sexta-feira, fevereiro 25

Entardecer


Há dias em que o entardecer é um momento sublime em que a cor do ar vibra ao nosso olhar. Há dias em que o entardecer nos trás notícias dolorosas que têm o sabor amargo das coisas inevitáveis.

Fotografia de Helder Gonçalves

"Dêem-me a terra, mesmo poluída."

“Lá em baixo, onde as avenidas desaguam no rio (afluentes de alcatrão em pedra), os esgotos, o lixo pela água dentro. Mais adiante cemitérios de comboios, a ferrugem cor de chocolate espesso e uma tímida erva selvagem nos reiles carcomidos. O hidrovião, de súbito, poisado a meio da estrada marginal, com gaivotas sobre as asas desmanteladas. Outros dois suspensos nas breves rampas de lançamento, enquanto a aragem fluvial lhes desenha manchas de óxido na fuselagem, esquecidos à beira do cais cheio de lodo, limos, detritos encrostados na alvenaria, e apesar disso a água dum azul claríssimo. Por enquanto. Depois o extenso gradeamento do parque militar. Mais detritos. A manhã desolada. Centenas de viaturas podres, jipes, tanques, milhares de pneus abandonados, pirâmides negras de borracha, e (ao voltarmos) milhões de estrelas no firmamento. Dêem-me a terra, mesmo poluída. Este carbono pulmonar, onde contudo adeja ainda a nossa ração de oxigénio. Toda a tarde o calor turvo no horizonte, que nos lembrava o halo silencioso de um incêndio. Árvores em fogo. Três nuvens rectilíneas de céu a céu, três traços de fumo deixados pelos jactos de uma patrulha. Urbanização nas alturas. Como é que a tua beleza, Gelnaa, há-de sobreviver sem uma máscara antigás?”

“O Aprendiz de Feiticeiro” – Carlos de Oliveira
Fragmentos (Gás) – pág. 17, 18 e 19 (4 de 6)

Cesário Verde


Cesário Verde (Aniversário)

Trabalho acerca do poeta no "Público".

O Livro de Cesário Verde (Primeira Edição)


O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL
(Fragmento)

I

AVE-MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!


(Versão integral no ir ao fundo e voltar)

quinta-feira, fevereiro 24

A Dignidade Não Tem Preço

A direita já começou a entender alguma coisa do que aconteceu no passado dia 20. Mas o discurso da derrota é arrogante e contristado. Vai demorar muito tempo até que retire todas as consequências das políticas que realizou. E que “realize” os erros e as injustiças que, de forma consciente, cometeu.

Não falo de números, mas de pessoas. Um país não é um “grande número” resultante do somatório de cifras, taxas, pessoas, grupos, empresas, corporações, comentadores, amigos, conhecidos e quejandos.

É uma comunidade integrada, com passado e tradição, cidadãos e famílias, iniciativa e trabalho, alegrias e dores, humores e aflições, necessidades e desejos.

A dignidade não tem preço e, em democracia, a comunidade não perdoa a indignidade de quem governa.

José Afonso - 3

Há uns anos atrás, num bar, talvez em Madrid, reconheci Luís Pastor que pensava nunca mais vir a reencontrar. Dirigi-me a ele, dei-me a conhecer, e descrevi-lhe brevemente as circunstâncias do nosso primeiro encontro. Logo me reconheceu e reviveu as memórias desse momento descrevendo-o com detalhe e emoção.

Tinha sido um concerto em Serpa, em cuja organização devo ter participado, em que Luís Pastor acompanhou José Afonso.

Foi uma daquelas intervenções loucas dos tempos da revolução. José Afonso evocou-as, com orgulho, agora mesmo, no memorável concerto do Coliseu, de 1983, que a “RTP Memória” acaba de passar.

Que voz extraordinária também a de Luís Pastor felizmente, pelo que vejo, em plena actividade.

quarta-feira, fevereiro 23

"Contra a clorofila"



“A aridez desdobrada em cimento, pavimentos estéreis, fumegantes, como as avenidas novas que sobem da beira-rio para as estradas do norte e o aeroporto, cerros nus, talhados sobre as faixas de rodagem, a monstruosa ossatura das fábricas à mostra, quantidades colossais de gases num labirinto canalizado para o alto, e lá em cima a chama, a nuvem tóxica, que de quando em quando o vento espalha pela cidade. Vindo da lua, o cosmonauta diz que poluir o ar e as águas da terra é um crime inominável. Diz, depois de atravessar no seu escafandro o céu dum astro sem ar nem água: dêem-me a terra, é tudo o que desejo. E entretanto os empreiteiros, os lunificadores e os seus operários trabalham nesta praça, aplicadamente, contra a clorofila.”

“O Aprendiz de Feiticeiro” – Carlos de Oliveira
Fragmentos (Gás) – pág. 17, 18 e 19 (3 de 6)

Foto de Helder Gonçalves

José Afonso - 2

Grândola Vila Morena - ouça aqui.

Ainda Durão e Itália

No “Diário de Lisboa”
Os novos desenvolvimentos da fúria dos italianos.

José Afonso

O Almocreve das Petas ajudou-me a não esquecer o aniversário da morte de José Afonso. Tantas vezes o encontrei, muitas vezes, com a sua mulher – Zélia - em plena pujança de homem e artista ou já no tempo da sua doença.

José Afonso é um dos pilares mais vigorosos na formação cívica, estética e política da geração que fez a revolução de Abril.

Um homem vertical. Um grande poeta. Um músico de talento. Um extraordinário interprete.

Honra à sua memória.

Cantigas Do Maio
(Eu Fui Ver A Minha Amada)

Eu fui ver a minha amada
lá prós lados dum jardim
dei-lhe uma rosa encarnada
para se lembrar de mim

Eu fui ver o meu benzinho
lá prós lados dum paçal
dei-lhe o meu lenço de linho
que é do mais fino bragal

Minha mãe quando eu morrera
ai chore por quem muito amargou
para então dizer ao mundo
ai Deus mo deu ai Deus mo levou

Eu fui ver uma donzela
numa barquinha a dormir
dei-lhe uma colcha de seda
para nela se cobrir

Eu fui ver uma solteira
numa salinha a fiar
dei-lhe uma rosa vermelha
para de mim se encantar

Minha mãe quando eu morrer ...

Eu fui ver a minha amada
lä nos campos eu fui ver
dei-lhe uma rosa encarnada
para de mim se prender

Verdes prados verdes campos
onde está minha paixão
as andorinhas não param
umas voltam outras não

Minha mãe quando eu morrer...

PSD muda rápido

É assinalável a rapidez do processo de sucessão de Santana Lopes. Marques Mendes abre o caminho para Cavaco Silva avançar. É o mais importante episódio dos próximos capítulos da travessia do deserto do PSD.

Frank O´Hara



Poem (Lana Turner has collapsed!)

Lana Turner has collapsed!
I was trotting along and suddenly
it started raining and snowing
and you said it was hailing
but hailing hits you on the head
hard so it was really snowing and
raining and I was in such a hurry
to meet you but the traffic
was acting exactly like the sky
and suddenly I see a headline
LANA TURNER HAS COLLAPSED!
there is no snow in Hollywood
there is no rain in California
I have been to lots of parties
and acted perfectly disgraceful
but I never actually collapsed
oh Lana Turner we love you get up

1962


Poema

Lana Turner desmaiou!
Eu deambulava e de repente
começou a chover e a nevar
e tu disseste que caía granizo
mas o granizo acerta na cabeça
com força por isso estava a nevar
e a chover e eu tinha tanta pressa
ia ao teu encontro mas o tráfego
comportava-se exactamente como o céu
e subitamente vi um cabeçalho
LANA TURNER DESMAIOU!
não há neve em Hollywood
não há chuva na Califórnia
eu estive numa data de festas
e portei-me de forma desgraçada
mas nunca tive um desmaio
oh Lana Turner amamos-te levanta-te

Frank O'Hara

In “Vinte e Cinco Poemas à Hora do Almoço”
Assiro & Alvim
Tradução de José Alberto Oliveira

Fotografia de Helder Gonçalves (Nova York - Outubro de 2004)

terça-feira, fevereiro 22

"Matadores Furtivos"

“Não, não sou vegetalista, quer dizer, não sou nenhum exacerbado idólatra do bucolismo. Venho de famílias arenosas (pântanos, pinheiros, dunas), gente por assim dizer alimentada a cerne, avós carpinteiros de soalhos, pranchas, móveis trabalhados, grandes plantadores e lavrantes de madeira. Mas isso é outra coisa. Aqui, na pequena praça circular, a uma hora indecisa (falaremos um dia da forma como Lisboa anoitece no verão), os operários com os seus motores eléctricos ou de combustão levam a cabo uma tarefa de matadores furtivos, que ninguém sentiria se as máquinas fossem um pouco mais silenciosas.

James Joyce, “Ulisses”:
- Tão desmatados quanto Portugal estaremos em breve – fala Jonh Wyse – ou como a Heligolândia com a sua árvore única, se alguma coisa não se fizer para reflorestar a terra.”

“O Aprendiz de Feiticeiro” – Carlos de Oliveira
Fragmentos (Gás) – pág. 17, 18 e 19 (2 de 6)

Notícias de Fora

Decisão de Durão irrita Itália no “Diário de Lisboa”

Sondagens - Balanço Final

Pedro Magalhães no blog margens de erro faz um balanço acerca da fiabilidade das sondagens realizadas para as eleições legislativas de 20 de Fevereiro. Muito interessante.

Veja aqui o Rescaldo da "mega-fraude"

segunda-feira, fevereiro 21

Uma Questão de Decência


Uma imagem nostálgica dedicada a todos aqueles que ainda olham os resultados das eleições de ontem com escândalo: "a esquerda não tinha morrido?" ou "a esquerda nunca mudará"? Ou, pior, com gritinhos vindos das bandas do PP: "Estamos entregues aos bichos!".

Definitivamente muita gente de direita não entendeu nada do que se passou nestes três últimos anos: faltou decência, estúpidos! Bebam qualquer coisa para acalmar e esperem pelos erros do PS. Depois poderão dizer: "Os méritos próprios não contaram em nada para a nossa vitória, mas tão só os deméritos do adversário".

Mas, desta vez, parece-me que vão ter de esperar sentados uns largos anos!

(Inspirado nos comentários publicados no Abrupto a partir de uma reflexão séria de Pacheco Pereira).

Foto de Helder Gonçalves - Buenos Aires - 2003

A Ler

“Uma Trepa Histórica”, no almocreve das petas

Gás

“O arboricídio floresce (se me permitem a expressão). Algures, em misteriosos gabinetes. Surge nas pranchetas, nos estiradores, escorre da ponta gelada dos compassos, organiza-se a partir das réguas, dos esquadros. O papel deserto, a alma lunar dos urbanistas. Transmitida a sentença de morte às serras mecânicas, aos camiões de lixo que servem para transportar os troncos e os ramos decepados, a operação decorre ao anoitecer com a rapidez dum comando em acção. De modo que descemos, Gelnaa e eu, do nosso sexto andar para assistir ao derrube das árvores da praça.”

“O Aprendiz de Feiticeiro” – Carlos de Oliveira
Fragmentos (Gás) – pág. 17, 18 e 19 (1 de 6)

Vitórias e Derrotas

A deambulação pela noite eleitoral, com o meu filho, foi registada pela TVI. Uns segundos em directo na TV têm uma força inimaginável. Os sinais de ter sido visto emanam como um relâmpago na noite escura. Coisas de um novo “espaço público”.

Afinal brandir uma bandeira na rua é uma tradição que vem de longe. Seja festivo, seja de revolta é um acto próprio de uma cidadania activa.

Mais difícil foi brandir a bandeira do PS, partido vencido em 2002 (Ferro Rodrigues), doloroso em 1991 (Jorge Sampaio), dramático em 1985 (Almeida Santos) e romântico em 1987 (Vítor Constâncio).

Convém não esquecer: desde o 25 de Abril as vitórias, para o PS, são intervalos entre derrotas. As derrotas, para o PSD, são intervalos entre vitórias.

A Celebração da Vitória

Estive a celebrar a vitória do PS na rua, do lado de fora, o melhor sítio para sentir o pulsar do sentimento popular. As eleições ganharam racionalidade. A festa espontânea perdeu viço. A encenação da festa recobre o espaço onde antes ardiam as emoções. Tudo é diferente. Não é pelo facto de ter sido o PS a ganhar. É porque já ninguém acredita nos milagres da política para resolver os reais problemas do país. E muito menos para resolver os problemas individuais de cada um de nós. Valeu desta vez a saída à rua para iniciar o meu filho no exercício dos festejos políticos. Ele saberá, mais tarde, saborear o real valor desta saída à rua.

domingo, fevereiro 20

Vitória do PS - breves notas

O PS via obter hoje a sua maior votação de sempre. Entre os 46 e os 50% . Uma maioria absoluta para governar sozinho.

A esquerda, no seu conjunto, obterá cerca de 2/3 dos votos. O PSD terá um dos seus piores resultados de sempre. O PP sairá pela porta pequena e o BE passa a existir politicamente.

O PR provou que tinha razão ao decidir-se pela dissolução do parlamento.

Finalmente a direita deverá ter aprendido que o povo não dorme. Desde o discurso da “tanga”, ao da “pesada herança”, do desprezo pela opinião pública, ao favorecimento de interesses obscuros, do silenciamento das vozes críticas às campanhas persecutórias, visando a destruição pessoal e política de dirigentes da oposição e da administração pública.

Nada esqueceu, nem esquecerá. Associo a minha voz à voz da maioria do povo português. Esta é, no essencial, uma vitória do povo. Sinto-me feliz pela derrota de José Manuel Barroso e Santana Lopes, de Paulo Portas e Bagão Félix.

Uma nota pessoal: hoje, 20 de Fevereiro, seria o último dia do meu mandato como Presidente do INATEL, função da qual fui exonerado, por pura perseguição política, por Bagão Félix. Ora, neste dia exacto o povo português, de forma democrática, mas implacável e clarividente, exonerou Bagão Félix. Espero que para sempre.

Veja a evolução da contagem dos votos aqui.