quarta-feira, novembro 20

O Caminho das Figueiras

As figueiras e as suas sombras quentes são um laço que me prende à vida pela memória. Descia o caminho de casa à estrada e passava por elas, umas castelhanas, outras vulgares, de copas grandes e arredondadas, baixas e rasteiras e a todas conhecia de cor.


A minha mãe me ensinou o caminho para lhes chegar. Na época de verão, aí por Julho, os figos eram, quase sempre, suculentos. Arrancava-os com cuidado para uma cesta, primeiro os mais acessíveis, às minhas mãos de menino, depois os das ramadas mais altas, em bicos de pés.


Alguns sempre ficavam inacessíveis. Não me importava com esses. Nunca me importei com o que é inacessível a minhas mãos que não a meus olhos. Leitosos escorriam seiva e, por vezes, ressequidos, abriam fissuras finas por onde se iniciava a retirada da pele. Depois comia-os com prazer.


A apanha, a meio da tarde, era dolorosa. Ia-mos muitas vezes pela força do calor, como lá se diz, e ficava doente. Ou pelo sol que me fazia ferver a cabeça ou pelos figos que me descosiam o intestino. Ainda hoje algumas dessas figueiras estão à beira do mesmo caminho. A mais frondosa resiste defronte do antigo poço, abandonado, mas que noutros tempos alimentava de água o monte.


O prazer da sombra das figueiras, do cheiro ao campo, embebido no ar quente, do sabor dos frutos, colhidos à mão, nunca me deixou por um só momento. Somente, por vezes, descanso dele. É esse prazer físico da memória que me faz amar aqueles que me amam. E resistir às adversidades.


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Inspirado no “Lied da Figueira”, de René Char, poema com uma génese completamente diferente e que reproduzo:

Gelou tanto que os ramos leitosos
Enfadaram a serra e nas mãos se partiram.
A primavera não viu verdejar os graciosos.
A figueira pediu ao dono do lugar
O arbusto de uma nova fé.
Mas o verdelhão, seu profeta,
Na alva quente do seu regresso,
Ao pousar sobre o desastre,
Em vez de fome, morreu de amor.


“Regresso a Montante”
in O Nu Perdido (1964-70)

René Char
“Este Fanático das Nuvens”
Cotovia

[Publicado em 23 de dezembro de 2004, vésperas de Natal, certamente na minha cidade de Faro.]

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