terça-feira, dezembro 14

O Lugar do Meu Avô em Santos

Conheci os meus avós de forma diferente. Os paternos de memórias. Eram mais velhos e eu, filho tardio, cheguei tarde demais para os conhecer de perto. Compenso-me dessa ausência mantendo perto de mim uma fotografia do meu avô Dimas Eduardo Graça (Dimas é o nome de meu pai e de meu irmão mais velho, Eduardo é o meu).

Tirada em Santos, no Brasil, para onde emigrou no tempo em que os portugueses partiam em busca de uma vida melhor, a foto é majestosa pela qualidade, em si mesma, e pela figura que retrata.

Um dia de visita a S.Paulo quis visitar a rua na qual, em Santos, o meu avô Dimas tinha trabalhado numa fábrica de malas, baús, malões, ao que suponho propriedade de seu irmão.

No SESC de S. Paulo falei alto acerca da minha vontade de visitar a rua e, se possível, a fábrica ou os resquícios que dela tivessem sobrevivido. E eis que uma das presentes me diz ter vivido numa vivenda mesmo em frente da fábrica que eu procurava. E lembrar-se, em criança, das pessoas que nela trabalhavam.

No outro dia lá fui. Em plena zona industrial a rua estava tal e qual com o mesmo nome. E o número da porta também não tinha mudado. Era um armazém de fronte do qual pude observar a vivenda que me tinha sido referida.

Por ser domingo não pude entrar mas era aquele o espaço, agora ao serviço da empresa de celulares que a PT explora na região de S. Paulo, onde o meu avô tinha trabalhado boa parte da sua vida.

Regressei com o sentimento de ter cumprido uma das íntimas missão que, desde há muito, me tinha imposto a mim próprio.

Absorto - 1º Aniversário (13 de17)

segunda-feira, dezembro 13

À memória de Fernando Pessoa

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão -
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver -
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar -
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!

António Botto

Poema de Cinza
As Canções de António Botto
Editorial Presença1999

Não deixar rasto

Eis uma notícia, da edição de hoje, do "El País" muito interessante para a realidade portuguesa actual.

El equipo de Aznar borró los archivos informáticos de Presidencia antes de irse
Una empresa especializada fue contratada por 12.000 euros para eliminar todas las copias

Cuenta el ex presidente Leopoldo Calvo-Sotelo que, cuando llegó a La Moncloa para sustituir a Adolfo Suárez, en febrero de 1981, y abrió la caja fuerte que debía contener los secretos de Estado, sólo halló en su interior un papel, en el que estaba anotada la combinación para abrirla.

José Luis Rodríguez Zapatero no se sorprendió menos cuando en abril pasado sustituyó a José María Aznar al frente del Gobierno. Todos los archivos informáticos de Presidencia estaban vacíos. La clave también figuraba en un papel: la factura, por unos 12.000 euros, de la empresa contratada para borrarlos.”

Um Búzio e Uma "Água-Forte"

Nos idos de 1976 visitei Cuba. Che tinha sido assassinado, nove anos antes, em 9 de Outubro de 1967. Faço a referência à efeméride para dar a ideia da profundidade e significado de terem já passado 37 anos desde esse acontecimento que tanto marcou a minha juventude.

Ao ver o filme “A Viagem de Che Guevara”, as personagens, os sonhos e as canções que envolvem o mito de Che, lembrei-me desta memorável viagem. Era uma delegação do MES composta por mim, pelo Vítor Wengorovius e pelo Francisco Farrica.

Julgo que não havia um objectivo concreto a alcançar mas tão só dar testemunho do processo político português. Estávamos em plena campanha das eleições presidenciais, em Portugal, e Otelo era, à época, muito popular em Cuba.

Fizemos as visitas da praxe, pisamos os lugares mais emblemáticos da revolução cubana, visitamos uma fábrica de “puros habanos”, uma plantação de cana, fomos recebidos por alguns dirigentes político intermédios, mas não por Fidel.

Lembro-me de ter ficado impressionado com o olhar triste ou, talvez, melancólico das trabalhadoras da fábrica de charutos. Apesar de tudo a viagem foi há quase trinta anos. A situação de Cuba era menos difícil do que na actualidade. O calor humano dos cubanos, a sua amabilidade e companheirismo eram, e são, incomparáveis. E, em muitos casos, disfarçavam a custo as críticas.

Mas lembro-me de ter sentido, de parte do regime, um alheamento que só consigo explicar pela nossa postura intelectual de não cedência à eventual expectativa de uma atitude reverencial que nunca seríamos capazes de assumir. Não tínhamos nada para pedir. Ninguém ousou oferecer-nos nada. Saímos como entramos.

Da minha parte trouxe de Cuba um búzio e uma “água-forte”, escolhida e comprada por mim, no atelier de Lopez-Nussa (*), aquando de um passeio livre por Havana. O búzio enorme que colhi, em plena praia de Camaguey, mereceu uma detalhada análise das desconfiadas (ou interesseiras?) autoridades alfandegárias à chegada ao aeroporto de Lisboa.

São as mais preciosas recordações que guardo dessa viagem. Mas espero lá voltar como simples turista.

(*) Pelas minhas pesquisas trata-se de uma “água-forte” de um consagrado artista plástico cubano, Leonel Lopez-Nussa Carion, 1916, Havana, da série “Música e Músicos”, intitulada “Músicas 5 A”.

Absorto - 1º Aniversário (12 de 17)


sábado, dezembro 11

De Cabeça Perdida

Tinha acordado comigo próprio não abordar mais a questão da dissolução da AR. Vamos para eleições, ponto final.

Mas a manifestação do governo frente às câmaras de TV, realizada hoje à noite, ultrapassa tudo o que seria possível imaginar.

Fez-me lembrar os tempos do PREC. Os rostos patibulares dos Ministros, o gaguejar pretensamente institucional do PM, o discurso em tom retórico e arruaceiro, a tomada de posição do PSD Madeira, proclamando o pretenso “golpe constitucional” do PR.

A direita está de cabeça perdida. A perspectiva da perda do poder fá-los perder a cabeça. Devem possuir indicações, sondagens e estudos de opinião, que aconselham à dramatização e assumpção do papel de vítimas. As sondagens devem ser mesmo muito más. Ou então é um comportamento próprio da sua natureza, ou seja, uma questão de carácter. Como diz o povo, gente má.

O Primeiro-ministro está a arrastar o país para o caos mesmo com um pé e meio fora do governo, Estive a reparar e não vi o Dr. Bagão Félix perfilado na manifestação de demissão do governo. Estranho!

Cadernos de Camus

Num período que decorreu até Março deste ano José Pacheco Pereira tomou a iniciativa de criar um blog que, durante algum tempo, consistiu num exercício de diversas leituras de Camus, em particular, dos seus “Cadernos”. Esse blog ainda está disponível.

A minha modesta contribuição ficou lá, parcialmente, depositada e, está disponível, na íntegra, no arquivo do absorto.

Por razões, certamente estimáveis, que o próprio JPP saberá, melhor do que ninguém, explicar o projecto cessou.

No contexto dos primórdios de uma batalha eleitoral que, todos já percebemos, vai ser atravessada pela mais baixa política dos anais da República apetece tratar de temas que dela se afastem mas que estão fortemente ligados à defesa dos valores sagrados da justiça e da liberdade.

Por isso me lembrei, ainda a propósito da intervenção do PR, que tinha arquivado a bibliografia de Albert Camus para posterior utilização no contexto daquele projecto.

No meio das trapalhadas e insultos desta pré-campanha eleitoral coloco essa bibliografia disponível no IR AO FUNDO E VOLTAR .



Eleições - 20 de Fevereiro

Desde a data do anúncio formal, pelo PR, da decisão de convocar eleições legislativas até à sua realização, em 20 de Fevereiro de 2005, vão passar 71 dias.

É muito tempo. É tempo demais. A decisão é, politicamente, inquestionável e, conforme apontam todas as sondagens e o senso comum, era desejada pela maioria dos portugueses.

Mas não se poderiam encurtar todos os prazos? Nenhuma sociedade aguenta tanto impasse, hesitação, “complexidade”, sigilo, sem amargar a sua sorte.

Reparem só no caso particular do combate aos incêndios de verão. Na véspera da decisão formal do PR demitiu-se o responsável máximo dos “Bombeiros e Protecção Civil”.

O responsável governamental não falava com ele. É uma técnica antiga para “despedir” e humilhar os dirigentes da administração.

Chegaremos, assim, ao verão de 2005, de novo, impreparados para a inevitável calamidade dos incêndios.

Previsão: a direita, na oposição, acusará o governo socialista de não ter feito nada para fazer face à situação.

Em Julho de 2005 já ninguém se lembrará de nada do que se está a passar neste momento.

sexta-feira, dezembro 10

O Populismo Saiu à Rua Num Dia Assim

A "Ode Triunfal" foi o que me apeteceu, verdadeiramente, publicar a título de comentário à comunicação presidencial. É mais clara. Intemporal. Está sempre actual e não se atrasa. Não é alvo de críticas nas TVs a não ser por especialistas que ninguém sabe quem são e ninguém lê. Excepto outros especialistas igualmente desconhecidos do grande público, ou seja, do povo e que, igualmente, ninguém lê.

Mas a razão comezinha da disputa do poder, ou seja, de uma série de coisas que o poema trata, com meridiana clareza, e que interferem com a nossa vidinha, exige um comentário mais prosaico: resumindo a baralhando vamos para eleições.

Dia 20 de Fevereiro. Porque não 13? Ou mesmo 6? O Carnaval? A camapnha eleitoral não pode coincidir com o Carnaval? Uma boa anedota. O que interessava a toda a gente, aos cidadãos, menos aos partidos da maioria (estão no poder) e ao PC (está "de Jerónimo") era a data mais cedo possível! Tudo demora tanto tempo! Desde 9 de Julho de 2004 a 20 de Fevereiro de 2005 contam-se mais de 7 meses!

A partir deste momento começou a campanha eleitoral. O governo que não-se-sabe-se-é-de-gestão-ou-não, e os partidos que o integram, vão aproveitar, a fundo, as vantagens de disporem do poder e de um Orçamento de Estado aprovado.

O populismo saiu à rua num dia assim...

ODE TRIUNFAL

Este poema de Fernando Pessoa pela voz de Álvaro de Campos é, convenhamos, longo para um blog. Hoje, dia 9 de Dezembro, esteve um dia frio em Lisboa e não me pareceu que a noite tivesse aquecido. Seria desapropriado publicar num blog com esta natureza, na íntegra, este belo e longo poema. Mas após ter ouvido a declaração ao País do PR, e os comentários que sobre ela estão a ser produzidos, publico uns versos e aqui deixo o link para quem esteja interessado em o ler na íntegra. A crise política deu-me para isto...

ODE TRIUNFAL

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

(...)

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes --
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraitre amarelos com uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

(...)

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos -- e eu acho isto belo e amo-o!
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como os cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(...)

Álvaro de Campos, 6-1914

quinta-feira, dezembro 9

IBM/"BM"

No mundo dos negócios a notícia do dia foi a compra da IBM por uma empresa chinesa. Os chineses avançam a todo o vapor para o domínio de áreas chave do conhecimento e do comércio mundial. Nada que não esteja “escrito nas estrelas”.

A notícia mais chocante foi a de saber que muitos alunos das nossas escolas têm como aspiração máxima o “BM”. Traduzindo: o “Balde da Massa”. Aquém e além fronteiras.

Dias com Árvores

Dias com Árvores – um blog a visitar

Sampaio - caudilho

Morais Sarmento, Ministro do Governo da República, disse que o
Presidente decidiu numa "lógica de caudilho", referindo-se à dissolução da AR e consequente convocação de eleições antecipadas.

As palavras não enganam, foram ditas, representam, em toda a sua crueza, pura ignorância ou, o que é mais certo, um inaceitável insulto ao PR.

Afinal era mesmo verdade aquilo que muitos pensavam e alguns disseram, ou seja, que Portugal se haveria de transformar numa grande Madeira.

Caudilho - "1 - político com força militar própria; 2 - ditador". Houaiss





Aldrabices

Não é preciso ser muito inteligente para entender as razões do PR para a dissolução da AR. As trapalhadas da maioria de direita e do seu governo, agora na versão aldrabices eleitoralistas, continuam…

"Ao contrário do que afirmou ontem Paulo Portas
Ministro das Actividades Económicas nega acordo para a construção de blindados na Bombardier

O ministro de Estado e das Actividades Económicas, Álvaro Barreto, negou hoje que tenha sido assinado qualquer contrato para a construção de parte dos novos blindados do Exército nas instalações da Bombardier, ao contrário do que afirmou ontem o ministro da Defesa, Paulo Portas.”

Público

quarta-feira, dezembro 8

A direita para sobreviver é capaz de tudo...

A situação política em Portugal, desde o início da passada semana, pode ser caracterizada como “complexa”. É assim que se costuma apelidar uma situação complicada na política.

O assunto teria merecido um pouco mais de pedagogia a começar nos órgãos de soberania e a prosseguir nos órgãos de comunicação social. Ninguém se deu ao trabalho de dar trabalho a tantos porta vozes e comentadores qualificados que por aí pululam.

O campo ficou aberto para a demagogia e o populismo mais rasteiros. O dia de amanhã (5ª feira), e o dia seguinte, são decisivos.

Uma coisa é certa: para sobreviver no poder a direita é capaz de tudo...mas há sinais de que a debandada já começou.

Ir à rua

A rua é uma instituição urbana. Os meus antepassados próximos, de origem rural, conheciam mal este conceito. O advento da sociedade urbana atribuiu um estatuto especial a “ir ao campo”. Mas, durante séculos, para os rurais o grande dia era o da feira que os levava a “ir à cidade”.

A geração dos “babby-boomers”, de que faço parte, experimentou a fase final desta contradição. Lembro-me da impressão que me causou o filme de Renoir, “Passeio ao Campo”.

Lembro-me dos meus passeios ao monte dos meus avós maternos que, ainda nos anos 70, não tinham energia eléctrica em casa tendo assistido, impotentes, à instalação, mesmo ao pé da porta, de dois postes que suportavam a linha que fornecia a energia a Tavira mas não os alimentava a eles.

Senti o encanto da grande urbe de Lisboa ainda mal tinha resolvido a contradição “cidade/campo”. Nos primeiros dias, após a minha chegada definitiva a Lisboa, caminhei a pé pela Baixa, calcorreei as ruas dos bairros da Estrela, Campo de Ourique e da Lapa. Até que os pés aguentassem. Só. Fiz a carreira do eléctrico 28 dos Prazeres à Graça e da Graça aos Prazeres. Lindas as palavras que identificam estes dois bairros de Lisboa.

Caminhar pelas ruas da cidade de Lisboa era uma alegria. A partir de certo momento tornou-se uma aventura e um risco. Não pelo trânsito nem sequer pela delinquência que, em Lisboa, sempre foi uma brincadeira de crianças se comparada com outras urbes da Europa ou das Américas.

Mas porque em certas esquinas, à noite, nas saídas tardias das tertúlias ou das actividades associativas (subversivas?), surgiam vozes cavas e anónimas que pronunciavam o nosso nome em tom ameaçador. Porque ao caminhar pela rua surgiam interpelações ameaçadoras de desconhecidos que nos acotovelavam. Porque o regresso a casa, à noite, tinha de ser cuidadosamente preparado prevendo a arremetida que nos levaria ao hospital ou à prisão.

Muitas destas caminhadas fi-las acompanhado pelo Eduardo Ferro Rodrigues. Nunca nos deixamos intimidar mas estávamos longe de prever como seria possível que, nos tempos da democracia, pela qual lutamos a vida toda, ressurgirem as mesmas ameaças à liberdade revestidas de novas e mais subtis formas.

Ir à rua, para mim, sempre foi um verdadeiro exercício de liberdade. Como sabemos “ir à rua” pode ser até uma manifestação espontânea, ou organizada, de protesto. Mas há quanto tempo não vamos à rua?

Em tempo: ir às urnas, em democracia, também é um salutar exercício de liberdade!

Absorto - 1º Aniversário (11 de 17)

terça-feira, dezembro 7

SIS

Um blog premiado

Vejam Por um punhado de pixels, de autoria de nemo nox, um blog premiado, em língua portuguesa.

Mário Soares - 80 anos

Pensei não escrever nada acerca dele. Todos escrevem, nestas efemérides, mesmo que as personagens não lhes interessem para coisa nenhuma.

Um dia, só pode ter sido no ano de 1969, fui com o Xico Chaves e a Helena Moura e mais alguém, que já não me lembro quem, falar com o Soares à sede da CEUD. O Xico Chaves, que vive no Brasil e não sei que é feito, é que teve a ideia.

Ficamos à espera numa sala um tempo e apareceu-nos um Soares imponente com aquele ar triunfante mesmo quando está na mó de baixo. A conversa foi curta e inconclusiva pois, pelo menos eu, não estava virado, à época, para a social-democracia ou para o socialismo democrático.

O Soares impressionava mas era demasiado pouco estimulante para o nosso desejo de mudança. Sentia-me melhor na CDE. E assim foi.

No início dos anos 80 tudo mudou. Passei a apoiar todas as iniciativas do Soares e, desde o início, a sua “impensável” primeira candidatura presidencial que havia de sair vencedora.

Na sequência da extinção do MES, com um grupo de ex-militantes deste movimento, no qual se incluía o Ferro Rodrigues, ingressei, em 1986, no PS depois de ter sido candidato independente nas eleições legislativas de 1985 nas quais só faltou ser açoitado pelo povo nas ruas. Deve ter sido o pior resultado de sempre do PS.

A partir de 1985 Mário Soares, para mim, passou a ser fixe. Até hoje. Agora já não entro nestas festas de aniversário, mesmo de inscrição livre, porque me aborrecem a maior parte dos convivas e desconfio das palmadas nas costas.

O que me interessa é o hino à vida e à intervenção cívica de que Mário Soares é um exemplo. Parabéns.

O PR e os ataques da direita

Os ataques violentos, destes dias, ao PR, provindos da direita, são difíceis de entender. As vítimas da decisão do PR estão a falar muitos decibéis acima do que seria aceitável pela opinião pública. Pela simples razão de que a opinião pública desejava esta solução ou, pelo menos, não a considerou desajustada ao desempenho do governo.

O PR fez aquilo que a maioria dos portugueses ansiava que fizesse. Ainda por cima faltam jogar imensos lances. O PR ainda nem sequer tomou a palavra para explicar as razões políticas da sua decisão. Os partidos do governo ainda não decidiram se avançam em coligação ou cada um por si; o PS ainda não apresentou o seu programa de governo embora tenha feito emergir Vitorino.

Uma coisa é certa: o PR tomou uma decisão que vai ao encontro da crescente insatisfação popular. As eleições são uma válvula de escape essencial para evitar males maiores. Trata-se de dar a palavra ao povo, um princípio sagrado da democracia representativa.

As razões da decisão do PR estão bastante explicadas pelos acontecimentos recentes conhecidos por “trapalhadas”. Mas, certamente, o PR terá outras informações que lhe permitiram assumir os riscos políticos da sua decisão.

A maioria daqueles que assumiram funções de gestão na administração pública, a todos os níveis, compreende as razões do PR. A partir de certo momento o que parecia é que só o PR as não compreendia.

A injustiça pode resultar, por uma vez, de um julgamento involuntariamente errado. A liberdade pode ser, por uma vez, ingenuamente posta em causa. Mas as injustiças reiteradas e indiscriminadas e as limitações à liberdade, assumidas como programa de governo (embora não escrito), são sinais perigosos para a democracia que não é uma conquista definitiva para todo o tempo e em qualquer circunstância.

Para salvaguardar a democracia, em última instância, é que existe no nosso sistema político a instituição Presidente da República. Que não é a “Rainha de Inglaterra” ou o “Notário da República”.

Os que hoje são governo e atacam o PR desta forma desbragada já desistiram de ser governo amanhã. Estão a caminhar para um beco sem saída. Porque, além do mais, o PR vai ser o mesmo, durante quase um ano, após as eleições gerais de 6 ou 13 de Fevereiro próximo.

E depois dele outro virá, por eleição directa, que não será, certamente, da simpatia da actual liderança do PSD e PP.

segunda-feira, dezembro 6

O poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis (o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo


(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)


O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O´Neill

(In Abandono Vigiado - 1960)