terça-feira, junho 7

O MENINO IMAGINOSO


“Foto de António José Alegria, do amistad”

Já não tenho o meu livro azul
e olho obstinadamente
aquela janela sempre fechada
que dá para a rua estreita,
onde à noite,
cirandam mulheres que parecem sombras
e sombras
que parecem mulheres.
Os meus,
arriscam feijões ao lôto
e beberricam licor de tangerina,
naquela maneira sisuda,
com que afrontam
todas as coisas da vida.
E das minhas tristezas …
fingem nada saber.

Já não tenho, o meu livro azul …
onde vinha a história
do limpa-chaminés,
que espalhou uma mão cheia
de bagas vermelhas
nos cabelos anelados
e cantava canções,
que ninguém mais sabia.
E a história do sapateiro
que se fez pescador de sereias,

e corria os mares
do cabo do mundo,
a tocar
na concha dum búzio!
E mais a história
do estudante desatinado,
que andava com os cabelos
ao léu,
atirava pedras aos velhos
e fazia caretas às virgens.
E na rua pior afamada
dum bairro mal freqüentado,
deixou fugir a vida
por sete golpes de navalha!

Já não tenho, o meu livro azul …
onde tudo era insensato,
- no dizer da tia Joaquina,
que anda de mal com a vida
porque tem um cancro
num sítio.
Era o pescador
tão pobre, tão pobre,
que nunca tinha em casa
um dia de sossêgo,
mas uma vez achou um tesouro
e foi esbanjá-lo todo,
em lençois de linho.
E era o capitão que veiu da guerra,
com muitas estrêlas ao peito!
Mas tinha mêdo
de dormir sozinho,
no quarto grande
e só cantava de galo,
quando olhava o sol.
E era a história do menino-que-tudo-sabia,
mas perdeu uma vida inteira
com mêdo de sair à rua.
E mais a história engraçada
daquele senhor de bôas-maneiras,
que tinha geitos de palhaço,
e um dia foi com os saltimbancos
pelas feiras de todo o mundo,
a fazer rir tôda a gente!

Já não tenho, o meu livro azul …
e eu bem sei
como o perdi.
-Naquêle serão alto,
meu pai admirou-se de ser noite velha
e começou de esfregar nos joelhos,
com aquele geito
que sempre me assustou.
“Quinze anos em Janeiro,
estás um homenzinho!
passado domingo …
vais para a loja do tio António,
aprender …
a ser um homem!”
E quando lhe pedi
- sua bênção, paizinho,
já me não deu o beijo de tôdas as noites,
mas tocou-me no ombro
uma palmada mansinha,
Minha mãe,
afastou a costura e afagou-me os cabelos,
com a mão em concha.
Sem saber porquê,
senti que ia chorar …
Quando o ôvo de pau lhe saltou do colo
e se pôz a correr pela casa,
como coisa doida!

Já não tenho, o meu livro azul …
e passado domingo …
lá vou para a loja do tio António.
O tio António …
Que mal topa espelho,
deita logo de fora
uma língua grossa e branca,
como eu nunca vi outra.
Eu bem conheço,
a loja do tio António,
onde está um rapaz com sardas na cara
e mais um manequim,
com um olho vasado.
É lá no canto escuso
daquela praça larga,
onde há pombos, que não fogem da gente!

Manuel Ribeiro de Pavia

“Cadernos de Poesia – 3”
Lisboa/1940


In Cadernos de Poesia
Campo das letras

A quem interessa a guerra?

Domingo passado, numa entrevista ao Público, Attali fez um alerta para os perigos de uma nova guerra mundial: “As três primeiras mundializações acabaram com guerras; a quarta corre o mesmo risco”.

Ontem José M. Fernandes, em editorial, no mesmo jornal, volta ao tema. Um ministro italiano, depois outro, em poucos dias, falam do abandono do euro e do retorno à lira.

As notícias más propagam-se como fogo em floresta ressequída. Os governos dos países, nos quais se deveriam realizar referendos ao Tratado Constitucional, sob a chantagem dos riscos de vitórias do “não”, ponderam (e consumam) o adiamento da consulta popular. A Inglaterra já seguiu esse caminho.

A Europa está numa encruzilhada. A quem interessa o fim da UE? A quem interessa a guerra? Eis duas perguntas cada vez mais sérias e menos esotéricas!

"Maluco"

Ainda nesta série acerca da administração pública. Encontrei o velho amigo B. numa pastelaria do bairro com a sua jovem mulher e o rebento. Sempre o tenho visto, ao longo dos anos, nas mais diversas situações do quotidiano. Cruzamos-nos nos mesmos espaços. É um alto quadro da administração fiscal.

Desta vez deu para falar. Mostrou-me uma carta, que agora trás sempre carteira, onde lhe comunicam as razões pelas quais não pode aceder ao lugar para o qual se classificou. A razão essencial traduz-se numa palavra simples: “maluco”. No caso pareceu-me o paradigma do bem estar: “o maluco feliz”. O mais interessante é que fiquei a saber quem, segundo ele, manda, de facto, na administração fiscal. Surpreendente.

segunda-feira, junho 6

Labirinto


Foto de uma por rolo

A administração pública é um labirinto [Houaiss: “lugar com muitas passagens entrecruzadas que dificultam encontrar a saída.”]. A experiência diz-me que das duas uma: ou sobrevivem os piores, aqueles que desistem de encontrar a saída, ou os “espertos”, aqueles que sempre fazem crer que encontraram a saída certa. Cavaco Silva nos tempos áureos do seu consulado governativo definiu a “solução final” para a administração de uma forma pouco subtil: reforma-se deixando morrer os sobreviventes.

O labirinto tem regras próprias que raramente são as regras que a comunidade/estado atribui à administração pública. O labirinto exige uma administração dentro da administração. Quem administra o labirinto está, por norma, condicionado, pela clientela dos sobreviventes que se alimentam do próprio labirinto.

Mal daquele que afronte o poder dos sobreviventes que se funda nos chamados “direitos adquiridos”. Daqui resulta que o trabalho da administração sendo, quantas vezes, desprezível para a comunidade é uma preciosidade para os sobreviventes. Que são muitos e, a mor das vezes, estimáveis.

Nunca mais esquecerei o caso do Sr. L. que não aceitou nunca ser promovido. O Sr. L. , além de não se sentir merecedor de reconhecimento, não queria correr o risco que lhe fosse, em qualquer circunstância, pedido para deixar de entrar e sair às horas certas pois tinha que tratar dos pais.

A excepção e a regra

A propósito das medidas e notícias acerca da administração pública nos últimos dias. A revelação mais notável: na administração pública a excepção é a regra. Quem obedece à regra torna-se numa verdadeira excepção. É o caso de alguns (poucos) entre os quais me incluo. Pode tornar-se perigoso jogar o jogo como se a regra fosse a regra e não a excepção.

domingo, junho 5

IDEIAS



Honra : Brio : Dignidade :
Onde estais? Quem vos présa?
- Não posso viver pobre. – A frialdade
Que me dá toda a pobreza!

Lembram-me bichos, carochas, centopeias,
Musgo, parêdes úmidas, bolôres,
Ao pensar na pobreza! – Ideias.
E causam-me suores.

Afonso Duarte

“Cadernos de Poesia” – 4
Lisboa/1941

Cesário Verde por Fialho de Almeida

A Ler no Miniscente: “A arte da descrição no seu melhor”

(Retrato de Cesário Verde escrito por Fialho de Almeida)

CHINA BELA (de novo)

Retomo o post CHINA BELA com um link que nos leva ao sítio certo.

Manifesto Anti-Jardim

A ler o Manifesto Anti-Jardim em "Erotismo na Cidade".

Coragem

Publico um dos comentários que recebi a propósito do artigo "Os socialistas, o Deficit e a Reforma do Estado Providência" publicado, sexta-feira passada, no SE e disponível, assim como outro texto posterior, no IRAOFUNDOEVOLTAR.

Devo esclarecer, a propósito, que o artigo em questão foi enviado para o SE uma semana antes da sua publicação pelo que não podia incorporar uma reflexão acerca dos desenvolvimentos suscitados pelas notícias acerca da acumulação de remunerações e pensões auferidas por detentores de cargos políticos.

Mas esta polémica não acrescenta nada de essencial à questão de fundo, tratada no artigo, qual seja, a necessidade urgente de reformar o “Estado Social” na sua configuração actual.

“Li o artigo. Preocupam-me, sinceramente, as "peripécias" que estão, no entanto, a despontar; e, tanto quanto me quer parecer, a "procissão ainda vai no adro"... Ou há coragem politica e o Socrates leva TUDO até às ultimas consequências ou o Povo Português não irá, de certeza, compreender e aceitar os sacrificios que lhe são, mais uma vez, pedidos. Pela minha parte, não me chega não ser ÉTICAMENTE CORRECTO. As leis que dão corpo a estas "benesses" têm autores materiais. Importa, agora, saber se há Vontade e Autoridade para as "minorar".”
CS

O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO


“Foto de António José Alegria, do amistad”

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

*

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O'Neill

In ”Tempo de Fantasmas”
“Cadernos de Poesia” – Fascículo Onze - Segunda Série
Novembro de 1951

sábado, junho 4

Miao Girl


Miao Girl - Foto seleccionada por Marg. Ramos

Há uma espécie de beleza que é imune à passagem do tempo. É o que, de forma abreviada, se poderá chamar de beleza clássica?

Há uma espécie de destino trágico dos impérios que os chineses caracterizam numa frase, citada por Camus: “os impérios que estão à beira da ruína têm numerosas leis.”

As lutas do nosso tempo

Pode ter acesso aqui ao “Programa de Estabilidade e Crescimento – 2005/2009”.

“As lutas do nosso tempo: a propósito do desabrochar de uma campanha violenta contra as medidas do governo socialista”. Novas notas de reflexão acerca das medidas do governo no IR AO FUNDO E VOLTAR.

sexta-feira, junho 3

Gente


Sardoal, uma tarde de primavera: andei pelas ruas do Sardoal uma tarde inteira. parei em tascas, meti conversa, entrei em casa de desconhecidos, sorrimos, falámos, brindámos: tentei captar mais almas

Para conhecer PELA LENTE

Vivam os Cabos!

A notícia veio a lume no “Público”, de hoje, e é espantosa. É um retrato impedioso, “á la minute”, da governação de direita à portuguesa (e não só!).

O título:
Comando da GNR processado por cabos que se sentem prejudicados na carreira

Como não tenho acesso à versão electrónica aqui vão dois excertos da notícia:

“O Comando geral da Guarda Nacional Republicana (GNR) foi processado por um grupo de cabos desta força militarizada que se sentem discriminados e prejudicados por um despacho do comandante-geral. A decisão, tomada em Outubro de 2002, fez com que 6000 soldados tivessem passado automaticamente à categoria de cabo” (…)

“As promoções “decretadas” geraram ainda uma situação classificada de “caricata”, já que a lógica da pirâmide hierárquica foi subvertida – passou-se de 4.711 para 10.711 cabos e de 18.664 para 12.664 soldados – fazendo com que os novos cabos continuassem a exercer as funções de soldados (“porque não há quem desempenhe as suas funções primitivas”), muitas vezes comandados por aqueles que agora auferem vencimentos inferiores” (Os sublinhados são meus).

Perceberam? A notícia não associa a data do despacho ao governo em funções à época. Mas para os mais esquecidos sempre se pode recordar que era 1º ministro Durão Barroso, ministra das finanças Manuela Ferreira Leite e ministro da administração interna Figueiredo Lopes.

Eram os tempos áureos da “tanga”, da austeridade, com congelamento de aumentos salariais e de admissões de pessoal na administração pública. Lembro-me bem dessa época! Lembram-se?

Um Testemunho

O “Semanário Económico” publica, hoje, o meu artigo sob o título “Os Socialistas, o Deficit e a Reforma do Estado Providência” do qual aqui deixo a epígrafe e os dois últimos parágrafos.

Trata-se de um testemunho claro de apoio ao governo socialista que resulta das minhas próprias convicções e que o momento político actual, no meu ponto de vista, reclama e exige.

"Desconfiai daqueles que vos dizem: nada de discussões políticas que são estéreis; ocupemo-nos só dos melhoramentos materiais do país".

Alexandre Herculano

(...)

“Por razões económicas e, primordialmente, como afirmava Herculano, atribuindo prioridade à política, mais vale que sejam os democratas e, em particular, os socialistas a promover, de uma vez por todas, a empresa de dobrar o “cabo bojador “ do saneamento das finanças públicas.

Aqui fica o meu apoio, no essencial, às primeiras medidas anunciadas pelo governo que espero se não deixe aprisionar pelos interesses particulares das corporações, à direita e à esquerda, que sempre proclamam a eminente falência do estado social, opondo-se à sua modernização, para que o possam usar à medida dos seus interesses particulares, abrindo caminho para a sua ilegítima apropriação.

Os exemplos do passado recente são muitos e estão à vista de todos.”

O mesmo pode ser lido, na íntegra, no IRAOFUNDOEVOLTAR ou no site daquele semanário.

quinta-feira, junho 2

APENAS O AMOR


E já agora a imagem de Aldina Duarte e o título do CD em lançamento - "apenas o amor".

Foto retirada do Apenas o Amor

ALDINA DUARTE


Aldina Duarte - entrevista (na TSF) com uma grande fadista portuguesa, em particular, para as amigas e amigos do Brasil. Com alguns fados à mistura. Aldina Durate é um caso à parte quer como mulher, quer como poeta, quer como intérprete - OUÇA AQUI.

EM PLENO AZUL


“Foto de António José Alegria, do amistad”

Com horror mal disfarçado
sincero desgosto (sim!)
lágrima azul aflita
mão crispada de piedade
vêem-me passar cantando
calamidades desastres
impossíveis de evitar
as mães
as minhas a tua
as que estropiam ternamente os filhos
para monótono e prudente
avanço da família

E quando paro e faço a propaganda
dos lugares mais comuns da poesia
há um terror quase obsceno
nos seus olhos maternais

Então prometo congressos
em pleno azul

Prometo uma solução
em pleno azul

Prometo não fazer nada
em pleno azul

sem consultar o «bureau»
em pleno azul

Visìvelmente sossegadas
é a hora de não cumprir
de recomeçar cantando
calamidades desastres
ruínas por decifrar

*

Se eu não estivesse a dormir
perguntaria aos poetas
A que horas desejam que vos acorde

Vamos decifrar ruínas
identificar os mortos
dormir com mulheres reais
denunciar os traidores
e atraiçoar a poesia
envenenada nas palavras
que respiram ausência podre

vamos dizer sem maiúsculas
o amor a vida e a morte

*

E as mães
onde estão elas?

As mães rezam as mães
cosem farrapos de dor
as mães gritam
choram
uivam
no espesso rio de um sono
já quase só animal

Alexandre O´Neill

In “Tempo de Fantasmas”
“Cadernos de Poesia” – Fascículo Onze – Segunda Série
Novembro de 1951

quarta-feira, junho 1

BALANCE


Balance de Kuang Jian (Recolha de Marg. Ramos) - Uma imagem da China diferente do paradigma ocidental.

A economia chinesa cresce a uma velocidade estonteante. Em 4 anos (2000/2004) o índice médio anual de crescimento do PIB chinês foi de 8,6%.

A Europa cresce à velocidade do caracol . O Banco Central Europeu anunciou, recentemente, a revisão em baixa da sua previsão de crescimento para a Zona Euro, em 2005, para os 1,4% contra os previstos 1,6%.

O BCE reviu, de igual modo, as suas previsões de crescimento para 2006, de 2,1% para os 2% e para 2007, de 2,3% para os 2,2%.

Por outro lado os EUA rejubilam com os resultados do referendo em França e na Holanda. Dividir para reinar.

No Causa Nossa Ana Gomes analisa a situação acertando no alvo.