Scarlett Johansson
"Um crucifixo, mesmo numa escola pública, não significa que o Estado passe a ser dependente de qualquer confissão religiosa ou que o ensino público tenha carácter religioso". António Bagão Félix, PÚBLICO, 9-1-2-2005
A cruzada, nos jornais, do Dr. Bagão, em prol dos crucifixos nas escolas, fez-me aflorar à memória algumas coisas terríveis que não é oportuno lembrar agora. Mas apeteceu-me, como católico, fazer um exercício de memória.
Não me lembro se, na minha escola primária, na minha sala de aula, havia crucifixo. Não me lembro se era obrigatório rezar no início das aulas. Foi, é verdade, há muitos anos. Mas lembro-me das professoras e professores, a começar pela D. Pessanha (1ª e 2º classes), que era muito tradicionalista e autoritária.
Nunca levei reguadas dela mas era assustador assistir ao suplício dos que as apanhavam. Seria diante do crucifixo? Só uma vez fui humilhado quando me mandou para casa, antes do fim das aulas, por ter sujado os dedos de tinta, resultado da incontinência daquelas canetas de aparo que se alimentavam mergulhando-as nos tinteiros incrustados nas carteiras.
Lembro-me de uma professora jovem, cujo nome esqueci, que ensinava de maneira diferente, pois era uma época de introdução de novos métodos; lembro-me de entender a aritmética e de sentir prazer com ela (a aritmética); vejo o Prof. Bica, exímio tocador de acordeão, nos corredores; sinto a D. Maria José que, na 4ª classe, fez com que tudo me parecesse fácil, incluindo os exames de admissão que fiz dois, um ao liceu, outro à escola técnica.
Eu adorava a D. Maria José, suponho que ela me retribuía a adoração, não soube mais dela, pois ao longo dos anos sempre me queria ver, acho que faleceu, mas trago o seu rosto e a sua voz sempre comigo.
Lembro-me do Padre Henrique, das actividades religiosas fora da escola e das explicações já no liceu, do seu sorriso bondoso, palavra culta, fluente e humanista desenhando a figura de um grande pedagogo solidário. Mas do crucifixo do Dr. Bagão nicles.
Não sei se o Dr. Bagão corre por conta própria, ou se tem mandato da hierarquia da igreja, mas tanto se dá, pois cada um é livre de expressar livremente a sua opinião e não sofrer penitência pelo exercício dessa liberdade. A prática é a prática! As palavras são as palavras. Somos coerentes, ou seja, as palavras e as práticas são coincidentes! Não é Dr. Bagão?
Aqui vai uma réplica, de minha lavra, à frase do “Público”, citada em epígrafe, extraída do meritíssimo texto “pró crucifixo” do Dr. Bagão:
“Um Dr. Bagão Félix colocado, mesmo num ministério das finanças, não significa que o Estado passe a ser dependente de qualquer confissão religiosa ou que a banca e as seguradoras abandonem a busca do lucro em favor de objectivos filantrópicos”.
Como já estão fartos de saber ando em leituras e releituras de Camus. Talvez muitos não saibam qual o tema da tese de Camus para obter o seu diploma de estudos superiores: “Métaphysique chrétienne et néoplatonisme, entre Plotin e Saint Augustin”.
Camus era, pois, um intelectual que estudara o catolicismo e que tinha pelos católicos mais do que simpatia: “le sentiment d´une partie liée. C´est un fait qu´ils s´intéressent aux mêmes choses que moi”. Mas acrescentava, marcando as distâncias: “À leur idée, la solution est evidente, elle ne l´est pas pour moi.”
Feitas estas ressalvas, para que não me julguem, sem provas, incréu, ou me lancem à fogueira, ou excomunguem, por citar gente de pouca fé, deixo o meu contributo, via Albert Camus, para o meritório debate do crucifixo.
E porque não dedicá-las ao Dr. Bagão, hoje, em que, se não erro, passam exactamente três anos sobre o dia em que deu posse à Dra. Catalina (e eu estava lá), para que todos possamos reflectir acerca dos temas da verdade e da mentira, da vergonha e do arrependimento, da sinceridade e do cinismo, da justiça e da liberdade.
“É o cristianismo que explica o bolchevismo. Conservemos o equilíbrio para não nos tornarmos assassinos.”
“Verdade deste século: À força de vivermos grandes experiências, tornamo-nos mentirosos.”
“Há quem se remanseie numa mentira como os que se refugiam na religião.”
“Cristãos felizes: Guardaram a graça para si próprios e deixaram-nos a caridade.”
(Albert Camus, Sublinhados dos “Carnets”, por mim próprio)
"Quando se meditou muito sobre o homem, por ofício ou vocação, acontece-nos sentirmos nostalgia dos primatas. Esses ao menos não têm segundas intenções." - p. 15
“Eu moro no bairro judeu, ou o que assim se chamava até ao momento em que os nossos irmãos hitlerianos limparam tudo. Que barrela! Setenta e cinco mil judeus deportados e assassinados, é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem carácter, é preciso ter método.” - p. 24
(Albert Camus, Sublinhados de “A Queda”, por Ana Alves).
Citações in “Cadernos de Camus”
"Um crucifixo, mesmo numa escola pública, não significa que o Estado passe a ser dependente de qualquer confissão religiosa ou que o ensino público tenha carácter religioso". António Bagão Félix, PÚBLICO, 9-1-2-2005
A cruzada, nos jornais, do Dr. Bagão, em prol dos crucifixos nas escolas, fez-me aflorar à memória algumas coisas terríveis que não é oportuno lembrar agora. Mas apeteceu-me, como católico, fazer um exercício de memória.
Não me lembro se, na minha escola primária, na minha sala de aula, havia crucifixo. Não me lembro se era obrigatório rezar no início das aulas. Foi, é verdade, há muitos anos. Mas lembro-me das professoras e professores, a começar pela D. Pessanha (1ª e 2º classes), que era muito tradicionalista e autoritária.
Nunca levei reguadas dela mas era assustador assistir ao suplício dos que as apanhavam. Seria diante do crucifixo? Só uma vez fui humilhado quando me mandou para casa, antes do fim das aulas, por ter sujado os dedos de tinta, resultado da incontinência daquelas canetas de aparo que se alimentavam mergulhando-as nos tinteiros incrustados nas carteiras.
Lembro-me de uma professora jovem, cujo nome esqueci, que ensinava de maneira diferente, pois era uma época de introdução de novos métodos; lembro-me de entender a aritmética e de sentir prazer com ela (a aritmética); vejo o Prof. Bica, exímio tocador de acordeão, nos corredores; sinto a D. Maria José que, na 4ª classe, fez com que tudo me parecesse fácil, incluindo os exames de admissão que fiz dois, um ao liceu, outro à escola técnica.
Eu adorava a D. Maria José, suponho que ela me retribuía a adoração, não soube mais dela, pois ao longo dos anos sempre me queria ver, acho que faleceu, mas trago o seu rosto e a sua voz sempre comigo.
Lembro-me do Padre Henrique, das actividades religiosas fora da escola e das explicações já no liceu, do seu sorriso bondoso, palavra culta, fluente e humanista desenhando a figura de um grande pedagogo solidário. Mas do crucifixo do Dr. Bagão nicles.
Não sei se o Dr. Bagão corre por conta própria, ou se tem mandato da hierarquia da igreja, mas tanto se dá, pois cada um é livre de expressar livremente a sua opinião e não sofrer penitência pelo exercício dessa liberdade. A prática é a prática! As palavras são as palavras. Somos coerentes, ou seja, as palavras e as práticas são coincidentes! Não é Dr. Bagão?
Aqui vai uma réplica, de minha lavra, à frase do “Público”, citada em epígrafe, extraída do meritíssimo texto “pró crucifixo” do Dr. Bagão:
“Um Dr. Bagão Félix colocado, mesmo num ministério das finanças, não significa que o Estado passe a ser dependente de qualquer confissão religiosa ou que a banca e as seguradoras abandonem a busca do lucro em favor de objectivos filantrópicos”.
Como já estão fartos de saber ando em leituras e releituras de Camus. Talvez muitos não saibam qual o tema da tese de Camus para obter o seu diploma de estudos superiores: “Métaphysique chrétienne et néoplatonisme, entre Plotin e Saint Augustin”.
Camus era, pois, um intelectual que estudara o catolicismo e que tinha pelos católicos mais do que simpatia: “le sentiment d´une partie liée. C´est un fait qu´ils s´intéressent aux mêmes choses que moi”. Mas acrescentava, marcando as distâncias: “À leur idée, la solution est evidente, elle ne l´est pas pour moi.”
Feitas estas ressalvas, para que não me julguem, sem provas, incréu, ou me lancem à fogueira, ou excomunguem, por citar gente de pouca fé, deixo o meu contributo, via Albert Camus, para o meritório debate do crucifixo.
E porque não dedicá-las ao Dr. Bagão, hoje, em que, se não erro, passam exactamente três anos sobre o dia em que deu posse à Dra. Catalina (e eu estava lá), para que todos possamos reflectir acerca dos temas da verdade e da mentira, da vergonha e do arrependimento, da sinceridade e do cinismo, da justiça e da liberdade.
“É o cristianismo que explica o bolchevismo. Conservemos o equilíbrio para não nos tornarmos assassinos.”
“Verdade deste século: À força de vivermos grandes experiências, tornamo-nos mentirosos.”
“Há quem se remanseie numa mentira como os que se refugiam na religião.”
“Cristãos felizes: Guardaram a graça para si próprios e deixaram-nos a caridade.”
(Albert Camus, Sublinhados dos “Carnets”, por mim próprio)
"Quando se meditou muito sobre o homem, por ofício ou vocação, acontece-nos sentirmos nostalgia dos primatas. Esses ao menos não têm segundas intenções." - p. 15
“Eu moro no bairro judeu, ou o que assim se chamava até ao momento em que os nossos irmãos hitlerianos limparam tudo. Que barrela! Setenta e cinco mil judeus deportados e assassinados, é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem carácter, é preciso ter método.” - p. 24
(Albert Camus, Sublinhados de “A Queda”, por Ana Alves).
Citações in “Cadernos de Camus”