segunda-feira, junho 13

EUGÉNIO DE ANDRADE (II)


Foto "Público" - (post escrito um ano atrás com dois poemas).

Ouvi dizer, e é público, que o Eugénio de Andrade está muito doente. Não serve de nada glosar as doenças nem chorar a morte dos poetas. Eles quando são verdadeiros ficam sempre vivos. Quando são grandes tornam-se imortais. Não sei se Portugal segue esta regra universal. Aqui somos mais dados à inveja e ao esquecimento. Quanto mais obra e obra mais aprimorada, sem vénias, nem costas curvadas, pior para o protagonista.

Não são palavras amargas, suficientemente amargas, as que digo. São o menos que se pode dizer de um país que inverte em tudo a hierarquia da importância das coisas. E da importância dos homens. Por isso não te admires se fores votado ao esquecimento. A tua glória já dura há muito tempo. És, graças a Deus, admirado em vida. Admirado por aqueles que merecem admirar-te. Não interessa nada admirar-te na doença. Muito menos na morte.

Tenho aqui na minha frente uns quantos poemas dedicados a heróis e amigos mortos: Guillaume Apollinaire, Augusto Gomes, Vicente Aleixandre, Kavafis, Che Guevara, José Dias Coelho, Casais Monteiro, Pier Paolo Pasolini, Jorge de Sena, Ruy Belo, Carlos Oliveira, Vitorino Nemésio e tantos mais. Teus heróis e amigos. Um poema destes vale mais que todas as homenagens da praxe com regresso garantido ao baú das memórias. Ainda para mais quando sabemos que estão na fila de espera um ror de poetas vivos, e de saúde, para ser condecorados.

A CASAIS MONTEIRO,
PODENDO SERVIR DE EPITÁFIO


O que dói não é um álamo.
Não é a neve nem a raiz
da alegria apodrecendo nas colinas.
O que dói


não é sequer o brilho de um pulso
ter cessado,
e a música, que trazia
às vezes um suspiro, outras um barco.


O que dói é saber.
O que dói
é a pátria, que nos divide e mata
antes de se morrer.


Setembro, 72

A JORGE DE SENA,
NO CHÃO DA CALIFÓRNIA


É por orgulho que já não sobes
as escadas? Terás adivinhado
que não gostei desse ajuste de contas
que foi a tua agonia?
É só por isso que não vieste
este verão bater-me à porta?
Não sabes já
que entre mim e ti
há só a noite e nunca haverá morte?


Não te faltou orgulho, eu sei;
orgulho de ergueres dia a dia
com mãos trementes
a vida à tua altura
-mas a outra face quem a suspeitou?
Quem amou em ti
o rapazito frágil, inseguro,
a irmã gentil que não tivemos?


Escreveste como o sangue canta:
de-ses-pe-ra-da-men-te.
e mostraste como não é fácil
neste país exíguo ser-se breve.
Talvez o tempo te faltasse
para pesar com mão feliz o ar
onde sobrou
um juvenil ardor até ao fim.


No que nos deixaste há de tudo,
desde o copo de água fresca
ao uivo de lobos acossados.
Há quem prefira ler-te os versos,
outros a prosa, alguns ainda
preferem o que sobre a liberdade
de ser homem
foste deixando por aí
em prosa ou verso, e tangível
brilha
onde antes parecia morta.


Às vezes orgulhavas-te
de ter, em vez de uma, duas pátrias;
pobre de ti: não tiveste nenhuma;
ou tiveste apenas essa
que te roía o coração
fiel às palavras da tribo.


Andaste por muito lado a ver se o mundo
era maior que tu – concluíste que não.
Tiveste mulher e filhos portuguesmente
repartidos pela terra,
e alguns amigos,
entre os quais me conto.
E se conta o vento.


Agosto, 1978

(Post publicado, cerca de um ano atrás, quando soube, ao certo, da doença que atingira o poeta. Ao poema dedicado a Casais Monteiro, aquando da sua morte, junto outro que Eugénio de Andrade escreveu quando teve conhecimento da morte de Jorge de Sena).

ÁLVARO CUNHAL E NERUDA


La Lámpara Marina (Ver aqui a versão integral com os desenhos de Álvaro Cunhal)

Pablo Neruda

El Puerto Color de Cielo

I

Cuando tú desembarcas
en Lisboa,
cielo celeste y rosa rosa,
estuco blanco y oro,
pétalos de ladrillo,
las casas,
las puertas,
los techos,
las ventanas,
salpicadas del oro limonero,
del azul ultramar de los navíos.
Cuando tú desembarcas
no conoces,
no sabes que detrás de las ventanas
escuchan,
rondan
carceleros de luto,
retóricos, correctos,
arreando presos a las islas,
condenando al silencio,
pululando
como escuadras de sombras
bajo ventanas verdes,
entre montes azules,
la policía
bajo las otoñales cornucopias
buscando portugueses,
rascando el suelo,
destinando los hombres a la sombra.

EUGÉNIO DE ANDRADE

Tenho lá em casa um livro recente com uma dedicatória que lhe pediu a Manuela. Muitas vezes lhe pego, folheio e releio. Sei do peso das palavras mesmo quando as palavras na sua voz se tornam leves. Aprendi a fúria dos silêncios e a doçura das ausências. A amar quem nos ama e a fingir que se esquece quem nunca se esquece. Li há pouco os poemas que dedicou aos amigos mortos. Nunca desesperados, como que pacientes ralhetes, tão belos, sem rancores nem invejas. Eugénio de Andrade morreu. É a lei da vida. Vejo o mar desta janela. Toldado por nuvens ameaçadoras de chuva. O que me apetece dizer quando morrem em catadupa as velhas glórias do passado de todas as lutas mesmo que delas não partilhemos o sentido é o silêncio. Mas Eugénio de Andrade libertou as palavras das grilhetas que as prendiam, deixou que elas dissessem tudo o que entendessem, disse-nos, pacientemente, que as palavras não se querem aprisionadas pelo silêncio. Que viva!

INATEL - 70 ANOS

Celebra-se hoje o 70º Aniversário do INATEL. Presidi aos destinos desta prestigiada organização 7 anos. Devo ser, pois, o cidadão português, vivo, que durante mais tempo exerceu aquelas funções.

Tomei conhecimento que o Senhor Presidente da República , neste 10 de Junho (Dia de Portugal) atribuiu ao INATEL uma condecoração pelos méritos no desempenho das missões que o Estado lhe tem conferido, desde 1935, primeiro com a designação de FNAT e posteriormente ao advento da liberdade e democracia como INATEL.

Não tenho duvidas acerca do merecimento desta distinção. A este propósito poder-se-á afirmar que nunca é tarde demais, mas sempre prefiro tomar, para meu descanso de alma, o sábio ensinamento que Camões nos deixou nos seus límpidos versos:

Porque essas honras vãas, esse ouro puro
Verdadeiro valor não dão à gente,
Melhor é merecê-los, sem os ter
Que possuí-los sem os merecer....

No que respeita à minha contribuição (e de todos os que me acompanharam) para os méritos da acção do INATEL acompanho Tomaz Kim quando sintetiza o conceito de Tradição: “é um conceito dinâmico que envolve um lúcido sentido histórico aliado à força criadora dos que a perpetuam, rejuvenescendo-a, por se saberem integrados num património universal e vivo”.

Assim soubessem todos os governantes que, no passado recente, assumiram a tutela política do INATEL ser fiéis e honestos guardiões deste conceito dinâmico da Tradição honrando a memória dos mortos e defendendo a honra dos vivos.

domingo, junho 12

CAMÕES

E, num passo único na literatura universal, descreveu ele [Camões] inegualávelmente, como já o fizera em “Sobolos rios” para os “cantares de amor profano por versos de amor divino”, o drama da hesitação fáustica, peculiar a todos os poetas que foram grandes por uma consciência genial da estruturação dialéctica da representação do universo –

Ah falso pensamento, que me enganas!
Fazes-me por a boca onde não devo,
Com palavras de doudo, e quase insanas!
Como alçar-te tão alto assi me atrevo?
Tais asas dou-tas eu, ou tu mas dás?
Levas-me tu a mim, ou eu te levo?
Não poderei eu ir onde tu vás?
Porém, pois ir não posso onde tu fores,
Quando fores, não tornes onde estás.


Jorge de Sena

Excerto de “A Poesia de Camões” – Ensaio de Revelação da Dialéctica Camoneana (Conferência lida no Clube Fenianos Portuenses, em 12 de Junho de 1948).

In “Cadernos de Poesia” – Fascículo Sete – Segunda SérieLisboa, Junho de 1951

sexta-feira, junho 10

A POESIA DE CAMÕES


“Foto de António José Alegria, do amistad”

"A Poesia de Camões" por Jorge de Sena (excerto)

(...)

“E de facto, para a popularidade, a narração amplificada e amplificadora das glórias nacionais valeu e vale no poema, [“Os Lusíadas”] por contraste, e porque, a cada passo, surgem aqueles trechos candentes de juízo final, como este:

No mais Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada, e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda, e endurecida:
O favor com que mais se acende o engenho,
Não no dá a pátria, não, que esta metida,
no gosto da cubiça, e na rudeza,
Dhua austera, apagada, e vil tristeza, (*)

Ou este:

E ponde na cobiça hum freio duro,
E na ambiçam também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente:
Porque essas honras vãas, esse ouro puro
Verdadeiro valor não dão à gente,
Melhor é merecê-los, sem os ter
Que possuí-los sem os merecer.

(…)

- trechos bem pouco épicos, bem pouco adequados à cantoria que a retórica balofa se esforça por extrair dos Lusíadas mas, apesar de tudo, épicos por contradição, na medida em que a pessoal revolta se desprende dos seus próprios problemas e se arroga o direito, não de julgar e condenar, o que seria pouco e amarrado ao tempo, mas de desmascarar a situação colectiva.

É neste mesmo sentido que a longa e célebre fala do Velho do Restelo, em que se tem querido ver o Portugal da terra contra o Portugal dos mares, ou ainda, o espírito de prudência contra o espírito de aventura, é, principalmente, a expressão – “com saber só d´experiencias feito” – da “misera sorte, estranha condição”: a originalíssima irrupção, no plano da criação épica, do valor intrínseco e precário da vida humana como tal afirmado por um homem que, numa canção, enlevado na angústia perene da sua meditação afirma –

Não cuide o pensamento
Que pode achar na morte
O que não pode achar tão longa vida

(*) Todas as citações do épico são feitas do fascimile da 1ª edição de "Os Lusíadas” pois que aí se entende tudo o que os gramáticos tem conseguido que não seja entendido.”

Jorge de Sena

Excerto de “A Poesia de Camões” – Ensaio de Revelação da Dialéctica Camoneana (Conferência lida no Clube Fenianos Portuenses, em 12 de Junho de 1948).

In “Cadernos de Poesia” – Fascículo Sete – Segunda Série
Lisboa, Junho de 1951

quinta-feira, junho 9

DIA DE PORTUGAL


In “O Portal da História”

Luís de Camões. [Gravura do frontispício da edição dos Lusíadas do Morgado de Mateus.]

Os Lusíadas, Poema Épico, Paris, Na Oficina Typographica de Firmin Didot, 1817 - Gravura aberta por F. Lignon, sobre um desenho de F. Gérard e enquadramento de L. Visconti, para a edição de Os Lusíadas, realizada em Paris para D. José Maria de Sousa Botelho, conhecido por Morgado de Mateus.

Luís de Camões morreu em 10 de Junho de 1580. O dia tornou-se em 1924 o Dia da Raça e assim será comemorado durante o resto da República e no Estado Novo e, em 2 de Março de 1978, passou a ser o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.


Arriba España


Zapatero vuelve a ‘pronosticar’ buenos datos del paro, en una España que va "más que bien”

ELPAIS.es - Economía - 09-06-2005


El presidente del Gobierno ha vuelto a vaticinar que, después de los datos positivos del empleo en el mes de mayo, en junio se mantendrá esa tendencia tanto en la creación de puestos de trabajo como en la afiliación a la Seguridad Social.

José Luis Rodríguez Zapatero aseguró que la economía española marcha “más que bien”. "Nuestro crecimiento se acelera, invertimos en bienes de equipo, creamos empleo con intensidad, disminuimos el paro, fortalecemos la Seguridad Social y convergemos con Europa", añadió el presidente en su intervención ante el Foro que celebran en Madrid las Cajas de Ahorro.

Zapatero, que ya fue criticado por adelantar la semana pasada, en la apertura del 39 Congreso Confederal de UGT, los datos de creación de empleo y afiliaciones a la Seguridad Social, ha vuelto a hacer un ‘pronóstico’ de los datos que se deberán conocer el próximo mes.

Sólo es un pronóstico


El presidente aseguró que nadie le puede acusar ahora de "jugar con ventaja" si a día de hoy, 9 de junio, hace un pronóstico sobre la evolución del empleo y la afiliación a la Seguridad Social correspondiente al mes en curso.


"Preveo que los datos de empleo y de Seguridad Social serán también este mes muy positivos, y estoy seguro -añadió- de que este pronóstico alegrará a la mayoría de los agentes económicos que ven con optimismo el futuro de nuestra economía y de nuestro país".

quarta-feira, junho 8

RUY CINATTI


VIGÍLIA

PARALELAMENTE sigo dois caminhos
Abstracto na visão de um céu profundo.
Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua subreptìciamente
Com voz semelhante à minha. O melhor mundo
Está por descobrir. Não segue a lua
Nem o perfil da proa. Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado e oculto.

Quero-me mais dentro de mim, mais desumano
Em comunhão suprema, surto e alado
Nas aragens nocturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixes à tona de água
E precipitam asas nas esteiras de luz.
Da vida nada se leva, senão
A melhoria de um paraíso sonhado
E procurado
Com ternura, crueldade e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar ameno,
Brincar de almas verticais em pleno
Sol de alvorada que descerra as pálpebras.

Rui Cinatti

Atlântico, Agosto, 1950

In “Cadernos de Poesia”
II Série – Lisboa/1951

Cadernos de Poesia
Campo das Letras

Yuan Zuo


Blue Hill Has A Lots of Pine Tree
[oil on canvas - 40 x 30 in]

Yuan Zuo - 1981, The Central Academy of Fine Art. Beijing, China. 1982. University of Wisconsin. Milwaukee, Wi. 1985, B.F.A. Massachusetts College of Art. Boston, Ma. 1985, M.F.A. Massachusetts College of Art. Boston, Ma.

(Série - Artistas Chineses)

In Tao Water Art Gallery

FIM DAS SUBVENÇÕES VITALÍCIAS

Aqui está uma proposta que se julgaria, uns tempos atrás, quase impossível de formular.

Os detractores do governo socialista (incluindo muitos socialistas) vão-lhe achar defeitos sem conta. Mas quem quiser ser honesto terá que reconhecer que é uma proposta corajosa pois os políticos limitarem os seus próprios privilégios está muito para além do que a opinião esperaria deles.

Fixem bem o significado desta medida ainda mais quando alguns ministros que beneficiam da lei, actualmente em vigor, aceitarem perder regalias continuando em funções sujeitos às regras da nova lei.

Então dir-se-á que deveriam não aceitar perder regalias! Que algum outro benefício se esconde por detrás desta decisão! Mas se a lei for aprovada no parlamento, sem desvirtuamentos, terá sido dado um passo significativo para dignificar a democracia, as suas instituições e a classe política.

"Governo aprovou fim das subvenções vitalícias
O Governo aprovou esta quarta-feira, em Conselho de Ministros, a proposta que prevê o fim das subvenções vitalícias para titulares de cargos políticos, incluindo o chefe do Governo. Ficam de fora o Presidente da República e os presidentes das regiões autónomas."

Incêndios

Tenham paciência. Não sei nada de meios aéreos. Nem sequer sei se são muito importantes para o combate aos incêndios. São certamente um bom negócio. Ao contrário da prevenção que não deve ser negócio nenhum de jeito pois nunca dá origem a declarações na TV de empresários com ar muito senhores de si.

Dou de barato a questão da complexidade técnica e da delicadeza política das opções a tomar a respeito da contratação dos meios aéreos de combate aos incêndios. Em pouco tempo o governo terá sido obrigado a analisar procedimentos já lançados e avaliar da sua bondade legal e financeira.

Mas estava escrito nas estrelas que, este ano, os incêndios iam começar cedo. A seca severa não deixava margem para dúvidas. Toda a gente o dizia pelas esquinas e nem seria necessário conhecer a avaliação dos especialistas, aliás todos eles, membros dos chamados “corpos especiais” da administração pública!.

O governo sabe, a propósito dos incêndios e de tudo o resto, que é fraco o argumento de lançar as culpas dos atrasos e da inépcia para o governo anterior. No caso do combate aos incêndios havia que legislar de emergência para fazer face a uma - mais que previsível - situação de emergência. Não sei se foi isso que o governo fez. Mas se foi não parece.

Canalhice

A funcionária X, um dia, suicidou-se. Na véspera alguém lhe tinha proibido o acesso à casa de banho do andar da administração. O mais certo é ter sido uma coincidência mas a dúvida persistiu. A prepotência deprime as pessoas de boa vontade e gera a revolta. Praticada pelos grandes é a antecâmara da tirania; praticada pelos pequenos é a vingança dos humilhados sobre a sua má sorte.

A prepotência é sempre, em qualquer circunstância, uma canalhice sem nome. Nunca mais esqueci o rosto e a figura da funcionária X . Bailam na minha memória.

terça-feira, junho 7

Ma Lin


The Floating Cloud [oil on canvas - 100 x 90 in]

Ma Lin was born in 1964, China, and graduated from Tianjin Academy of Fine Arts in 1993. Later he graduated from Central Academy of Fine Arts, advanced class with oil painting. He lives and teaches in China, who paints with great detail, also has solid realist skills. He painted surrealistically, interpreting anxiety unease, and frightened moods. His people and horses were put in that moment just before a storm arrives.

(Série “Artistas Chineses”)

in Tao Water Art Gallery

O MENINO IMAGINOSO


“Foto de António José Alegria, do amistad”

Já não tenho o meu livro azul
e olho obstinadamente
aquela janela sempre fechada
que dá para a rua estreita,
onde à noite,
cirandam mulheres que parecem sombras
e sombras
que parecem mulheres.
Os meus,
arriscam feijões ao lôto
e beberricam licor de tangerina,
naquela maneira sisuda,
com que afrontam
todas as coisas da vida.
E das minhas tristezas …
fingem nada saber.

Já não tenho, o meu livro azul …
onde vinha a história
do limpa-chaminés,
que espalhou uma mão cheia
de bagas vermelhas
nos cabelos anelados
e cantava canções,
que ninguém mais sabia.
E a história do sapateiro
que se fez pescador de sereias,

e corria os mares
do cabo do mundo,
a tocar
na concha dum búzio!
E mais a história
do estudante desatinado,
que andava com os cabelos
ao léu,
atirava pedras aos velhos
e fazia caretas às virgens.
E na rua pior afamada
dum bairro mal freqüentado,
deixou fugir a vida
por sete golpes de navalha!

Já não tenho, o meu livro azul …
onde tudo era insensato,
- no dizer da tia Joaquina,
que anda de mal com a vida
porque tem um cancro
num sítio.
Era o pescador
tão pobre, tão pobre,
que nunca tinha em casa
um dia de sossêgo,
mas uma vez achou um tesouro
e foi esbanjá-lo todo,
em lençois de linho.
E era o capitão que veiu da guerra,
com muitas estrêlas ao peito!
Mas tinha mêdo
de dormir sozinho,
no quarto grande
e só cantava de galo,
quando olhava o sol.
E era a história do menino-que-tudo-sabia,
mas perdeu uma vida inteira
com mêdo de sair à rua.
E mais a história engraçada
daquele senhor de bôas-maneiras,
que tinha geitos de palhaço,
e um dia foi com os saltimbancos
pelas feiras de todo o mundo,
a fazer rir tôda a gente!

Já não tenho, o meu livro azul …
e eu bem sei
como o perdi.
-Naquêle serão alto,
meu pai admirou-se de ser noite velha
e começou de esfregar nos joelhos,
com aquele geito
que sempre me assustou.
“Quinze anos em Janeiro,
estás um homenzinho!
passado domingo …
vais para a loja do tio António,
aprender …
a ser um homem!”
E quando lhe pedi
- sua bênção, paizinho,
já me não deu o beijo de tôdas as noites,
mas tocou-me no ombro
uma palmada mansinha,
Minha mãe,
afastou a costura e afagou-me os cabelos,
com a mão em concha.
Sem saber porquê,
senti que ia chorar …
Quando o ôvo de pau lhe saltou do colo
e se pôz a correr pela casa,
como coisa doida!

Já não tenho, o meu livro azul …
e passado domingo …
lá vou para a loja do tio António.
O tio António …
Que mal topa espelho,
deita logo de fora
uma língua grossa e branca,
como eu nunca vi outra.
Eu bem conheço,
a loja do tio António,
onde está um rapaz com sardas na cara
e mais um manequim,
com um olho vasado.
É lá no canto escuso
daquela praça larga,
onde há pombos, que não fogem da gente!

Manuel Ribeiro de Pavia

“Cadernos de Poesia – 3”
Lisboa/1940


In Cadernos de Poesia
Campo das letras

A quem interessa a guerra?

Domingo passado, numa entrevista ao Público, Attali fez um alerta para os perigos de uma nova guerra mundial: “As três primeiras mundializações acabaram com guerras; a quarta corre o mesmo risco”.

Ontem José M. Fernandes, em editorial, no mesmo jornal, volta ao tema. Um ministro italiano, depois outro, em poucos dias, falam do abandono do euro e do retorno à lira.

As notícias más propagam-se como fogo em floresta ressequída. Os governos dos países, nos quais se deveriam realizar referendos ao Tratado Constitucional, sob a chantagem dos riscos de vitórias do “não”, ponderam (e consumam) o adiamento da consulta popular. A Inglaterra já seguiu esse caminho.

A Europa está numa encruzilhada. A quem interessa o fim da UE? A quem interessa a guerra? Eis duas perguntas cada vez mais sérias e menos esotéricas!

"Maluco"

Ainda nesta série acerca da administração pública. Encontrei o velho amigo B. numa pastelaria do bairro com a sua jovem mulher e o rebento. Sempre o tenho visto, ao longo dos anos, nas mais diversas situações do quotidiano. Cruzamos-nos nos mesmos espaços. É um alto quadro da administração fiscal.

Desta vez deu para falar. Mostrou-me uma carta, que agora trás sempre carteira, onde lhe comunicam as razões pelas quais não pode aceder ao lugar para o qual se classificou. A razão essencial traduz-se numa palavra simples: “maluco”. No caso pareceu-me o paradigma do bem estar: “o maluco feliz”. O mais interessante é que fiquei a saber quem, segundo ele, manda, de facto, na administração fiscal. Surpreendente.

segunda-feira, junho 6

Labirinto


Foto de uma por rolo

A administração pública é um labirinto [Houaiss: “lugar com muitas passagens entrecruzadas que dificultam encontrar a saída.”]. A experiência diz-me que das duas uma: ou sobrevivem os piores, aqueles que desistem de encontrar a saída, ou os “espertos”, aqueles que sempre fazem crer que encontraram a saída certa. Cavaco Silva nos tempos áureos do seu consulado governativo definiu a “solução final” para a administração de uma forma pouco subtil: reforma-se deixando morrer os sobreviventes.

O labirinto tem regras próprias que raramente são as regras que a comunidade/estado atribui à administração pública. O labirinto exige uma administração dentro da administração. Quem administra o labirinto está, por norma, condicionado, pela clientela dos sobreviventes que se alimentam do próprio labirinto.

Mal daquele que afronte o poder dos sobreviventes que se funda nos chamados “direitos adquiridos”. Daqui resulta que o trabalho da administração sendo, quantas vezes, desprezível para a comunidade é uma preciosidade para os sobreviventes. Que são muitos e, a mor das vezes, estimáveis.

Nunca mais esquecerei o caso do Sr. L. que não aceitou nunca ser promovido. O Sr. L. , além de não se sentir merecedor de reconhecimento, não queria correr o risco que lhe fosse, em qualquer circunstância, pedido para deixar de entrar e sair às horas certas pois tinha que tratar dos pais.

A excepção e a regra

A propósito das medidas e notícias acerca da administração pública nos últimos dias. A revelação mais notável: na administração pública a excepção é a regra. Quem obedece à regra torna-se numa verdadeira excepção. É o caso de alguns (poucos) entre os quais me incluo. Pode tornar-se perigoso jogar o jogo como se a regra fosse a regra e não a excepção.