domingo, fevereiro 1

2 de fevereeiro de 1954 - neve a sul


Foi através da leitura de “O aprendiz de Feiticeiro” de Carlos de Oliveira que, na minha memória reluziu a data em que, acontecimento raro, caiu neve em Lisboa e também – imaginem - em Faro.

No extremo sul de Portugal, à beira mar, terra de temperatura moderada, o surgimento da neve foi um acontecimento inusitado que perdurou na memória de todos.

Eis o excerto daquele belo livro do grande poeta português - Carlos de Oliveira– nascido no Brasil – a propósito daquele acontecimento memorável:

“Contudo, relato a seguir o que me aconteceu na noite de 1 para 2 de Fevereiro de 1954, quando venci por fim a proibição interior e alinhei sem emendas ou hesitações os sessenta e três versos da primeira fala de “O Inquilino”….”

(…)“E entramos por fim no que mais interessa: acabado o impulso das primeiras palavras, afastei a cadeira distraidamente e levantei-me, tentando delinear o seguimento da peça, cuja ideia me surgira só no acto de escrever. Nenhum plano anterior, nenhum esboço. Levantei-me e andei para a janela, metido na pele do inquilino, perguntando a mim mesmo (ou a ele) se não haveria outras perguntas a fazer antes duma decisão que podia ferir o equilíbrio do mundo ou coisa parecida. Foi quando a madrugada explodiu numa féerie mais ou menos nórdica, como se tivesse realmente bastado mexer na cadeira, na ordem pré-estabelecida do quarto, para desencadear o imprevisto: uma tempestade de neve em Lisboa.” (…)
 

A revolta do corpo ...


"Ao fim de dois mil anos de cristianismo, a revolta do corpo. Foram precisos dois mil anos para que de novo surgisse a nudez nas praias. Consequentemente, o excesso. E o corpo reencontrou o seu lugar nos usos. Falta ainda dar-lhe de novo o seu lugar na filosofia e na metafísica. É um dos sentidos da convulsão moderna."

Albert Camus, in Caderno n.º 5 (Setembro 1945/Abril 1948) – Tradução de António Quadros. Edição “Livros do Brasil”. (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

BEETHOVEN - Symphony no. 3 "EROICA" - Leonard Bernstein (1)

Mahler: Symphony No. 1 / Rattle · Berliner Philharmoniker

Sibelius: Symphony No. 1 / Rattle · Berliner Philharmoniker

sexta-feira, janeiro 30

NUNO TEOTÓNIO PEREIRA - 93 ANOS


O Arquitecto Nuno Teotónio Pereira é uma daquelas personalidades raras na qual se juntam um notável curriculum profissional e uma postura de intervenção cívica, persistente e pertinente, assumida desde os tempos da oposição à ditadura. Ele é, na verdade, um dos arquitectos portugueses contemporâneos que foi capaz, como poucos, de integrar, sem cedências à facilidade, as preocupações sociais e a arte de «arquitectar». Há por esse país muitas obras de sua autoria, ou co-autoria, que testemunham esta simbiose. 

Nos tempos de brasa do 25 de Abril foi um dos mais proeminentes dirigentes do MES, posição que saiu reforçada aquando da ruptura do grupo de Jorge Sampaio, ocorrida no 1º Congresso de Dezembro de 1974. O MES, na sua curta existência, só participou, de parte inteira, nas duas primeiras eleições da nossa III República: as eleições para a Assembleia Constituinte, disputadas em 25 de Abril de 1975, e as primeiras eleições para a Assembleia da República disputadas em 25 de Abril de 1976.

As nossas esperanças iniciais eram muitas elevadas. A lista do MES, pelo círculo de Lisboa, às eleições para a Assembleia Constituinte, foi encabeçada pelo Afonso de Barros a que se seguiram o Eduardo Ferro Rodrigues, o Augusto Mateus e o Luís Martins (padre, ainda a exercer…). A lista candidata às primeiras eleições legislativas, realizadas em 25 de Abril de 1976, foi encabeçada pelo Nuno Teotónio Pereira, seguido do subscritor destas linhas. 

Poder-se-ia pensar que o MES havia encontrado o seu líder. Puro engano. Ao contrário dos restantes partidos, sem excepção, a personalidade que encabeçava a lista por Lisboa nunca foi, no caso do MES, o líder do partido pela simples razão de que no MES nunca existiu um líder. O que hoje penso é que, por incrível que pareça, sempre assumimos, do princípio ao fim, o que poderia designar-se como uma obsessão pelo colectivo. 

Estávamos perante as primeiras eleições, verdadeiramente, livres e democráticas, após quase 50 anos de ditadura. Ainda hoje me interrogo como foi possível que tenhamos, no MES, encarado essas eleições, cuja transcendência política era inegável, como meros actos de pedagogia, mais do que actos destinados à disputa do poder. Ainda hoje me questiono acerca das raízes da concepção que permitiram à UDP (com o BE ainda tão longe!) ter obtido, nas eleições para a Assembleia Constituinte, menos votos do que o MES, a nível nacional, e feito eleger um deputado.

Existem muitas evidências dessa atitude de participação «não interesseira» do MES, desde o discurso anti-eleitoralista, que emanava de uma desconfiança, de raiz ideológica, acerca da verdadeira natureza da democracia representativa que, na verdade, aceitávamos como um mal menor, até à ausência de sinais de personalização nas campanhas eleitorais nas quais nunca foram utilizadas sequer fotografias dos cabeças de lista pelo círculo de Lisboa. A participação nas campanhas, embora tenha utilizado todos os meios, à época disponíveis, nunca cedeu um milímetro à personalização.

Após o fracasso da candidatura do MES à constituinte, ainda mais me parece estranho, a tão grande distância, a abdicação de personalizar na figura do Nuno Teotónio Pereira a campanha para as eleições destinadas a eleger a 1ª Assembleia da República. A sua participação como cabeça de lista pode ser interpretada, não me lembrando dos detalhes do processo decisório, como uma tentativa de credibilizar o MES jogando na refrega eleitoral a figura do seu mais proeminente dirigente. 

Mas, ao contrário do que aconselharia a mais elementar lógica eleitoral, a campanha não valorizou a figura do Nuno Teotónio Pereira o que acabou por constituir o haraquiri político eleitoral do MES. Lembro-me de ter ocupado o segundo lugar nessa lista e do desconforto que senti quando, chegada a hora de votar, numa secção de Benfica, no meio da multidão, comovido até às lágrimas, sozinho, pressenti a derrota inevitável. E essa derrota foi ainda mais pesada do que aquela que averbámos nas eleições para a Assembleia Constituinte.

Se há uma personalidade que não merecia sair derrotada da aventura política do MES é o Nuno Teotónio Pereira a quem, como escrevi, em 2004 , devemos todos, os jovens quadros dos anos 60 e 70, uma imensidade de ensinamentos, gestos de desprendida solidariedade e humanidade que jamais poderemos retribuir com a mesma intensidade e sentido de dádiva. 

Que viva!

Pelo 93º aniversário de Nuno Teotónio Pereira.

quinta-feira, janeiro 29

O que ilumina o mundo ...

“O que ilumina o mundo e o torna suportável é o habitual sentimento que temos dos nossos laços com ele – mais particularmente do que nos liga aos seres. As relações com os seres ajudam-nos sempre a continuar porque pressupõem desenvolvimentos, um futuro – e também porque vivemos como se a nossa única tarefa fosse precisamente o manter relações com os seres.

Mas nos dias em que nos tornamos conscientes de que não é a nossa única tarefa, sobretudo nos dias em que compreendemos que só a nossa vontade conserva esses seres ligados a nós – deixem de escrever ou de falar, isolem-se e verão como eles fundem em vosso redor – verão como a maioria está na realidade de costas voltadas (não por malícia, mas por indiferença) e que o resto conserva sempre a possibilidade de se interessar por outra coisa, quando imaginamos desta forma tudo quanto entra de contingente, de jogo das circunstâncias no que costuma chamar-se um amor ou uma amizade, então o mundo regressa à sua noite e nós a esse grande frio de que a ternura humana por um momento nos tinha afastado.”


Albert Camus, in Caderno n.º 4 (Janeiro 1942/Setembro 1945)

Fotografia de Hélder Gonçalves

domingo, janeiro 25

25 de janeiro - Grécia


Tenho observado com frequência a pouca atenção que as pessoas dão às palavras. Explico-me. Um homem simples (com simples não quero dizer parvo, e sim não-eminente) tem uma opinião, critica uma instituição ou crença geral; sabendo que a maioria das pessoas não pensa assim, cala-se, na suposição de que não vale a pena falar, pois o que pudesse dizer não mudaria coisa alguma. Trata-se de um erro grave. Eu ajo de outro modo. Por exemplo, sou contra a pena de morte. Sempre que me aparece uma oportunidade, manifesto-me a respeito, não porque ache que, com isso, o Estado a vá abolir, mas porque estou convencido de que assim contribuo para o triunfo das minhas ideias. Pouco me importa que ninguém concorde comigo. O que eu disse não foi em pura perda. Talvez alguém repita minhas palavras e elas cheguem a ouvidos que as ouçam e as perfilhem. Quem sabe se futuramente algum daqueles que ora discordam de mim não se vai lembrar, numa ocasião propícia, daquilo que eu disse e convencer-se ou pelo menos sentir abalada sua opinião em contrário. - O mesmo vale para diversas outras questões sociais, das que exigem acção. Reconheço que sou tímido e não sei agir. Por isso limito-me a falar. Não acho, porém, que minhas palavras sejam em vão. Outro agirá, mas essas palavras – de mim, o tímido, - terão facilitado 
a acção e limpado o terreno.
KAVAFIS, K. Reflexões sobre Poesia e Ética. SP: Ática, 1998

sábado, janeiro 24

GRÉCIA


As eleições na Grécia do próximo domingo fazem-me lembrar (exagero, está bem de ver) um 25 de abril em janeiro. Um tempo diferente. Um confronto semelhante. Hoje a Grécia não é um país isolado na Europa, integra a UE e, apesar de todas as dúvidas, através de uma decisão politica, adoptou o € como moeda. Um confronto semelhante por ter atingido um ponto de ruptura social -  um povo com índices de pobreza, desemprego e desesperança insuportável. Dirão os cínicos que  todo o sofrimento e desesperança é suportável. Mas aí teremos que regressar ao tempo das trevas, das masmorras e dos julgamentos sumários pela simples aspiração a viver com decência e liberdade. A Grécia, e as suas eleições de 25 de janeiro, são um teste de stress à UE e ao €, no final de contas, à sua capacidade para assumir e praticar, indo além dos cálculos mercantilistas, a solidariedade de um espaço económico, social e... cultural comum. Um teste, afinal, que tem como cenário o país que é o berço da cultura ocidental - tão incensada nos últimos tempos - e onde nasceu a democracia, tendo ousado levar à prática uma velha utopia que se tornou realidade.

quinta-feira, janeiro 22

ORDEM


“Fala-se agora muito de ordem. Porque a ordem é uma coisa boa que bem falta nos fez. […] Evidentemente, a ordem de que se fala muito hoje é a ordem social. Mas a ordem social é somente a da tranquilidade nas ruas? Não é certo. […] Talvez ajude para saber o que é a ordem social a comparação com a conduta individual. Quando dizemos nós que um indivíduo pôs a sua vida em ordem? Quando ele vive de acordo com ela e conformou a sua conduta ao que julga verdadeiro. Um insurreto que, sob a desordem das paixões, morre por uma ideia que fez sua, é na verdade um homem de ordem, porque ordenou toda a sua conduta segundo um princípio que lhe parece evidente. Mas não podemos nunca dizer que tem a vida em ordem um privilegiado que faz regularmente, durante toda a sua vida, três refeições por dia, e baseia a sua fortuna em valores seguros, mas que se fecha em casa quando ouve barulho na rua. Trata-se somente de um homem com medo e poupado. E se a ordem francesa fosse a da prudência e a da secura do coração, estaríamos tentados a ver nela a pior das desordens, já que, por indiferença, se passariam a permitir todas as injustiças. De tudo isto se concluiria que não há ordem sem equilíbrio e sem acordo. Não basta exigir ordem para bem governar, porque bem governar é a única forma de atingir uma ordem que faça sentido. Não é a ordem que dá força à justiça, mas a justiça que dá a certeza da ordem.“

Albert Camus, in "Atuais". 

sábado, janeiro 17

janeiro - dia 17


De súbito os governos dos países europeus - que integram a UE - surgem em cena assumindo todo o protagonismo na luta anti terrorista. Os responsáveis políticos da UE, e as suas instituições, passam a plano secundário. É como se se tivesse assumido uma estranha especialização: aos governos nacionais a politica, à UE a exigência que os governos nacionais cumpram as metas dos tratados. Assiste-se, sem escândalo, ao espectáculo do regresso em força dos nacionalismos em desfavor das conquistas de uma Europa como espaço de partilha de políticas comuns. Basta olhar às imagens das manifestações de Paris! A política acantona-se nas sedes dos governos nacionais, tendo desertado das instâncias da União Europeia. Resistirá a UE sem politica comum nas áreas militar e de defesa?    

quinta-feira, janeiro 15

janeiro, dia 16

                                                       Fotografia de Hélder Gonçalves

Um mundo de violência, dividido pela posse da riqueza, como sempre ao longo da história, pela posse das matérias primas, das rotas, dos territórios; disputas pelo domínio da terra, do mar, do espaço vital, com guerra sempre à vista mesmo quando predomina a paz; cegueira ideológica, idolatria por chefes, desprestígio do sagrado, sedução e culto pelo dinheiro, sempre com novas formas, escalas e artes de cativar a maioria. A tirania espreita na esquina da intolerância. É preciso que se ergam vozes e luzam rostos capazes de, com realismo e coragem, enfrentarem, uma vez mais, o totalitarismo que, sob diversas vestes, se insinua por entre os povos que trabalham e aspiram à paz e à liberdade.  

segunda-feira, janeiro 12

RONALDO - UMA VEZ MAIS


Já escrevi muitas vezes acerca do Ronaldo, futebolista de profissão, como do futebol escrevi também, não tanto como acerca de Camus, ou citando-o amiúde, que também amava o futebol, tal como o sol, a água, a praia, gente do sul, e uma vez mais o celebro, Ronaldo, um homem que agradece num palco do mundo, na sua lingual mãe - o português. Bem haja!  

domingo, janeiro 11

11 de janeiro - 2015


W. Whitman. «Lorsque la liberté s´en va de quelque part, elle n´est pas la première chose à s´en aller. Elle attend que toutes les autres s´en aillent, elle est la toute dernière.»
Albert Camus

“Carnets – III” - Cahier nº VII (Mars 1951/Juillet 1954)
Gallimard

sexta-feira, janeiro 9

DIAS DIFÍCEIS PARA A FRANÇA E PARA O MUNDO

                                                  Fotografia de Hélder Gonçalves

Fim de tarde/noite em Lisboa, cidade pacata de um país chamado Portugal, com uma longa história, que nunca deixou de ser europeu continental e ao mesmo tempo europeu atlântico, pela cultura e pela geografia. Portugal que foi, pelos idos dos séculos XV/XVI, uma potência global, dizem os entendidos - ao contrário de outras narrativas - a primeira de todas criando, mar afora, um império em rede tanto mais surpreendentemente grandioso quanto diminuta a sua dimensão demográfica e económica. Quando nos deixamos acantonar neste espaço diminuto de terra, rodeado do grande mar, perdemos força e influência na politica europeia e global. A União Europeia não pode servir para diminuir cada um dos seus membros. Tem que servir para os engrandecer num projecto comum evoluindo para a integração politica, projecto ousado, original e difícil, salvo se quiser dar-se ao sacrifício de uma inevitável implosão. A diversidade das Nações europeias, com seus povos, no espaço físico europeu, enquanto projecto politico comum, é uma vantagem num mundo que não mais será um conglomerado de autarcias. Os acontecimentos por estes dias em França estimulam, certamente, sentimentos nacionalistas extremos. É certo e sabido não sendo necessário ser especialista em politica internacional para o pressentir. Mas, ao mesmo tempo, é uma janela de oportunidade para que os dirigentes políticos democratas, exercitem, à vista de todos, capacidade para conciliar autoridade e tolerância, aspiração à justiça e defesa da liberdade. O Presidente francês tão impopular aos olhos da opinião pública francesa, tão desprezado pelos seus pares, julgo não me enganar, tem mostrado, neste momento difícil, perante acontecimentos dramáticos, uma dimensão de homem de Estado que é apreciável e deve ser reconhecida. Domingo próximo a França vai sair à rua pela liberdade. Estarei de corpo inteiro em Portugal como se marchasse pelos Campos Elísios. Portugal deveria estar representado nessa manifestação ao mais nível do Estado como parte de uma estratégia da sua afirmação no espaço comum europeu.            

segunda-feira, janeiro 5

CHOREI POR TI EUSÉBIO

Faz hoje um ano que morreu Eusébio. Nesse dia chorei por ele. Um herói e um símbolo para gerações de portugueses. O futebol é um jogo coletivo mas nele avultam alguns jogadores que o tornam mágico. Eusébio era um deles e desde criança me fez sonhar e acreditar que os mais fracos sempre podem vencer os mais fortes. Deixo em sua homenagem um texto que em tempos escrevi neste blogue em homenagem ao futebol. QUE VIVA!

Uma multidão no estádio, em nossa casa, parece-nos sempre pequena. Amigável. Conhecemos muitos rostos. Mesmo as vozes nos são familiares. Os ditos, as recriminações, “seu isto, seu aquilo …”. Uma multidão que incentiva os ídolos de um tempo que é o nosso é como se fosse alguém da nossa família. Os momentos de glória exigem uma multidão que aclame os heróis. Vista de longe a multidão é anónima. Uma massa de gente que grita, aclama, protesta e gesticula. Vista de perto é um mundo de paixões e afectos que se partilham com fervor. As claques podem ser uma degenerescência das multidões que aplaudem por puro prazer apoiando os seus à vitória. O tumulto pode substituir a festa. Mas a essência do futebol é a festa. A partilha do prazer entre pobres, remediados e ricos; homens e mulheres; crianças, jovens e velhos, misturados na turba que ferve na crença na vitória que, tantas vezes, se transforma na melancolia da derrota. A multidão que se manifesta mostra a alma de um povo que aspira a libertar-se das rotinas do trabalho e das agruras da vida. A história das multidões, para o bem e para o mal, é uma parte da própria história das nações, cidades, associações e famílias. O futebol é o sol que ilumina a vida da maioria nas comunidades.