
“Foto de António José Alegria, do amistad”
Já não tenho o meu livro azul
e olho obstinadamente
aquela janela sempre fechada
que dá para a rua estreita,
onde à noite,
cirandam mulheres que parecem sombras
e sombras
que parecem mulheres.
Os meus,
arriscam feijões ao lôto
e beberricam licor de tangerina,
naquela maneira sisuda,
com que afrontam
todas as coisas da vida.
E das minhas tristezas …
fingem nada saber.
Já não tenho, o meu livro azul …
onde vinha a história
do limpa-chaminés,
que espalhou uma mão cheia
de bagas vermelhas
nos cabelos anelados
e cantava canções,
que ninguém mais sabia.
E a história do sapateiro
que se fez pescador de sereias,
e corria os mares
do cabo do mundo,
a tocar
na concha dum búzio!
E mais a história
do estudante desatinado,
que andava com os cabelos
ao léu,
atirava pedras aos velhos
e fazia caretas às virgens.
E na rua pior afamada
dum bairro mal freqüentado,
deixou fugir a vida
por sete golpes de navalha!
Já não tenho, o meu livro azul …
onde tudo era insensato,
- no dizer da tia Joaquina,
que anda de mal com a vida
porque tem um cancro
num sítio.
Era o pescador
tão pobre, tão pobre,
que nunca tinha em casa
um dia de sossêgo,
mas uma vez achou um tesouro
e foi esbanjá-lo todo,
em lençois de linho.
E era o capitão que veiu da guerra,
com muitas estrêlas ao peito!
Mas tinha mêdo
de dormir sozinho,
no quarto grande
e só cantava de galo,
quando olhava o sol.
E era a história do menino-que-tudo-sabia,
mas perdeu uma vida inteira
com mêdo de sair à rua.
E mais a história engraçada
daquele senhor de bôas-maneiras,
que tinha geitos de palhaço,
e um dia foi com os saltimbancos
pelas feiras de todo o mundo,
a fazer rir tôda a gente!
Já não tenho, o meu livro azul …
e eu bem sei
como o perdi.
-Naquêle serão alto,
meu pai admirou-se de ser noite velha
e começou de esfregar nos joelhos,
com aquele geito
que sempre me assustou.
“Quinze anos em Janeiro,
estás um homenzinho!
passado domingo …
vais para a loja do tio António,
aprender …
a ser um homem!”
E quando lhe pedi
- sua bênção, paizinho,
já me não deu o beijo de tôdas as noites,
mas tocou-me no ombro
uma palmada mansinha,
Minha mãe,
afastou a costura e afagou-me os cabelos,
com a mão em concha.
Sem saber porquê,
senti que ia chorar …
Quando o ôvo de pau lhe saltou do colo
e se pôz a correr pela casa,
como coisa doida!
Já não tenho, o meu livro azul …
e passado domingo …
lá vou para a loja do tio António.
O tio António …
Que mal topa espelho,
deita logo de fora
uma língua grossa e branca,
como eu nunca vi outra.
Eu bem conheço,
a loja do tio António,
onde está um rapaz com sardas na cara
e mais um manequim,
com um olho vasado.
É lá no canto escuso
daquela praça larga,
onde há pombos, que não fogem da gente!
Manuel Ribeiro de Pavia
“Cadernos de Poesia – 3”
Lisboa/1940
In Cadernos de Poesia
Campo das letras