sexta-feira, fevereiro 25

"Dêem-me a terra, mesmo poluída."

“Lá em baixo, onde as avenidas desaguam no rio (afluentes de alcatrão em pedra), os esgotos, o lixo pela água dentro. Mais adiante cemitérios de comboios, a ferrugem cor de chocolate espesso e uma tímida erva selvagem nos reiles carcomidos. O hidrovião, de súbito, poisado a meio da estrada marginal, com gaivotas sobre as asas desmanteladas. Outros dois suspensos nas breves rampas de lançamento, enquanto a aragem fluvial lhes desenha manchas de óxido na fuselagem, esquecidos à beira do cais cheio de lodo, limos, detritos encrostados na alvenaria, e apesar disso a água dum azul claríssimo. Por enquanto. Depois o extenso gradeamento do parque militar. Mais detritos. A manhã desolada. Centenas de viaturas podres, jipes, tanques, milhares de pneus abandonados, pirâmides negras de borracha, e (ao voltarmos) milhões de estrelas no firmamento. Dêem-me a terra, mesmo poluída. Este carbono pulmonar, onde contudo adeja ainda a nossa ração de oxigénio. Toda a tarde o calor turvo no horizonte, que nos lembrava o halo silencioso de um incêndio. Árvores em fogo. Três nuvens rectilíneas de céu a céu, três traços de fumo deixados pelos jactos de uma patrulha. Urbanização nas alturas. Como é que a tua beleza, Gelnaa, há-de sobreviver sem uma máscara antigás?”

“O Aprendiz de Feiticeiro” – Carlos de Oliveira
Fragmentos (Gás) – pág. 17, 18 e 19 (4 de 6)

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