Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,
Editado por Eduardo Graça
Ardem-me os olhos. De cada vez que roubo tempo ao sono, ardem-me os olhos. Lava-os com água fria, e ardem-me os olhos. Será o tempo roubado ao sono? Pois quando encontro tema que me entusiasme logo me esquecem os ardores. Podem-me arder os olhos mas, por vezes, não os sinto arder. Ou quase não os sinto. Não sei o que acontece. Mas o corpo quando se cansa é mais por aborrecimento do que pelas duras penas que lhe inflijo. Sinto-o. É o melhor elogio que lhe posso fazer. Ele responde arquejante de prazer.
11/9/2008
[Uma série de posts acerca das eleições legislativas de 5 de junho de 2011, mesmo quando não parece.]
Regressemos à infância feliz (dos dias sem tempo perdido) Oiçamos o ruído imperceptível (das vozes do nosso sangue) Adivinhemos a força do vento (os segredos nele guardados) Cuidemos da memória pura (dos amantes da liberdade)
Eu próprio e o Eduardo Ferro Rodrigues, hoje, num encontro de celebração do 37º aniversário do 25 de Abril e do 25º aniversário da nossa adesão ao Partido Socialista em memória dos nossos companheiros Afonso de Barros, Agostinho Roseta e Vítor Wengorovius. Na hora do regresso do Eduardo Ferro Rodrigues às lides políticas – a mais nobre das actividades - reproduzo um texto, publicado em 11 de Abril de 2007 que lhe foi dedicado. Perdoar sim, esquecer nunca!
Na nossa sociedade, porventura em todas as sociedades, pairam no ar bandos de abutres tristes. O que mais os excita é o sangue que vislumbram no chão da vida com suas miras telescópicas. Os abutres crentes em Deus, acreditando na vida para além da morte, estão em vantagem. Os que acreditam acima de tudo na vida humana, eivada de suas vicissitudes terrenas, preocupam-se com as pedras. O título de um poema que publiquei dias atrás – “Fidelidade à Terra” – contém todo um programa que organiza a filosofia de vida daqueles que, como eu, acreditam num mundo sem Deus mas que não abdica do Sagrado.
O que mais impressiona na nossa vida pública é a capacidade de persuasão dos “media”, oráculos da verdade indesmentível sobreposta à realidade dos factos e, ainda mais, ver desfilar as legiões silenciosas dos crentes na representação da verdade falsificada. Como se a vida pública fosse uma cenografia pela qual desfila um imenso elenco de actores – primeiras figuras e figurantes – dos quais se espera que representem os papéis que os poderes mediáticos lhes impõem e destinam.
Todo o enredo foi escrito algures por alguém que aparece a público, com o rosto encoberto, sob anonimato, travestido de outrem, podendo mesmo ser assumido amigo companheiro e camarada, vertendo, gota a gota, no ar a insídia na qual se respira a trama que elimina a confiança e torna inânime a autoridade até à sua destruição final. Os abutres tristes de ontem correm sérios riscos de morrer às mãos dos abutres tristes de hoje.
Só há uma profilaxia radical para a perfídia na vida pública que todos os clássicos descrevem, com apurada argúcia e fino detalhe, – Nicolau Maquiavel – é afastarmo-nos dela sem desprezo pela coragem dos homens públicos que, afrontando os horrores da voracidade dos abutres tristes, tentam mudar a vida dos povos e das nações e que, por norma, são devorados pelas suas próprias obras e ambição. Mas, ao menos, que sejam capazes de dar aos cidadãos de boa vontade exemplos de sublime humildade ou de sábia abdicação.
“…porquê a Espanha? Confesso que sinto uma certa vergonha de fazer tal pergunta em seu lugar. Porquê Guernica, Gabriel Marcel? Porquê este ponto de encontro onde, pela primeira vez, face a um mundo ainda adormecido no seu conforto e na sua moral miserável, Hitler, Mussolini e Franco demonstraram a umas crianças o que era a técnica totalitária? Sim, porquê esse encontro que nos dizia respeito também a nós? Era a primeira vez que os homens da minha idade viam a injustiça triunfar na História. O sangue da inocência corria então no meio de um imenso palavreado farisaico que, de facto, ainda hoje continua. Porquê a Espanha? Porque poucos são os que não têm que lavar esse sangue das mãos. Sejam quais forem as razões do anticomunismo, e eu conheço algumas boas razões, nunca nós o poderemos aceitar se ele vai ao ponto de esquecer essa injustiça, que se perpetua com a cumplicidade dos nossos governos. Já declarei o mais alto possível a ideia que tenho dos campos de concentração russos. Mas não é isso que me fará esquecer Dachau, Buchenwald e a inominável agonia de milhões de homens, nem a hedionda repressão que dizimou a República Espanhola. Sim, apesar da comiseração dos nossos grandes políticos, tudo isso terá de ser denunciado em conjunto. E não perdoarei esta peste horrível ao Ocidente, só porque ela lavra no Leste em mais ampla extensão. Escreveu você que, para quem estiver bem informado, não é da Espanha que neste momento chegam as notícias mais capazes de desesperar os que prezam a dignidade humana. Está mal informado, Gabriel Marcel. Ainda ontem cinco opositores políticos foram, em Espanha, condenados à morte. Você, porém, cultivando o esquecimento, já se preparava para estar mal informado. Esquece-se que as primeiras armas da guerra totalitária foram ensopadas no sangue espanhol. Esquece-se de que, em 1936, um general rebelde sublevou, em nome de Cristo, um exército de Mouros, que lançou contra o governo legal da República Espanhola, fez triunfar uma causa injusta, depois de inexplicáveis massacres, e deu início a uma repressão atroz que durou dez anos e ainda não acabou. De facto, é verdade. Porquê a Espanha? Porque você e muitos outros perderam a memória.”