à tua vinda
Para que amanheças
Ó rosa anterior

Para que venhas
Mesmo antes de seres compreendida. Ainda
Antes da terra te poder gerar. Ó rosa
Já florida


segunda-feira, abril 21

POEMA EM SALDO Nº 25 - 25 de abril - 40 anos, 73


Fotografia de Hélder Gonçalves

Uma data que regressa sempre
transparente à cabeça
um sino pendular nas cavernas do corpo
e então escrevê-lo é abrir as potências
do sangue, dos pés até à raiz
dos cabelos, deixar crescer
a vida circular dos dias
pelo silêncio poderoso
se fundamenta um olhar
um sonho uma estátua invisível
dentro da memória
ordena-se o esquecimento
mantendo sempre a respiração do Mundo
entre muitos e muitos horizontes.

José Alberto Mar

Gaia, 1999

domingo, abril 20

OS AMANTES OBSCUROS - 25 de abril - 40 anos, 72

Fotografia de Hélder Gonçalves

Nossos sentidos juntos fazem chama:
e as fantasias nossas vão soltar
os desejos desertos de quem ama
e em verso ou coração se quis tornar.

Nossos sentidos são matéria prima
de um canto que é mais leve do que o ar;
o mundo todo não nos adivinha:
somos sombra sem luz, sequer luar.

Que o corpo quebre a noite desolada,
que o corvo ceda a voz à escuridão:
mil luzes são o nome da amada;
quem se perdeu no verso é sem perdão.

sábado, abril 19

CIDADE DA AGONIA ou A PROMESSA POR CUMPRIR - 25 de abril - 40 anos, 71


                                                            Fotografia de Hélder Gonçalves

Um fulvo rubor, o último
no Tejo a anoitecer.
Que me segredas,
debruçada da janela,
sobre a água em flor?
Cerram-se os olhos do nosso bairro,
as sombras desencontram-se no escuro
da indiferença e do medo.
A cintilação dos arranha-céus
da nova riqueza
é fria, inexorável.
Fugiram todas as pombas e as gralhas
e os corvos
das artérias nobres da cidade
e das ruas, becos, calçadas onde só restam
corpos estilhaçados como estrelas
e palavras, relâmpagos, lágrimas, silêncios,
fúria, rosas profanadas
e miríades de antenas de televisão,
sobejos de festim,
um campo de derrota.
Será alguma vez o homem
irmão do homem?

sexta-feira, abril 18

Sem Título - 25 de abril - 40 anos, 70


Fotografia de Hélder Gonçalves

Uma infância perfurada por zeppelins.
Hoje, de comando na mão, zappas.

És o canhoto de um anjo – melancolia
que te sufoca o amor e as veias,
uma a uma, esvaziadas de Deus.

Mas a que outra luz pode o coração
aceder se o lugar não foi capinado,

se a treva amarinha no imo líquido
das gavinhas sem tu a teres capinado –
e os anjos e os rinos quase extintos?

Vinte unhas: o escuro mate da morte.

António Cabrita

quinta-feira, abril 17

CANÇÃO DO RIO PROFUNDO - 25 de abril - 40 anos, 69

Fotografia de Hélder Gonçalves

Desci o rio profundo
com as sereias cantando
nos rochedos
espelho na mão
penteando
ao pôr-do-sol
os cabelos

E vi o gnomo
escondido
guarda fiel dos segredos
que nenhum canto revela
nenhum pente
nenhum segredo
só o fulgor deste mundo.

Y.K. Centeno
.

terça-feira, abril 15

Sem título - 25 de abril - 40 anos, 68


Fotografia de Hélder Gonçalves

Bendito sejas arado
que lavras
neste chão sagrado
por odisseias mil
as palavras
rubras e secretas
na boca dos poetas
proclamando Abril.

6/1/99

Papiniano Carlos

domingo, abril 13

O QUE PENSA SIM E O QUE PENSA NÃO - 25 de abril - 40 anos, 67

Fotografia de Hélder Gonçalves

Há o que pensa sim e diz que não
há o que pensa não e diz que sim
há aquele que decerto me odeia
e não faz senão rir-se para mim

Há o que diz que sim e diz que não
conforme a meia-cara com que fala
e aquele que diz sim que sim que sim
sem saber o motivo que o embala

Há o que pensa sim e diz que sim
e esse é concerteza meu irmão
esse que diz sim pensando sim
é o que luta por uma razão.

Fernando Miguel Bernardes

sábado, abril 12

LIBERDADE - 25 de abril - 40 anos, 66

Era ainda a voz da juventude
quando a liberdade entrou
pelo canto da boca

As mãos acariciavam o sonho
enquanto o cheiro cinzento das grades
evadia os ideais

Hoje
em busca da palavra
o novo Abril amotina-se
na memória

Inconformada
pelo preço do não ser
arde agora
a palavra
traída
sem ousar … falar

26/1/99

Fernando Macias

Fotografia de Hélder Gonçalves

quinta-feira, abril 10

DOURO DE MIE ALMA - 25 de abril - 40 anos, 65


Fotografia de Hélder Gonçalves

Ah! riu de ls mius amores!
Guardian de las streilhas.
Quanto gusto de ti
I de ls tous ancantos!
Que buòno vê
Ber las ailas a bolar.
Ls paixaricos a cantar.
Las fáias a assomar …
Oubir, scuitar …
Ls cachones a fungar.
Niébros i carrascos a silbar.
Pastores sues fraitas a tocar
L’auga a caminar
Sien parar …
Pa l mar eimenso …
A chorar …
Ah! Douro de mie alma!
Tu tenes, boç.
Sós fuônte de bida.
D’einergie i riqueza.
L sangre de la tiêrra.
Como tu.
Nun hai eigual.
Sós la lhuç de Miranda.
Lhuç de Pertual!

Domingos Raposo
(Em língua mirandesa.)

terça-feira, abril 8

POST-CARD (Os velhos, os pombos, os gatos) - 25 de abril - 40 anos, 64

Fotografia de Hélder Gonçalves

Alguns habitantes queixam-se dos pombos. Do mal
que fazem às fachadas, às estátuas, à pintura
dos automóveis. Os pombos não voam a gasolina
e têm humaníssimos hábitos como a gula, as
rivalidades do cio, a sede e a urgência
de defecar. Não entendem coleiras, gaiolas, servidões
de casota, falta de jardins e adornos
de penas alheias. E por esta divina ignorância
recebem, às vezes, algum milho displicente
dádiva de crianças para a fotografia ou de benignos
velhos reformados. Algumas mulheres continuam a
socorrer os antiquíssimos ( e terrestres) gatos
vadios. Gatos da nossa infância. Das traseiras,
dos muros, dos quintais – o Sindbad, a Pardoca – com
restos de arroz em papéis engordurados. Carinhosas
velhas, atentas à famélica e materna condição
das ninhadas, enquanto os pombos e os velhos
debicam espaços onde levavam asas. Por instantes
retomam uma destronada simbologia:
Eles no Céu, elas na Terra.

Inês Lourenço

Porto, 98

segunda-feira, abril 7

tábua - 25 de abril - 40 anos, 63

Fotografia de Hélder Gonçalves

haverá ainda esta lua de água
se a cinza nos cobrir os próprios passos.
março, noite a arder, o rumor e a frágua,
e estreiteza de todos os espaços.

à cidade doámos outra fome,
um arrepio de canto e florescer,
barcos correndo as ruas já sem nome,
um jeito de euforia a incandescer.

e andámos inscrevendo o timbre azul
onde era o abandono e a solidão,
a folha ressequida, a finitude.

caminhamos agora para sul.
a harpa e o destino em cada mão
mesmo que a vida fira e nos demude.

José Manuel Mendes

domingo, abril 6

25 DE ABRIL DE 1974 - 25 de abril - 40 anos, 62

Fotografia de Hélder Gonçalves

Há dias em que os dentes se descerram
deixa o sangue de correr pelas avenidas

Há dias em que a morte se protege
da fúria desse sangue redivivo

Há dias que nascem sem um nome
e é preciso baptizá-lo sem demora
com um nome de flor ou de miragem

Há dias em que o sol muda de casa
para os bairros silenciados da cidade

Há dias que se tingem de vermelho
com risos e palavras inauditas

Há dias em que as praças se levantam
num tumulto de gestos com sentido

Há dias que se enchem de ambição
civil mas nua como um eco

Há dias em que o silêncio se cala
e uma voz ergue um canto nunca ouvido

João Pedro Mésseder
.

sexta-feira, abril 4

PALAVRAS (PARA UM PANFLETO) - 25 de abril - 40 anos, 61


Fotografia de Hélder Gonçalves

as palavras metem-se por baixo das portas
e são os versos (que medo!) da insubmissão;
as palavras atacam os poderes atravessadas
nos dentes de uma boca que morde, fala, grita.

as palavras carregadas de sentido estão aqui,
estão nestes versos que te aparecem nas mãos,
como um pássaro de asas de lume e olhos grenat,
como um poema que não se conforma nos livros.

as palavras, cortantes como essas lâminas, abrem
os pulsos dos anjos insensatos, erguem-se, foices,
ceifando as cabeças dos burros da cidade fechada,
as palavras preenchem os olhos vazios das pessoas.

as palavras distribuem-se como poemas volantes
nas vésperas de um primeiro de maio, em abril,
para que conste e sirva de aviso aos caducos,
para que em cada manhã sejam o pão e a estrela.

as palavras, acreditem ou não, meus caros senhores,
caem do céu nas nossas mãos e os olhos, doidos!,
não acreditam que os ventos as levem para longe,
as palavras escrevem-se para sempre nestas nuvens.

José Viale Moutinho

quinta-feira, abril 3

O QUE AQUELA NOITE ME QUIS DAR - 25 de abril - 40 anos, 60



Fotografia de Hélder Gonçalves

Eu não estava em casa nessa noite, filho,
nem podia estar. Estava nas ruas com os soldados
que rumavam às rádios e aos quartéis, engalanados
de sombra e de júbilo, a ver o que aquela noite
ia dar, o que a nossa liberdade prometia ser.
E tu, filho, tinhas a idade rumorejante
desse Abril embalado por uma canção do Zeca.
Como posso eu explicar-te tudo aquilo
que tu nasceste para aprender, para viver?
Eu estava aquartelado no meu silêncio
de pétalas, sílabas e marés, no meu dédalo
de vozes embriagadas pelo vento,
na coragem errante das pelejas da infância
e pouco ou nada sabia do mistério desse mês
capaz de transformar em assombro as nossas vidas.

Sim, sou eu neste retrato antigo,
a receber em festa os exilados, os que chegavam
com grinaldas de cantigas e a flor de uma ilusão
bordada a sangue e espuma no capote das nocturnas caminhadas.
Sim, sou eu a escrever a primeira reportagem
do primeiro de muitos dias em que o tempo
deixou de contar, em que os relógios
se tornaram corolas de paixão e riso
na lapela larga da alegria desta pátria.

Eu não estava em casa nessa noite, filho,
estava a afinar o coração pelo tom
das mais belas melodias que alguém pode aprender
para dar a quem ama a paz de um sono sem tormento.

José Jorge Letria

Dezembro de 1998

segunda-feira, março 31

Khatia and Gvantsa Buniatishvili


SEM TÍTULO



                                             “Tout le bonheur de l´homme est dans son imagination”


                                                                    Sade (citado por Jorge de Sena)


                                                                                     -------------


                                                  “É pequena a margem pura onde só há tristeza”


                                                                                   -------------


                                                                                         (…)
                                                       ”quando de tudo que, ao fugis, destróis,
                                                         e cujos gestos mancharás de lágrimas,
                                                         se os não sujares traindo o teu desejo,
                                                         fechando os olhos pr´a me ver a mim;
                                                        - aceito alegremente que se perca,
                                                         se não transforme, não consuma ou cale.” (…)


                                                                                -------------


                                                                                       (…)
                                                       quantas palavras, confissões não ditas,
                                                       olhares furtivos do prazer cansado,
                                                       para o futuro me não fossem a
                                                       suspeitar de perder-te por,
                                                       ah não sei como!, haver errado um gesto” (…)


                                                                              Jorge de Sena


                                                                                       --------------

Olá, Olá, como vai? Quase bem, do tropel dos meus
sonhos mudaram alguns rostos, medos alguns menos,
do perfil devolvido pelo espelho o perfume que o meu
corpo a mim me oferece é o mesmo.


Olá, Olá, então e o menino? Bem, Bem melhor, já
lê tão bem! Quase tudo entende mesmo o que lhe
escondo parece não lhe escapar. Cresceu quase um
palmo e as saudades de mais de alguns dias longe
me esmagam … mas ninguém percebe…ainda conti-
nuam a pensar que lhe não ligo importância.


Olá, Olá, e a menina que deseja? Com 35 anos,
menina! Parece uma sina, não me largam estes
imaginários desejos de afirmar a luta por subjugar
a aparência, a imagem de mim. Tão Tonta! Não
me resguardo o suficiente do julgamento alheio.
Preciso de me não deixar absorver tanto pelos ou-
tros. Ser mais eu. Menos chapéu-de-chuva. Mas
não me acharão “eles” assim, apesar da aparência, de-
masiado intolerante?


Olá, Olá, e os medos? Alguns menos, alguns novos!


Olá, Olá, e os sonhos? Alguns mudaram, mas persiste
a ideia fixa de viver, apesar de tudo, de bem comigo.
Difícil? É bem verdade!
E os espelhos? Reflectem uma mesma luz no rosto.
E o rosto? O mesmo! O corpo? O mesmo perfume.
Desenvolto? Quase tanto como da última vez
que foi corpo para si. Não creio que o menino
alguma vez tenha sido sacrificado. E isso que
importância teria?


Olá, Olá, e a mão? Ferrugenta ou não? Curva
no limbo da folha. A cor? Difícil são as exi-
gências do tempo, cumprições de mais!



[Poema sem título nem data mas, certamente, escrito em 1980, provavelmente, durante o verão ou mesmo antes. Deste poema existe uma variante na qual integro mesmo versos de um poema de Jorge de Sena. É de todos os Primeiros Poemas um dos mais antigos e o que mais me surpreendeu, a mim próprio, por ser mais longo do que o costume e assumir-se como uma descrição/reflexão de perfil psicológico a propósito de uma relação acabada, ora do meu lado, ora do “outro” lado. Em epígrafe, de forma expressa e excessiva, excertos de poemas de Jorge de Sena.]

domingo, março 30

A VIDA QUOTIDIANA EM TABLÓIDES - 25 de abril - 40 anos, 59


Fotografia de Hélder Gonçalves

À porta do meu Banco no patamar, acocorados, um e uma,
vendem a pele de uns pratos encardidos
mesmo no traço que já lhes deu flores garridas.
Eles escorriam chuva, que chovia, para a louça. Eles nem devem ter sangue
pela tez lustrosa da porcelana dos seus olhos de caveira.
(Até faz rir, leitor, coisa tão triste.)

Um fio de mar, parece-me, inclinava a terra num poço de luz
silenciosa. O vulto que chegou de motorizada pela mão
esconde as dunas, a vaguear com a madeira torcida
que encontrou. Esconde-se de si, todos o vêem.
Ouvimos rádio, com o guiador colado ao jornal, os joelhos afastados,
uns outros num carro sem ruído, depois com a boca ranhosa diz palavrões
e afasta-se alheio a tudo.

Nos corredores das lojas a passear, lá em cima,
arrasta um calçado encharcado, um saco de plástico que verte.
Quando lhe tocam, sujam-se, mais rápidos caminham fazendo um esgar doentio.
Não tardará que o homem de farda lhe indique a saída.

Há boas acções e acções más, dizia-me (parece da religião, mas é da bolsa que fala).
No mesmo dia ganhava sempre, a comer brioches, teve azar.
(Quem espera de mim, ó céus, seu funcionário?)

José Emílio-Nelson

sexta-feira, março 28

PARA AS CRIANÇAS - 25 de abril - 40 anos, 58

Fotografia de Hélder Gonçalves

Para as crianças digo
o verso que faltava.
Menos que o verso, digo
a palavra – ou já não tanto:
a sílaba, o som, o sibilar,
só o tremor do vento
do grito ou gargalhada.

Para as crianças digo
o que faltava, o mais
essencial, o pão do dia
que nos fará crescer
a elas e a nós:
para as crianças digo
um tudo, um nada.

Pedro Tamen