Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,
Editado por Eduardo Graça
domingo, julho 17
A Europa - 17 de julho
Domingo. 17 de julho. No extremo ocidental do continente europeu o verão irrompeu e o calor abrasa. Por estas terras discute-se, de forma mansa, a relação com a europa politica. Dizem alguns que o governo socialista, apoiado pela esquerda, se ameaça a si próprio desafiando o dogma austeritário que o centro, sob hegemonia alemã,tem imposto. O que se discute - pasme-se! - não é o regime democrático pois nem a direita - sob todas as suas formas - põe a questão dos partidos de esquerda que apoiam o governo socialista proclamarem as vantagens de um qualquer regime politico alternativo. As lideranças dos partidos de esquerda discutem, pelo menos é o que parece, as margens nas quais possa ser compatível a aceitação das regras dos tratados europeus com politicas que não sucumbam às exigências da voracidade do capital financeiro. Os estrategos europeus terão compreendido as vantagens da paz social que resulta do pacto politico estabelecido pela esquerda portuguesa? Ou preferem a instabilidade à maneira espanhola? Ou à maneira francesa? Ou inglesa? Ou turca? Os estrategas europeus, que se dedicam a pensar o futuro, estão paralisados pelo medo, prisioneiros do presente? Os promotores da guerra longe das suas fronteiras - pois a guerra é um negócio - acabaram por ver-se confrontados com ela dentro de casa. Deixem ao menos viver em paz os que não buscaram, de forma voraz, beneficiar da guerra.
segunda-feira, julho 11
Europeu. Ponto final.
O euro da bola acabou com um resultado surpresa para quase todos. Portugal ganhou o europeu de futebol como resultado de um investimento estratégico que vem sendo feito desde há muitos anos. É um processo de especialização com muitos ingredientes que contribui para a projeção externa do país. Quem não gosta de futebol tem dificuldades em entender o fenómeno nas suas diversas facetas. Há muita literatura acerca do tema. Não sei se os recursos financeiros aplicados no futebol têm todos origem legitima. Desconfio que não. Não sei se a competição se rege pelos princípios da transparência. Tenho dúvidas. Mas no setor financeiro, por exemplo, quais têm sido os princípios adotados e os resultados? Os países e os povos precisam de vitórias e de heróis. Precisam de sonhar que, como disse Ronaldo, é grátis. Toda a vida, desde criança, tenho vivido a paixão do futebol. Faz parte da minha vida, do meu imaginário, encanta-me pela beleza do jogo, enquanto jogo, e dos jogadores enquanto protagonistas da incerteza do resultado de cada lance. Cada coisa em seu lugar, sabendo que existe o futebol profissional e o popular, mas sei que é das atividades socialmente mais relevantes para combater as misérias deste mundo.
sexta-feira, julho 8
Portugal - julho 2016
Hoje por hoje, como coletivo, Portugal tem poucas hipóteses de ganhar o europeu de futebol (mas alcançou a final), tem poucas hipóteses de escapar às sansões da UE, por incumprimento do deficit (mas obteve uma "saída limpa"), tem poucas hipóteses de acompanhar o ritmo e dimensão da carreira de Durão Barroso, ex-presidente da Comissão europeia, (mas através do voto permitiu que chegasse a 1º ministro), tem poucas hipóteses de apreender o significado do ex-ministro da educação - Crato - depor como testemunha arrolada por privados, suponho que em favor dos seus interesse, em área na qual foi máximo responsável público (mas encolhe os ombros), tem poucas hipóteses de escapar à desesperança no projeto da UE, que alastra todos os dias, (mesmo sem o teste do referendo)... tem poucas hipóteses mas, como coletivo, Portugal tem que resistir a todas as adversidades sem ceder aos populismos e aos cantos de sereia dos inimigos da Europa unida, livre e democrática.
(Fotografia de Hélder Gonçalves)
(Fotografia de Hélder Gonçalves)
segunda-feira, julho 4
Europa - a paz?
Trava-se desde há muito uma batalha na Europa mas, desde o referendo no RU, ameaça estalar a guerra. Não, para já, a guerra tal como por duas vezes no século XX destruiu a Europa que, por duas, se reergueu. Da primeira guerra, a de 14-18 (como é conhecida), na qual Portugal participou com botas no terreno, resultou um armistício desastroso que criou as condições para que viesse a eclodir a segunda. As penas infligidas pelos vencedores ao vencido (no fundo, sempre a Alemanha)foram tão desproporcionadas que geraram um sentimento de profundo sentimento de vingança. Nada aprenderam aqueles que hoje, perante o resultado do referendo no RU, extremam os campos. A politica exige, se quisermos viver em democracia, buscar o máximo de acordo possível adaptado a cada circunstância e, no caso do RU, trata-se de uma democracia com longa história que sobreviveu a todas as tiranias e cuja ação foi decisiva, no século XX, para as derrotar no continente europeu. Nada mudou, de essencial, na Europa a não ser a UE ter permitido o mais longo período de paz geral que reina desde 1945. A guerra pelo poder no seio da UE não deixará de fora o RU mesmo que ele tenha ameaçado colocar-se de fora dela. Mas o continente europeu onde (quase) sempre dominou a Alemanha (sob diversos formatos nacionais conforme as épocas)desequilibrou-se acelerando a erupção de dois partidos: o dos burocratas que se foi consolidando no processo de construção da UE que querem "mais Europa" menosprezando o cansaço dos povos face à decadência, ou fracasso, do "estado de bem estar", e o "partido germanófilo", que sempre emerge em épocas de crise, que defende uma "europa a várias velocidades" ou mesmo uma europa expurgada dos "vícios" caros dos países periféricos do sul. Toda uma crise na qual, como sempre, todos os campos, se apresentam com muitas nuances e sem definição instantânea explicita de propósitos de conquista. Mas os demónios do passado de guerra estão vivos, ameaçando um longo reinado de paz.
domingo, julho 3
Portugal 2016
Não sou capaz de captar o racional da campanha em curso, sob liderança alemã, para penalizar Portugal no contexto da UE. Tem vindo a assistir-se a uma torrente de declarações, de interpretações, assim como de reações, que puxam Portugal ( e Espanha)para o centro da crise europeia em simultâneo com o resultado do referendo no RU e os sinais evidentes de agravamento da crise do sistema financeiro de países como e Alemanha e Itália. Não creio que se trate de um ataque destinado a apear o governo de Portugal pela natureza da maioria que o apoia. Seria demasiado estúpido, assim como usar uma bomba atómica para resolver uma desavença familiar. Serão, certamente, outros os fundamentos para as ameaças de sansões que se forem aplicadas, seja qual for o grau, será uma estreia absoluta. Mas hoje o ministro das finanças alemão abriu um pouco mais o jogo ao afirmar que a UE deverá decidir ao nível intergovernamental, ou seja, não cumprindo os tratados quanto a decisões que exijam unanimidade. Fica mais claro que a Alemanha e seus mais fieis aliados (hoje, que amanhã não se sabe!) quer ficar com as mãos livres para governar sozinha a UE. As ameaças a Portugal serão porventura (conjeturas de quem não conhece nada dos movimentos da diplomacia a não ser os que são públicos) resposta, ou medida preventiva, contra os efeitos do reposicionamento de Portugal (e outros países) no sistema de alianças intraeuropeu e extraeuropeu. Portugal, como sempre, sem abdicar da sua pertença europeia, mantém intata a vocação atlântica e, sem mimetismos históricos absurdos, tem que se fazer à vida, buscando diversificar as suas dependências, sabendo que é nessa arte de buscar "novos mundos" que sempre residiu o segredo da sua independência.
terça-feira, junho 28
Uma nova época
Escrevo após o referendo no RU e as eleições legislativas em Espanha dois acontecimentos políticos relevantes para a Europa. Não esquecer, em primeiro lugar, que estes acontecimentos são próprios da democracia. Uma enorme vantagem para a vida dos povos nem sempre suficientemente prezada pelos lideres de opinião e mesmo por certos políticos populistas. As decisões resultantes do sufrágio, nos seus diversos planos e enquadramentos, são para levar a sério e cumprir. Por vezes não é fácil para os perdedores aceitar os resultados de eleições livres. Outras vezes é difícil evitar que os vencedores abusem do poder momentâneo de que se acham empossados. O Reino Unido não vai deixar de beneficiar da sua influência politica, económica e financeira, nem das vantagens do seu posicionamento estratégico como potência marítima, em contraponto à Alemanha, a potência continental mais importante da Europa. É ao confronto das duas mais importantes potências europeias a que estamos a assistir. A Espanha é outra realidade complementar daquela tendencialmente aliada da potência continental, ao contrário de Portugal, aliado tradicional da potência marítima. Sublinhe-se ainda que quer o RU quer a Espanha são federações de Estados/Nação com mais ou menos poder económico e expressão politica. A partir deste final de semana muita coisa foi posta em questão nos equilíbrios europeus, todos o dizem, mas a Europa poderá escolher um caminho de um novo equilíbrio de forças sem guerra. É esse o caminho que a diplomacia tem que ser capaz de fazer sem ceder nem aos USA, nem à Rússia, nem à China que espreitam, estimulando de forma, mais ou menos discreta, a divisão da Europa.
terça-feira, junho 21
Referendo
A matéria é da maior atualidade e faz correr rios de tinta em todo o mundo ocidental. Tenho poucas palavras para expressar a minha opinião acerca do referendo no Reino Unido que coloca em questão a sua pertença à UE. Sabemos das especificidades de cada membro da UE, sua história, vocação estratégica e interesses económicos. O que está em causa, neste momento da decisão, é a luta entre o nacionalismo, com suas diversas facetas, desde as radicais às moderadas, em que se exacerbam os extremos, e o europeísmo, mais ou menos ousado mas, no essencial, aberto à coexistência de nações e ideologias diversas. Voto na pertença do RU à UE, não como um mal menor, mas como uma condição de equilíbrio entre as potências europeias e na sua relação com os restantes nações. Pluralismo e democracia. Pela paz.
sexta-feira, junho 10
JORGE DE SENA - Discurso no 10 de junho de 1977
Discurso proferido na cidade da Guarda, durante as comemorações do “Dia de Camões e das Comunidades Portuguesas”, no dia 10 de junho de 1977 — o primeiro depois da “Revolução dos Cravos”.
É para mim uma honra insigne o ter sido oficialmente convidado pela comissão organizadora das comemorações de Camões em 1975, e do dedicar-se do Dia de Camões à recordação das comunidades portuguesas ou de origem portuguesa dispersas pelo mundo, para aqui falar na minha dupla qualidade de estudioso de Camões, e de residente no estrangeiro, que eu sou. Com efeito, em 1978, cumprem-se trinta anos sobre a primeira vez que, de público me ocupei de Camões, iniciando o que, sem vaidade me permito dizê-lo, tem sido uma contínua campanha para dar a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril de 1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência.
Esse meu Camões foi longamente o riso dos eruditos e dos doutos, de qualquer cor ou feitio; foi a indignação do nacionalismo fascista, dentro e fora das universidades, dentro e fora de Portugal; foi a aflição inquieta do catolicismo estreito e tradicional, dentro e fora de Portugal; e foi a desconfiança suspeitosa de muita gente de esquerda, a quem eu oferecia um Camões que deveria ser o deles, quando eles preferiam atacar ou desculpar o Camões dos outros. Foi e ainda é, e será.
Porque, sendo Camões o maior escritor da nossa língua que é uma das seis grandes línguas do mundo e um dos maiores poetas que esse mundo alguma vez produziu (ainda que esse mundo, na sua maioria, mesmo no Ocidente, o não saiba), ele é uma pedra de toque para portugueses, e porque tentar vê-lo como ele foi e não como as pessoas quiserem ou querem que ele seja, é um escândalo. São essa pedra de toque e esse escândalo o que, neste momento solene, a três anos de distância do 4o. centenário da morte do maior português de todos os tempos, vos trago aqui, certo e seguro de que ele mesmo assim o desejaria. E, antes de mais, peço que, nas minhas palavras anteriores ou nas minhas palavras seguintes, ninguém veja ataques ou referências pessoais que não há; tenhamos todos, tenham todos a humildade de reconhecer que, quando se fala de Camões e de Portugal, não podemos pensar em mais ninguém.
Quanto a ser um residente no estrangeiro, vai para dezoito anos que o sou, o que, curiosamente, é mais ou menos o tempo que o próprio Camões viveu fora de Portugal, desde que dele partiu para as Índias [em 1553, até que regressou,]* em 1570, tão pobre como partira, mas com Os Lusíadas no bolso ou na bagagem, para publicá-los. Eu nem estou a regressar, nem tenho Lusíadas nenhuns. Mas não sou exactamente um emigrante no estrangeiro, ainda que neste viva, e com os emigrantes me possa identificar – aqueles emigrantes que vi e tenho visto de perto, primeiro no Brasil e depois nos Estados Unidos, e também pelo mais largo mundo que tenho percorrido, e que, com a sua laboriosidade, a sua dignidade, a sua humanidade convivente, são em toda a parte, míseros e mesquinhos, ou ascendidos e triunfantes, muitas vezes, os embaixadores que Portugal não envia, ou os representantes da cultura que Portugal não exporta.
Por dezassete anos, recordemos, Camões foi apenas um deles, quando ninguém sabia ou podia ainda saber o génio que ele era. Reatando: eu não sou exactamente um emigrante no estrangeiro, porque, quando saí de Portugal, tinha vinte anos de escritor publicado, e desde então a maior parte da minha obra, ou grande parte dela, foi escrita para Portugal ou em Portugal publicada. Seja o que seja, continuo a ser o que era, quando me exilei muito a tempo naqueles idos negros e tristes de 1959: um escritor português que vive no estrangeiro e que mantém um permanente contacto com Portugal, até por obrigação profissional: catedrático de Literatura Portuguesa, que é um dos meus títulos e deveres, não tenho outro remédio senão estar a par do que se publica. Por outro lado, a minha fidelidade a Portugal – e fidelidade é uma das palavras-chave da minha pessoa e da minha obra, como liberdade é outra – nunca me permitiu livrar-me de partilhar (acrescentadas da dor da distância) as dores e as alegrias, os desalentos e as esperanças de Portugal.
Permitam-me ainda um esclarecimento. Na melhor das intenções, vária imprensa anunciou ou referiu que eu falaria aqui como representante dos luso-americanos. Se alguém pensou que eu tal faria, mais que num plano meramente simbólico de partilhar com eles o viver nos Estados Unidos, enganou-se redondamente. Primeiro que tudo, eu não sou um luso-americano: esta palavra significa não o português que vive na América, mas ou o que adquiriu a cidadania americana, ou o que descende de portugueses e já nasceu americano: luso-americanas são duas filhas minhas, por naturalização, e um neto meu que o é nato, como brasileiro por naturalização eu sou, e dois filhos meus o são natos, enquanto minha mulher e outros cinco filhos mantiveram a nacionalidade portuguesa. E, em segundo lugar, que é o primeiro de todos, eu não recebi dos luso-americanos nenhum mandato eleitoral para falar em nome deles, embora esteja certo de que mo teriam dado, se a eles o tivesse pedido, por saberem que os respeito e estimo, sem distinção de credo ou cor (porque há luso-americanos de cor, idos de Cabo Verde para lá, por exemplo). Democrata como sou, eu não falo em nome de ninguém, sem ter recebido um expresso mandato para tal. Eu fui convidado por Lisboa e de Lisboa, o que é uma honra, mas Lisboa não tem o direito de nomear representantes de nada ou de ninguém.
Esse vício centralista da nossa tradição administrativa – um dos vícios que Camões denunciou e castigou nos seus Lusíadas – deve ser eliminado e banido dos costumes portugueses, sem perda da autoridade central que deve manter unido um dos povos mais anárquicos do mundo e menos realistas quando de política se trata. Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista, quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a experiência da liberdade. Isto não sucedeu só agora, e não é senão repetição de outros momentos da nossa história sempre repartida entre o anseio de uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião.
Também dos limites da ordem social e dos deveres do homem para consigo mesmo e a sociedade de que faz parte foi Camões um mestre. Assim, aqui, no âmbito de celebrações que são camoneanas e do Portugal disperso pelo mundo desde que o país existe e desde que, no estrangeiro, comunidades portuguesas ou de lusa origem se formaram ou mantiveram, eu não represento luso-americanos, e não falo em nome deles ou de ninguém no largo mundo. Aceito falar, como eu mesmo, da importância e do significado de Camões hoje, e da necessidade de ter presente ao espírito esta ideia tão simples: um país não é só a terra com que se identifica e a gente que vive nela e nasce nela, porque um país é isso mais a irradiação secular da humanidade que exportou. E poucos países do mundo, ao longo dos tempos, terão exportado, proporcionalmente, tanta gente como este.
Sejamos francos e brutais. Há neste momento, milhões de portugueses dispersos pelo mundo em mais de um continente, e não só na Europa de que são mão-de-obra. O país pensa neles, e deseja recordar-se deles. Mas o país, pura e simplesmente, na situação económica que herdou e em que se encontra e toda a gente sabe desastrosa, não pode prescindir do dinheiro deles, ou do dinheiro que eles costumam enviar para a santa terrinha, ao contrário do que faziam e fazem portugueses do território nacional, que mandavam o seu dinheiro para o anonimato dos bancos da Suíça.
Deste modo, celebrar as Comunidades Portuguesas no dia do santo nacional que celebrou a expansão imperial do país é, ao mesmo tempo, um belo ideal e um cálculo muito prático. Há quem diga e quem pense que celebrações como esta – de Camões ou das comunidades – são uma compensação para a perda ou derrocada do Império oferecida ao sentimento popular, e que isso das comunidades é mesmo ainda pior: uma ideia do fascismo. Antes de mais, neste país há que pôr um basta não só ao fascismo ele mesmo, mas à mania de atribuir tudo ao fascismo, até as ideias. Porque, por esse caminho, ficamos todos sem ideias de que precisamos muito, e os fascistas ou os saudosistas deles acabam convencidos de que tinham ideias, quando ter ideias e ser fascista é uma absoluta impossibilidade intelectual e moral.
O celebrar-se no presente e no passado em sua gente, o homenagear essa gente e recordá-la aonde quer que viva ou tenha vivido é um imperativo imarcescível da dignidade humana, num dos aspectos que a representa: o pertencer-se directa ou indirectamente a um povo, uma história, uma cultura, que como no caso de Portugal, foi, é e será capaz de diversificar-se em outras. Nenhum internacionalismo que se preze de ter os pés na realidade e na matéria de que somos feitos, pode negar ou ignorar essas realidades tremendas que são uma língua ou muitas, uma raça ou várias, uma cultura por mais adaptável ou capaz de absorção que ela seja, que se identificam com um nome secular – Portugal no nosso caso, aqui e agora.
Pensarão alguns, acreditando no que se fez do pobre Camões durante séculos, que celebrá-lo, ou meditá-lo e lê-lo, é prestar homenagem a um reaccionário horrível, um cantor de imperialismos nefandos, a um espírito preso à estreiteza mais tradicionalista da religião católica. Camões não tem culpa de ter vivido quando a Inquisição e a censura se instituíam todas poderosas: se o condenamos por isso, condenamo-nos nós todos a que, escrevendo ou não-escrevendo, e ainda vivos ou já mortos, resistimos durante décadas a uma censura opressiva, e a uma repressão implacável e insidiosa, escrevendo nas entrelinhas como ele escreveu.
Isto é, condenamos a vera ideia de “Resistência” que, modernamente, fomos dos primeiros povos da Europa a tristemente conhecer e corajosamente praticar. E sejam quais forem as nossas ideias e as nossas situações políticas, nenhum de vós que me escutais ou não, pode viver sem uma ideia que, genericamente, é inerente à própria condição humana: o resistir a tudo o que pretende diminuir-nos ou confinar-nos. Camões não tem também culpa de ter sido transformado em símbolo dos orgulhos nacionais, em diversos momentos da nossa história em que esse orgulho se viu deprimido e abatido. Claro que esse aproveitamento não teria sido possível se ele não tivesse escrito Os Lusíadas. Mas o restituir a quem o podia ler e o podia sentir mais fundamente um pouco de confiança em horas difíceis, é um acto de caridade, essa virtude que não é só cristã porque é, desde antes do cristianismo, a própria essência da civilização: a solidariedade humana quando a dor nos fere. E o ter sido usado, manipulado e treslido como Camões o foi, ou denegrido como também foi desde a publicação do seu poema, é um dos preços que a grandeza paga neste mundo.
Camões e a sua obra têm pago esse preço como todos os outros. Deixem-me todavia recordar-vos que o grande aproveitacionismo de Camões para oportunismos de politicagem moderna não foi iniciado pela reacção. Esta, na verdade, e desde sempre, mesmo quando brandindo Camões, sentia que as mãos lhe ardiam. Aqueles oportunismos foram iniciados com o liberalismo romântico e com o positivismo republicano. E se o Estado Novo tentou apoderar-se de Camões, devemos reconhecer que ele era o herdeiro do nacionalismo político e burguês, inventado e desenvolvido por aquele liberalismo e aquele positivismo naquelas confusões ideológicas que os caracterizavam e de que Camões não tem culpa: tê-la-iam por exemplo dois homens que merecem o nosso respeito: Almeida Garrett e Teófilo Braga. E quanto à reacção mais recente em face de Camões, eu lembro apenas dois pequenos exemplos em que a censura o proibiu, se não estou em erro: o caso do jornal de Vila do Conde, em que um tio de José Régio usava publicar os clássicos, citando-os convenientemente, e o da revista Vértice, de Coimbra, que fazia o mesmo.
E isto para não falarmos de crimes literários e socio-morais de mais largo alcance, de que Camões era vítima nas escolas, parecendo até que nós éramos as vítimas dele. Porque, para além de encher-se a boca com a Fé e o Império, que nem uma nem outro eram para Camões o que eram para o Dr. Salazar, o poeta não servia para mais nada senão para exercícios de gramática estúpida: o que, tudo junto, chega para gerações lhe terem ganho alguma raiva e perdido o gosto de o ler. E há mais e pior: quando, no liceu, líamos Os Lusíadas, éramos proibidos de ler (e não estudávamos) as passagens consideradas mais chocantes pela pudicícia hipócrita desta nossa sociedade de sujeitos felizmente desavergonhados que fingem lamentavelmente possuir a virtude que não têm, e vivem a perseguir ou reprimir os pecados alheios.
Claro que nós todos íamos logo ler as passagens “proibidas” e lendo-as assim, com olhos libidinosos, perdíamos a grandeza delas: a majestade do sexo e do amor, a magnitude da liberdade e da tolerância, a inocência magnífica do prazer físico e da paixão erótica, que, acima de tudo, Camões cantava e celebrava nessas passagens com uma abertura de espírito e uma audácia espantosas. Será possível que os frades o tenham feito alterar algumas coisas antes de publicar Os Lusíadas. Mas, em face de algumas daquelas que lá ficaram, temos de reconhecer que, mais do que aquilo, só um poema francamente pornográfico, incompatível com a dignidade e o decoro da grande epopeia que Camões desejou escrever e escreveu.
Tem-se dito que o grande protagonista da epopeia é o povo português, e na verdade o povo aparece, segundo as tradições clássicas, representado apenas pelos seus heróis, aqueles que Camões seleccionou para o efeito, à excepção dos marinheiros anónimos que acompanhavam Vasco da Gama ou os seus guerreiros anónimos sem os quais não haveria a magnificente descrição da batalha de Aljubarrota ou análogos momentos. Aqueles marinheiros, como o próprio Vasco, são deificados, ou transfigurados epicamente na Ilha dos Amores, em condições sem dúvida moralmente impróprias de quem deixara família em Portugal, mas altamente consentâneas, se me permitem a rudeza, com a promiscuidade sexual notória do povo português, ao mesmo tempo que de acordo com as convenções épicas e mitológicas pelas quais os heróis se dignificavam no conhecimento (que aqui uso no sentido intelectualmente neo-platónico e no sentido obscenamente público) das entidades divinas. Já se disse que as personagens mais vivas e activas de Os Lusíadas são os deuses pagãos, e não as criaturas históricas, mais pálidas e incaracterísticas do que elas.
Até certo ponto, isto é verdade. E é-o por algumas razões camonianamente importantes. Antes de mais, na filosofia que Camões assume e torna extremamente pessoal, os deuses pagãos possuem, como atributos do Deus supremo, invisível e silencioso, e como seus intermediários agentes, uma realidade autêntica que a criação artística faria necessariamente mais palpável e concreta. E é assim que nós vemos tão nitidamente Vénus, a Afrodite originária e primeva, um dos deuses anteriores a tudo, e também a deusa do amor que este sim, é todo poderoso – como a não veríamos? Ela é a amante, a esposa, a mãe, tudo o que o princípio feminino significa dentro e fora da nossa humanidade, naquelas complexidades psico-sexuais a que Camões se compraz em aludir, servindo-se de alusões mitológicas que parecem meros ornamentos ao longo da epopeia inteira. E como não veríamos Baco ou Diónisos, receoso de ser castrado da sua lendária glória de conquistador da Índia? Se, como descendentes de Luso, descendemos dele, e ele é o nosso pai receoso do triunfo e da liberdade dos filhos? Como não veríamos Júpiter, se ele é de certa maneira a providência divina, sempre disposta a sucumbir, mesmo incestuosamente, às atracções do amor? Estes deuses, na dialéctica camoniana, sem a qual Camões se não entende, são ao mesmo tempo as emanações do princípio divino que desce à terra, e são a nossa humanidade ascendida e divinizada.
E é neste mesmo sentido que as referências a Cristo devem ser entendidas nos contextos camoneanos: ele é, supremamente, para Camões, o princípio divino que, como um fogo de vida, desce a encarnar-se humanamente, mas é também o homem, o herói humano que, pelo seu sacrifício, ascende ou regressa ao divino. E é este heroísmo do apostolado e do sacrifício o que, em toda a sua epopeia, Camões propõe continuamente pela referência ou pela narrativa. Até Inês de Castro, a grande matriarca do poema, ascende à glória épica pelo seu sacrifício de amor. Porque para o amor, para todas as formas de amor, Camões arranja sempre uma desculpa, um louvor, ou a suprema divindade, porque esse amor é, para ele, a todos os níveis, a realidade última, e a realidade sempre presente. Sem amor, não há heróis, nem há homens dignos desse nome. E amor, mesmo numa epopeia que transborda de feitos bélicos e de acções guerreiras, não existe sem uma infinita e total tolerância, um respeito pelos outros povos, as outras raças, as outras culturas, as outras religiões, ao ponto de, como já tenho chamado a atenção, o conceito de santidade ou a palavra santo se aplicar a todos, sem distinção alguma, cristãos, muçulmanos, brâmanes, etc., e até – não o esqueçamos – a uma ninfa que se deixa possuir, por bem requestada, na Ilha dos Amores.
Este Camões de amor e tolerância permeia Os Lusíadas. Mas já se disse que, além e acima de tudo e todos, a principal personagem da epopeia é Camões ele-mesmo, não só como o autor, não só como o narrador, não só como o crítico severo e implacável de toda a corrupção e de toda a maldade, como o denunciador angustiado de uma decadência moral e cívica que ele via e sentia à sua volta, e o qual constantemente interrompe a narrativa para invectivar com o maior desassombro (lembremo-nos de que as ordens daquele D. Sebastião a quem o poema é dedicado, dirigidas aos seus imperiais governadores, chamando-os à virtude e à dignidade, não tinham de tom diverso senão a diferença que vai de uma carta oficial a uma poesia de génio). E há nisso de Camões ser central uma enorme e profunda verdade que é o Camões-homem e o Camões-poeta. Não só ele se colocou, nos seus cálculos arquitectónicos do poema, nessa posição, e assim se colocando, se apresenta como a culminação da aventura portuguesa que ele conta, como o herói que o é por ser quem transforma Portugal numa obra de arte, acima das contingências históricas e da mesquinhês humanas.
O Camões que na epopeia espreita ou se mostra a cada momento, roubando mesmo alguma realidade estética a tudo e todos, nós conhecêmo-lo e entendêmo-lo de outro volante do políptico que é a sua obra: o grande poeta lírico que é também um grande pensador, e que, na obra lírica como na épica, se apresenta como resumo e epítome da humanidade mesma, e não só do povo português. Ele é o homem em si, aquele ser que se busca continuamente e ao amor que o projecta para dentro e para fora de si mesmo, e é, como Luís de Camões, o predestinado para ser, ao mesmo tempo, o poeta-herói supremo que realiza, isto é, torna real para a eternidade da poesia, a história de Portugal, e a embarca nos navios de Vasco da Gama para unir o Ocidente ao Oriente. Ao mesmo tempo, este poeta-herói-épico, e o poeta-homem, exemplo de ser-se português, em exílios e trabalhos, em sofrer incompreensões e injustiças , e – ao contrário do que sucede ou sucedeu a alguns – regressar com as mãos vazias, apenas rico de desilusões, de amarguras e do génio que havia posto numa das mais prodigiosas construções jamais criadas, desde que o mundo é mundo. E essa construção ele trazia, reunindo o Portugal disperso, para o que ele deixara a vida, como disse, pelo mundo em pedaços repartida.
Ninguém como Camões nos representa a todos, repito, e em particular os emigrantes, um dos quais ele foi por muitos anos, ou os exilados, outro dos quais ele foi a vida inteira, mesmo na própria pátria, sonhando sempre com um mundo melhor, menos para si mesmo que para todos os outros. Ele, o homem universal por excelência, o português estrangeirado e esquecido na distância, o emigrante e o exilado, é em Os Lusíadas e na sua obra inteira, tão imensa e tão grande, a medida do mais universal dos portugueses e do mais português dos homens do universo. Ninguém, como ele desejou representar em si mesmo a humanidade, representar tão exactamente o próprio Portugal, no que Portugal possui de mais fulgurante, de mais nobre, de mais humano, de mais de tudo e todos, em todos os tempos e lugares. Ele é, como ninguém, o homem que viajou, viu e aprendeu. O homem que se sente moralmente no direito de verberar com tremenda intensidade, as desgraças de viver-se e os erros ou vícios da sociedade portuguesa. É o exilado físico de muitos anos mas é, como todos nós, e nisso tanto ou mais o somos que outros povos, o exilado moral, clamando por justiça, por tolerância, por dedicação à pátria, por espírito de sacrifício, por unidade nacional e universal, lá onde via que o homem é, como ele disse mais que uma vez, o “bicho da terra tão pequeno” contra o qual se encarniçam os poderes do mal.
Haverá ainda quem diga que esse homem cantou a expansão imperial, apesar de tudo, as conquistas imperiais do Oriente, e está portanto fora do nosso tempo e do nosso espaço históricos, e a sua epopeia ofende a consciência das Ásias e das Áfricas. Mas ele cantou a expansão portuguesa, na medida em que considerava que esta expansão era ou deveria ser a civilização ocidental levada a toda a parte, no que tinha de moralmente digno e de socialmente responsável. Ao escolher para assunto central da sua epopeia a viagem de Vasco da Gama, ele sabia perfeitamente que escolhia um momento decisivo da história universal; o encontro, para todo o sempre, para bem e para mal, da Europa com a Ásia, passando-se pela África.
Momento decisivo dessa história do mundo, como eminentes historiadores insuspeitos de simpatias portuguesas ou imperialistas o têm proclamado e reconhecido. E, na verdade, esse encontro (e esse Império que, no tempo de Camões, com todos os erros e crimes, não era os impérios coloniais inventados pela Europa do século XIX, nem socio-moralmente inferior à desordem política existente então, como hoje, em toda a parte) simboliza aquilo mesmo que, mais tarde, nos nossos dias, veio a verificar-se. Porque as ideias de independência política e de justiça social pelas quais lutaram e ainda lutam os povos da Ásia e da África, e às quais se renderam os povos das Américas ao separar-se da velha Europa, não são as tradições tribais originárias por respeitáveis que sejam: são aquelas mesmas ideias que, geradas na Europa, da Europa se difundiram, tal como as naus do Gama partiram de Lisboa para uma das mais gloriosas viagens de todos os tempos. Isso Camões cantou: e vendo-o no seu tempo, e na visão do mundo que ele teve, sabemos que devemos relê-lo atentamente para saber, que ele, tão orgulhosamente português, entenderia todas as independências, se fosse em vida nosso contemporâneo como ele o é na obra que nos legou, para glória máxima de uma língua falada e escrita ou recordada em todos os continentes.
O orgulho de ser-se alguma coisa, o inabalável sentimento de independência e de liberdade, disso ele falou, e sentiu como ninguém. É disso um mestre. Tudo existe na sua obra: o orgulho e a indignação, a tristeza e a alegria prodigiosa, a amargura e o gosto de brincar, e desejo de ser-se um puro espírito de tudo isento e a sensualidade mais desbragada, uma fé inteiramente pessoal, pensada e meditada como ele a queria e não como uma instituição, e a dúvida do predestinado que se sente todavia só e abandonado a si mesmo.
Leiam-no e amem-no: na sua epopeia, nas suas líricas, no seu teatro tão importante, nas suas cartas tão descaradamente divertidas. E lendo-o e amando-o (poucos homens neste mundo tanto reclamaram amor em todos os níveis, e compreensão em todas as profundidades) – todos vós aprendereis a conhecer quem sois aqui e no largo mundo, agora e sempre, e com os olhos postos na claridade deslumbrante da liberdade e da justiça. Ignorar ou renegar Camões não é só renegar o Portugal a que pertencemos, tal como ele foi, gostemos ou não da história dele. É renegarmos a nossa mesma humanidade na mais alta e pura expressão que ela alguma vez assumiu. E esquecermos que Portugal como Camões, é a vida pelo mundo em pedaços repartida.
Paris, 3 de Junho de 1977.
É para mim uma honra insigne o ter sido oficialmente convidado pela comissão organizadora das comemorações de Camões em 1975, e do dedicar-se do Dia de Camões à recordação das comunidades portuguesas ou de origem portuguesa dispersas pelo mundo, para aqui falar na minha dupla qualidade de estudioso de Camões, e de residente no estrangeiro, que eu sou. Com efeito, em 1978, cumprem-se trinta anos sobre a primeira vez que, de público me ocupei de Camões, iniciando o que, sem vaidade me permito dizê-lo, tem sido uma contínua campanha para dar a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril de 1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência.
Esse meu Camões foi longamente o riso dos eruditos e dos doutos, de qualquer cor ou feitio; foi a indignação do nacionalismo fascista, dentro e fora das universidades, dentro e fora de Portugal; foi a aflição inquieta do catolicismo estreito e tradicional, dentro e fora de Portugal; e foi a desconfiança suspeitosa de muita gente de esquerda, a quem eu oferecia um Camões que deveria ser o deles, quando eles preferiam atacar ou desculpar o Camões dos outros. Foi e ainda é, e será.
Porque, sendo Camões o maior escritor da nossa língua que é uma das seis grandes línguas do mundo e um dos maiores poetas que esse mundo alguma vez produziu (ainda que esse mundo, na sua maioria, mesmo no Ocidente, o não saiba), ele é uma pedra de toque para portugueses, e porque tentar vê-lo como ele foi e não como as pessoas quiserem ou querem que ele seja, é um escândalo. São essa pedra de toque e esse escândalo o que, neste momento solene, a três anos de distância do 4o. centenário da morte do maior português de todos os tempos, vos trago aqui, certo e seguro de que ele mesmo assim o desejaria. E, antes de mais, peço que, nas minhas palavras anteriores ou nas minhas palavras seguintes, ninguém veja ataques ou referências pessoais que não há; tenhamos todos, tenham todos a humildade de reconhecer que, quando se fala de Camões e de Portugal, não podemos pensar em mais ninguém.
Quanto a ser um residente no estrangeiro, vai para dezoito anos que o sou, o que, curiosamente, é mais ou menos o tempo que o próprio Camões viveu fora de Portugal, desde que dele partiu para as Índias [em 1553, até que regressou,]* em 1570, tão pobre como partira, mas com Os Lusíadas no bolso ou na bagagem, para publicá-los. Eu nem estou a regressar, nem tenho Lusíadas nenhuns. Mas não sou exactamente um emigrante no estrangeiro, ainda que neste viva, e com os emigrantes me possa identificar – aqueles emigrantes que vi e tenho visto de perto, primeiro no Brasil e depois nos Estados Unidos, e também pelo mais largo mundo que tenho percorrido, e que, com a sua laboriosidade, a sua dignidade, a sua humanidade convivente, são em toda a parte, míseros e mesquinhos, ou ascendidos e triunfantes, muitas vezes, os embaixadores que Portugal não envia, ou os representantes da cultura que Portugal não exporta.
Por dezassete anos, recordemos, Camões foi apenas um deles, quando ninguém sabia ou podia ainda saber o génio que ele era. Reatando: eu não sou exactamente um emigrante no estrangeiro, porque, quando saí de Portugal, tinha vinte anos de escritor publicado, e desde então a maior parte da minha obra, ou grande parte dela, foi escrita para Portugal ou em Portugal publicada. Seja o que seja, continuo a ser o que era, quando me exilei muito a tempo naqueles idos negros e tristes de 1959: um escritor português que vive no estrangeiro e que mantém um permanente contacto com Portugal, até por obrigação profissional: catedrático de Literatura Portuguesa, que é um dos meus títulos e deveres, não tenho outro remédio senão estar a par do que se publica. Por outro lado, a minha fidelidade a Portugal – e fidelidade é uma das palavras-chave da minha pessoa e da minha obra, como liberdade é outra – nunca me permitiu livrar-me de partilhar (acrescentadas da dor da distância) as dores e as alegrias, os desalentos e as esperanças de Portugal.
Permitam-me ainda um esclarecimento. Na melhor das intenções, vária imprensa anunciou ou referiu que eu falaria aqui como representante dos luso-americanos. Se alguém pensou que eu tal faria, mais que num plano meramente simbólico de partilhar com eles o viver nos Estados Unidos, enganou-se redondamente. Primeiro que tudo, eu não sou um luso-americano: esta palavra significa não o português que vive na América, mas ou o que adquiriu a cidadania americana, ou o que descende de portugueses e já nasceu americano: luso-americanas são duas filhas minhas, por naturalização, e um neto meu que o é nato, como brasileiro por naturalização eu sou, e dois filhos meus o são natos, enquanto minha mulher e outros cinco filhos mantiveram a nacionalidade portuguesa. E, em segundo lugar, que é o primeiro de todos, eu não recebi dos luso-americanos nenhum mandato eleitoral para falar em nome deles, embora esteja certo de que mo teriam dado, se a eles o tivesse pedido, por saberem que os respeito e estimo, sem distinção de credo ou cor (porque há luso-americanos de cor, idos de Cabo Verde para lá, por exemplo). Democrata como sou, eu não falo em nome de ninguém, sem ter recebido um expresso mandato para tal. Eu fui convidado por Lisboa e de Lisboa, o que é uma honra, mas Lisboa não tem o direito de nomear representantes de nada ou de ninguém.
Esse vício centralista da nossa tradição administrativa – um dos vícios que Camões denunciou e castigou nos seus Lusíadas – deve ser eliminado e banido dos costumes portugueses, sem perda da autoridade central que deve manter unido um dos povos mais anárquicos do mundo e menos realistas quando de política se trata. Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista, quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a experiência da liberdade. Isto não sucedeu só agora, e não é senão repetição de outros momentos da nossa história sempre repartida entre o anseio de uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião.
Também dos limites da ordem social e dos deveres do homem para consigo mesmo e a sociedade de que faz parte foi Camões um mestre. Assim, aqui, no âmbito de celebrações que são camoneanas e do Portugal disperso pelo mundo desde que o país existe e desde que, no estrangeiro, comunidades portuguesas ou de lusa origem se formaram ou mantiveram, eu não represento luso-americanos, e não falo em nome deles ou de ninguém no largo mundo. Aceito falar, como eu mesmo, da importância e do significado de Camões hoje, e da necessidade de ter presente ao espírito esta ideia tão simples: um país não é só a terra com que se identifica e a gente que vive nela e nasce nela, porque um país é isso mais a irradiação secular da humanidade que exportou. E poucos países do mundo, ao longo dos tempos, terão exportado, proporcionalmente, tanta gente como este.
Sejamos francos e brutais. Há neste momento, milhões de portugueses dispersos pelo mundo em mais de um continente, e não só na Europa de que são mão-de-obra. O país pensa neles, e deseja recordar-se deles. Mas o país, pura e simplesmente, na situação económica que herdou e em que se encontra e toda a gente sabe desastrosa, não pode prescindir do dinheiro deles, ou do dinheiro que eles costumam enviar para a santa terrinha, ao contrário do que faziam e fazem portugueses do território nacional, que mandavam o seu dinheiro para o anonimato dos bancos da Suíça.
Deste modo, celebrar as Comunidades Portuguesas no dia do santo nacional que celebrou a expansão imperial do país é, ao mesmo tempo, um belo ideal e um cálculo muito prático. Há quem diga e quem pense que celebrações como esta – de Camões ou das comunidades – são uma compensação para a perda ou derrocada do Império oferecida ao sentimento popular, e que isso das comunidades é mesmo ainda pior: uma ideia do fascismo. Antes de mais, neste país há que pôr um basta não só ao fascismo ele mesmo, mas à mania de atribuir tudo ao fascismo, até as ideias. Porque, por esse caminho, ficamos todos sem ideias de que precisamos muito, e os fascistas ou os saudosistas deles acabam convencidos de que tinham ideias, quando ter ideias e ser fascista é uma absoluta impossibilidade intelectual e moral.
O celebrar-se no presente e no passado em sua gente, o homenagear essa gente e recordá-la aonde quer que viva ou tenha vivido é um imperativo imarcescível da dignidade humana, num dos aspectos que a representa: o pertencer-se directa ou indirectamente a um povo, uma história, uma cultura, que como no caso de Portugal, foi, é e será capaz de diversificar-se em outras. Nenhum internacionalismo que se preze de ter os pés na realidade e na matéria de que somos feitos, pode negar ou ignorar essas realidades tremendas que são uma língua ou muitas, uma raça ou várias, uma cultura por mais adaptável ou capaz de absorção que ela seja, que se identificam com um nome secular – Portugal no nosso caso, aqui e agora.
Pensarão alguns, acreditando no que se fez do pobre Camões durante séculos, que celebrá-lo, ou meditá-lo e lê-lo, é prestar homenagem a um reaccionário horrível, um cantor de imperialismos nefandos, a um espírito preso à estreiteza mais tradicionalista da religião católica. Camões não tem culpa de ter vivido quando a Inquisição e a censura se instituíam todas poderosas: se o condenamos por isso, condenamo-nos nós todos a que, escrevendo ou não-escrevendo, e ainda vivos ou já mortos, resistimos durante décadas a uma censura opressiva, e a uma repressão implacável e insidiosa, escrevendo nas entrelinhas como ele escreveu.
Isto é, condenamos a vera ideia de “Resistência” que, modernamente, fomos dos primeiros povos da Europa a tristemente conhecer e corajosamente praticar. E sejam quais forem as nossas ideias e as nossas situações políticas, nenhum de vós que me escutais ou não, pode viver sem uma ideia que, genericamente, é inerente à própria condição humana: o resistir a tudo o que pretende diminuir-nos ou confinar-nos. Camões não tem também culpa de ter sido transformado em símbolo dos orgulhos nacionais, em diversos momentos da nossa história em que esse orgulho se viu deprimido e abatido. Claro que esse aproveitamento não teria sido possível se ele não tivesse escrito Os Lusíadas. Mas o restituir a quem o podia ler e o podia sentir mais fundamente um pouco de confiança em horas difíceis, é um acto de caridade, essa virtude que não é só cristã porque é, desde antes do cristianismo, a própria essência da civilização: a solidariedade humana quando a dor nos fere. E o ter sido usado, manipulado e treslido como Camões o foi, ou denegrido como também foi desde a publicação do seu poema, é um dos preços que a grandeza paga neste mundo.
Camões e a sua obra têm pago esse preço como todos os outros. Deixem-me todavia recordar-vos que o grande aproveitacionismo de Camões para oportunismos de politicagem moderna não foi iniciado pela reacção. Esta, na verdade, e desde sempre, mesmo quando brandindo Camões, sentia que as mãos lhe ardiam. Aqueles oportunismos foram iniciados com o liberalismo romântico e com o positivismo republicano. E se o Estado Novo tentou apoderar-se de Camões, devemos reconhecer que ele era o herdeiro do nacionalismo político e burguês, inventado e desenvolvido por aquele liberalismo e aquele positivismo naquelas confusões ideológicas que os caracterizavam e de que Camões não tem culpa: tê-la-iam por exemplo dois homens que merecem o nosso respeito: Almeida Garrett e Teófilo Braga. E quanto à reacção mais recente em face de Camões, eu lembro apenas dois pequenos exemplos em que a censura o proibiu, se não estou em erro: o caso do jornal de Vila do Conde, em que um tio de José Régio usava publicar os clássicos, citando-os convenientemente, e o da revista Vértice, de Coimbra, que fazia o mesmo.
E isto para não falarmos de crimes literários e socio-morais de mais largo alcance, de que Camões era vítima nas escolas, parecendo até que nós éramos as vítimas dele. Porque, para além de encher-se a boca com a Fé e o Império, que nem uma nem outro eram para Camões o que eram para o Dr. Salazar, o poeta não servia para mais nada senão para exercícios de gramática estúpida: o que, tudo junto, chega para gerações lhe terem ganho alguma raiva e perdido o gosto de o ler. E há mais e pior: quando, no liceu, líamos Os Lusíadas, éramos proibidos de ler (e não estudávamos) as passagens consideradas mais chocantes pela pudicícia hipócrita desta nossa sociedade de sujeitos felizmente desavergonhados que fingem lamentavelmente possuir a virtude que não têm, e vivem a perseguir ou reprimir os pecados alheios.
Claro que nós todos íamos logo ler as passagens “proibidas” e lendo-as assim, com olhos libidinosos, perdíamos a grandeza delas: a majestade do sexo e do amor, a magnitude da liberdade e da tolerância, a inocência magnífica do prazer físico e da paixão erótica, que, acima de tudo, Camões cantava e celebrava nessas passagens com uma abertura de espírito e uma audácia espantosas. Será possível que os frades o tenham feito alterar algumas coisas antes de publicar Os Lusíadas. Mas, em face de algumas daquelas que lá ficaram, temos de reconhecer que, mais do que aquilo, só um poema francamente pornográfico, incompatível com a dignidade e o decoro da grande epopeia que Camões desejou escrever e escreveu.
Tem-se dito que o grande protagonista da epopeia é o povo português, e na verdade o povo aparece, segundo as tradições clássicas, representado apenas pelos seus heróis, aqueles que Camões seleccionou para o efeito, à excepção dos marinheiros anónimos que acompanhavam Vasco da Gama ou os seus guerreiros anónimos sem os quais não haveria a magnificente descrição da batalha de Aljubarrota ou análogos momentos. Aqueles marinheiros, como o próprio Vasco, são deificados, ou transfigurados epicamente na Ilha dos Amores, em condições sem dúvida moralmente impróprias de quem deixara família em Portugal, mas altamente consentâneas, se me permitem a rudeza, com a promiscuidade sexual notória do povo português, ao mesmo tempo que de acordo com as convenções épicas e mitológicas pelas quais os heróis se dignificavam no conhecimento (que aqui uso no sentido intelectualmente neo-platónico e no sentido obscenamente público) das entidades divinas. Já se disse que as personagens mais vivas e activas de Os Lusíadas são os deuses pagãos, e não as criaturas históricas, mais pálidas e incaracterísticas do que elas.
Até certo ponto, isto é verdade. E é-o por algumas razões camonianamente importantes. Antes de mais, na filosofia que Camões assume e torna extremamente pessoal, os deuses pagãos possuem, como atributos do Deus supremo, invisível e silencioso, e como seus intermediários agentes, uma realidade autêntica que a criação artística faria necessariamente mais palpável e concreta. E é assim que nós vemos tão nitidamente Vénus, a Afrodite originária e primeva, um dos deuses anteriores a tudo, e também a deusa do amor que este sim, é todo poderoso – como a não veríamos? Ela é a amante, a esposa, a mãe, tudo o que o princípio feminino significa dentro e fora da nossa humanidade, naquelas complexidades psico-sexuais a que Camões se compraz em aludir, servindo-se de alusões mitológicas que parecem meros ornamentos ao longo da epopeia inteira. E como não veríamos Baco ou Diónisos, receoso de ser castrado da sua lendária glória de conquistador da Índia? Se, como descendentes de Luso, descendemos dele, e ele é o nosso pai receoso do triunfo e da liberdade dos filhos? Como não veríamos Júpiter, se ele é de certa maneira a providência divina, sempre disposta a sucumbir, mesmo incestuosamente, às atracções do amor? Estes deuses, na dialéctica camoniana, sem a qual Camões se não entende, são ao mesmo tempo as emanações do princípio divino que desce à terra, e são a nossa humanidade ascendida e divinizada.
E é neste mesmo sentido que as referências a Cristo devem ser entendidas nos contextos camoneanos: ele é, supremamente, para Camões, o princípio divino que, como um fogo de vida, desce a encarnar-se humanamente, mas é também o homem, o herói humano que, pelo seu sacrifício, ascende ou regressa ao divino. E é este heroísmo do apostolado e do sacrifício o que, em toda a sua epopeia, Camões propõe continuamente pela referência ou pela narrativa. Até Inês de Castro, a grande matriarca do poema, ascende à glória épica pelo seu sacrifício de amor. Porque para o amor, para todas as formas de amor, Camões arranja sempre uma desculpa, um louvor, ou a suprema divindade, porque esse amor é, para ele, a todos os níveis, a realidade última, e a realidade sempre presente. Sem amor, não há heróis, nem há homens dignos desse nome. E amor, mesmo numa epopeia que transborda de feitos bélicos e de acções guerreiras, não existe sem uma infinita e total tolerância, um respeito pelos outros povos, as outras raças, as outras culturas, as outras religiões, ao ponto de, como já tenho chamado a atenção, o conceito de santidade ou a palavra santo se aplicar a todos, sem distinção alguma, cristãos, muçulmanos, brâmanes, etc., e até – não o esqueçamos – a uma ninfa que se deixa possuir, por bem requestada, na Ilha dos Amores.
Este Camões de amor e tolerância permeia Os Lusíadas. Mas já se disse que, além e acima de tudo e todos, a principal personagem da epopeia é Camões ele-mesmo, não só como o autor, não só como o narrador, não só como o crítico severo e implacável de toda a corrupção e de toda a maldade, como o denunciador angustiado de uma decadência moral e cívica que ele via e sentia à sua volta, e o qual constantemente interrompe a narrativa para invectivar com o maior desassombro (lembremo-nos de que as ordens daquele D. Sebastião a quem o poema é dedicado, dirigidas aos seus imperiais governadores, chamando-os à virtude e à dignidade, não tinham de tom diverso senão a diferença que vai de uma carta oficial a uma poesia de génio). E há nisso de Camões ser central uma enorme e profunda verdade que é o Camões-homem e o Camões-poeta. Não só ele se colocou, nos seus cálculos arquitectónicos do poema, nessa posição, e assim se colocando, se apresenta como a culminação da aventura portuguesa que ele conta, como o herói que o é por ser quem transforma Portugal numa obra de arte, acima das contingências históricas e da mesquinhês humanas.
O Camões que na epopeia espreita ou se mostra a cada momento, roubando mesmo alguma realidade estética a tudo e todos, nós conhecêmo-lo e entendêmo-lo de outro volante do políptico que é a sua obra: o grande poeta lírico que é também um grande pensador, e que, na obra lírica como na épica, se apresenta como resumo e epítome da humanidade mesma, e não só do povo português. Ele é o homem em si, aquele ser que se busca continuamente e ao amor que o projecta para dentro e para fora de si mesmo, e é, como Luís de Camões, o predestinado para ser, ao mesmo tempo, o poeta-herói supremo que realiza, isto é, torna real para a eternidade da poesia, a história de Portugal, e a embarca nos navios de Vasco da Gama para unir o Ocidente ao Oriente. Ao mesmo tempo, este poeta-herói-épico, e o poeta-homem, exemplo de ser-se português, em exílios e trabalhos, em sofrer incompreensões e injustiças , e – ao contrário do que sucede ou sucedeu a alguns – regressar com as mãos vazias, apenas rico de desilusões, de amarguras e do génio que havia posto numa das mais prodigiosas construções jamais criadas, desde que o mundo é mundo. E essa construção ele trazia, reunindo o Portugal disperso, para o que ele deixara a vida, como disse, pelo mundo em pedaços repartida.
Ninguém como Camões nos representa a todos, repito, e em particular os emigrantes, um dos quais ele foi por muitos anos, ou os exilados, outro dos quais ele foi a vida inteira, mesmo na própria pátria, sonhando sempre com um mundo melhor, menos para si mesmo que para todos os outros. Ele, o homem universal por excelência, o português estrangeirado e esquecido na distância, o emigrante e o exilado, é em Os Lusíadas e na sua obra inteira, tão imensa e tão grande, a medida do mais universal dos portugueses e do mais português dos homens do universo. Ninguém, como ele desejou representar em si mesmo a humanidade, representar tão exactamente o próprio Portugal, no que Portugal possui de mais fulgurante, de mais nobre, de mais humano, de mais de tudo e todos, em todos os tempos e lugares. Ele é, como ninguém, o homem que viajou, viu e aprendeu. O homem que se sente moralmente no direito de verberar com tremenda intensidade, as desgraças de viver-se e os erros ou vícios da sociedade portuguesa. É o exilado físico de muitos anos mas é, como todos nós, e nisso tanto ou mais o somos que outros povos, o exilado moral, clamando por justiça, por tolerância, por dedicação à pátria, por espírito de sacrifício, por unidade nacional e universal, lá onde via que o homem é, como ele disse mais que uma vez, o “bicho da terra tão pequeno” contra o qual se encarniçam os poderes do mal.
Haverá ainda quem diga que esse homem cantou a expansão imperial, apesar de tudo, as conquistas imperiais do Oriente, e está portanto fora do nosso tempo e do nosso espaço históricos, e a sua epopeia ofende a consciência das Ásias e das Áfricas. Mas ele cantou a expansão portuguesa, na medida em que considerava que esta expansão era ou deveria ser a civilização ocidental levada a toda a parte, no que tinha de moralmente digno e de socialmente responsável. Ao escolher para assunto central da sua epopeia a viagem de Vasco da Gama, ele sabia perfeitamente que escolhia um momento decisivo da história universal; o encontro, para todo o sempre, para bem e para mal, da Europa com a Ásia, passando-se pela África.
Momento decisivo dessa história do mundo, como eminentes historiadores insuspeitos de simpatias portuguesas ou imperialistas o têm proclamado e reconhecido. E, na verdade, esse encontro (e esse Império que, no tempo de Camões, com todos os erros e crimes, não era os impérios coloniais inventados pela Europa do século XIX, nem socio-moralmente inferior à desordem política existente então, como hoje, em toda a parte) simboliza aquilo mesmo que, mais tarde, nos nossos dias, veio a verificar-se. Porque as ideias de independência política e de justiça social pelas quais lutaram e ainda lutam os povos da Ásia e da África, e às quais se renderam os povos das Américas ao separar-se da velha Europa, não são as tradições tribais originárias por respeitáveis que sejam: são aquelas mesmas ideias que, geradas na Europa, da Europa se difundiram, tal como as naus do Gama partiram de Lisboa para uma das mais gloriosas viagens de todos os tempos. Isso Camões cantou: e vendo-o no seu tempo, e na visão do mundo que ele teve, sabemos que devemos relê-lo atentamente para saber, que ele, tão orgulhosamente português, entenderia todas as independências, se fosse em vida nosso contemporâneo como ele o é na obra que nos legou, para glória máxima de uma língua falada e escrita ou recordada em todos os continentes.
O orgulho de ser-se alguma coisa, o inabalável sentimento de independência e de liberdade, disso ele falou, e sentiu como ninguém. É disso um mestre. Tudo existe na sua obra: o orgulho e a indignação, a tristeza e a alegria prodigiosa, a amargura e o gosto de brincar, e desejo de ser-se um puro espírito de tudo isento e a sensualidade mais desbragada, uma fé inteiramente pessoal, pensada e meditada como ele a queria e não como uma instituição, e a dúvida do predestinado que se sente todavia só e abandonado a si mesmo.
Leiam-no e amem-no: na sua epopeia, nas suas líricas, no seu teatro tão importante, nas suas cartas tão descaradamente divertidas. E lendo-o e amando-o (poucos homens neste mundo tanto reclamaram amor em todos os níveis, e compreensão em todas as profundidades) – todos vós aprendereis a conhecer quem sois aqui e no largo mundo, agora e sempre, e com os olhos postos na claridade deslumbrante da liberdade e da justiça. Ignorar ou renegar Camões não é só renegar o Portugal a que pertencemos, tal como ele foi, gostemos ou não da história dele. É renegarmos a nossa mesma humanidade na mais alta e pura expressão que ela alguma vez assumiu. E esquecermos que Portugal como Camões, é a vida pelo mundo em pedaços repartida.
Paris, 3 de Junho de 1977.
segunda-feira, junho 6
TUDO ISTO É TRISTE, TUDO ISTO É FADO (Take 2)
A propósito do ingresso de Paulo Portas na Mota Engil não preciso escrever nada de original. Basta-me reproduzir o que escrevi, e publiquei, em 8/4/2008, acerca do ingresso de Jorge Coelho na mesma empresa.
Os políticos em democracia, como qualquer cidadão, têm que tomar decisões. A diferença está em que os políticos, em democracia, tomam decisões em nome dos cidadãos que os mandataram, pelo voto, para as tomar em sua representação.
Os políticos não são cidadãos comuns pois enquanto estes respondem pelos seus actos perante a sua consciência, e um pequeno círculo de outros cidadãos, os políticos respondem perante a comunidade por decisões que afectam aspectos essenciais da vida, presente e futura, de todos.
Os políticos mais destacados, ou seja, os que exercem funções de maior responsabilidade, nunca deixam de ser cidadãos, gozando, em plenitude, dos mesmos direitos que todos os outros. Mas os cidadãos eleitos para o exercício de funções políticas nunca deixam de ser vistos pela comunidade, que um dia os elegeu, e neles confiou, como políticos.
Tanto mais alto o cargo que tenham exercido, tanto mais tempo nele tenham militado, mais se lhes exige que respeitem os cidadãos que neles confiaram.
Passando a casos concretos ninguém imagina, por exemplo, que Sá Carneiro, Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio, António Guterres, Ferro Rodrigues ou Cavaco Silva um dia tomassem a decisão de assumir a presidência do Conselho de Administração de uma empresa privada. Muito menos se poderá dizer que essa postura de desprendimento se deva à sua fortuna material.
Mas de outros se não pode dizer o mesmo e não cito nomes para não ser injusto para com algum político cuja opção pela gestão empresarial privada tenha tido cabal justificação pois toda a regra admite excepção.
Vergonha, dizem alguns. O que eu digo é que o efeito da opção de Jorge Coelho pela presidência executiva da maior empresa privada de construção civil do país, se for confirmada, pelo seu passado e personalidade, é devastador para a credibilidade dos políticos pois legitima aquele dito popular que tanto custa a engolir a todos os cidadãos de boa fé, que se bateram, e batem, pela ética republicana: “o que eles querem é tacho”.
Tudo isto é triste, tudo isto é fado!
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Os políticos em democracia, como qualquer cidadão, têm que tomar decisões. A diferença está em que os políticos, em democracia, tomam decisões em nome dos cidadãos que os mandataram, pelo voto, para as tomar em sua representação.
Os políticos não são cidadãos comuns pois enquanto estes respondem pelos seus actos perante a sua consciência, e um pequeno círculo de outros cidadãos, os políticos respondem perante a comunidade por decisões que afectam aspectos essenciais da vida, presente e futura, de todos.
Os políticos mais destacados, ou seja, os que exercem funções de maior responsabilidade, nunca deixam de ser cidadãos, gozando, em plenitude, dos mesmos direitos que todos os outros. Mas os cidadãos eleitos para o exercício de funções políticas nunca deixam de ser vistos pela comunidade, que um dia os elegeu, e neles confiou, como políticos.
Tanto mais alto o cargo que tenham exercido, tanto mais tempo nele tenham militado, mais se lhes exige que respeitem os cidadãos que neles confiaram.
Passando a casos concretos ninguém imagina, por exemplo, que Sá Carneiro, Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio, António Guterres, Ferro Rodrigues ou Cavaco Silva um dia tomassem a decisão de assumir a presidência do Conselho de Administração de uma empresa privada. Muito menos se poderá dizer que essa postura de desprendimento se deva à sua fortuna material.
Mas de outros se não pode dizer o mesmo e não cito nomes para não ser injusto para com algum político cuja opção pela gestão empresarial privada tenha tido cabal justificação pois toda a regra admite excepção.
Vergonha, dizem alguns. O que eu digo é que o efeito da opção de Jorge Coelho pela presidência executiva da maior empresa privada de construção civil do país, se for confirmada, pelo seu passado e personalidade, é devastador para a credibilidade dos políticos pois legitima aquele dito popular que tanto custa a engolir a todos os cidadãos de boa fé, que se bateram, e batem, pela ética republicana: “o que eles querem é tacho”.
Tudo isto é triste, tudo isto é fado!
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terça-feira, maio 31
Dar força à economia social ─ solidariedade, democracia e socialismo
Fotografia na qual surgem dois destacados militantes do PS oriundos do MES, como eu próprio, desde a sua fundação (Ferro Rodrigues e Joaquim Banha)
Pela primeira vez, desde o momento em que aderi ao Partido Socialista, em 1986, me associo à apresentação de um documento a um Congresso nacional, neste caso ao XXI Congresso que se realiza no próximo fim de semana. Na verdade trata-se de um projeto coletivo cujo principal inspirador foi Rui Namorado ao qual me associei por força das minhas convicções adquiridas, desde há muito, e consolidadas através do meu trabalho profissional na área da economia social. Deixo aqui o texto dessa moção setorial subscrita por um conjunto alargado de socialistas, e de simpatizantes, que têm dedicado grande parte das suas vidas ao pensamento e ação em prol do associativismo livre, do cooperativismo ao mutualismo, da ação social ao desenvolvimento local e regional, em particular, na atividade autárquica. A minha adesão à militância cívica, politica e associativa, como os meus amigos sabem, vem de longa data mas nunca é tarde para a manifestar de forma renovada desde que seja por causas que valham a pena. A economia social, que enraíza no associativismo livre, berço do socialismo democrático, do trabalhismo e da social democracia, é muito mais do que um adorno partidário, no plano programático, contendo em si mesma as sementes de um novo modelo económico-social que está a germinar nas entranhas da crise que atravessa todas as sociedades, em particular, as dos países europeus.
XXI CONGRESSO NACIONAL DO PARTIDO SOCIALISTA
MOÇÃO SETORIAL
Dar força à economia social ─ solidariedade, democracia e socialismo
1. Introdução
2. O PS e a economia social
3. Para uma visão futurante da economia social
4. Alguns vetores estruturantes de uma política de fomento da economia social
5. Para uma política quanto à economia social na Europa e no Mundo
6. Para uma política de fomento da economia social
7. Conclusão
1. Introdução
1.1. A economia social abrange um conjunto de organizações e de
práticas sociais, quase sempre animadas por movimentos sociais
emancipatórios. Baseia-se na cooperação, na reciprocidade e na
solidariedade. É uma resistência à lógica económico-social dominante,
antecipando uma alternativa pós-capitalista.
De um ponto de vista histórico e pela sua dinâmica, a economia
social é uma trave mestra do projeto socialista. Contribui para compensar
os desequilíbrios sociais e as pulsões predatórias que afligem as
sociedades atuais, mas antecipa também um horizonte pós-capitalista.
Responde a problemas do presente, antecipando um futuro desejável e
possível.
É uma instância de transformação social que se guia por princípios
e valores que coincidem, no essencial, com os do socialismo democrático.
De facto, a economia social exprime e acelera a metamorfose exigida pelo
bloqueio que tolhe as sociedades atuais. Por isso, a sua importância é bem
maior do que aquilo que refletem os números que a espelham.
Mas mesmo que fossem apenas esses números a medir a sua
importância mostrariam uma realidade de relevância mundial. Há centenas
de milhões membros dessas organizações que em todo o mundo dão vida
às suas várias famílias; e contam-se por milhões as oportunidades que
suscitam e os postos de trabalho que criam. É enorme a riqueza que
geram. As atmosferas que as rodeiam são focos de irradiação de
solidariedade.
A sua fragilidade enfraquece a democracia; o seu vigor depende do
vigor da democracia. Qualquer estratégia reformista de transformação
social dificilmente se pode afirmar, esquecendo-a.
1. 2. Independentemente da forma jurídica que cada uma das suas
organizações assume, o que identifica a economia social é o primado dos
objetivos sociais sobre a procura do lucro, a sua utilidade social e a
partilha de uma identidade pós-capitalista. Neste sentido, além de uma
galáxia de tipos organizativos, a economia social consubstancia um leque
de movimentos sociais, marcados pela afirmação de uma cidadania
económica e social que completa e aprofunda a cidadania política.
No caso português, a economia social está expressamente
delimitada e caracterizada na Lei de Bases da Economia Social (LBES), a
qual articula os preceitos constitucionais que se ocupam do sector
cooperativo e social com a legislação comum que rege as diversas partes
da economia social. E o sector cooperativo e social consagrado na
Constituição da República (CRP) e que faz parte dela, corresponde quase
por completo ao seu âmbito.
Estamos por isso perante uma noção legalmente fixada e não
perante uma noção difusa que possa variar ao sabor de doutrinas ou de
opiniões.
2. O PS e a economia social
2.1. O PS deve considerar a economia social - uma das raízes
fundadoras do socialismo democrático – como uma das bases da sua
estratégia de promoção do desenvolvimento económico-social do país,
posta em prática através de políticas concretas, consonantes com CRP e a
LBES, e materializadoras de uma verdadeira democracia participativa.
A economia social inscreve-se com naturalidade no horizonte de
esperança do partido socialista. De facto, em regra, as práticas de
economia social antecipam uma sociedade mais justa, livre e humanizada,
o que suscita uma óbvia sinergia com os objetivos últimos do PS.
Por outro lado, a atual conjuntura mostra, de forma vincada, como
não é prudente esquecer que o fomento da economia social deve ser um
elemento fundamental da política de desenvolvimento do nosso país, da
sua sustentabilidade duradoura, bem como da sua qualidade humanista.
2.2. Nessa medida, o PS, em consonância com a sua história, com
o seu posicionamento político e com o seu programa, deve dar
centralidade ao desenvolvimento da economia social. E um dos aspetos
nucleares dessa política é o autárquico, o que implica a valorização dos
processos de desenvolvimento regional e local. Deste modo:
2.2.1. É necessário apoiar, sistematicamente, os militantes e
simpatizantes socialistas, que são protagonistas nas organizações de
economia social.
Por outro lado, o PS deve tornar o fomento da economia social um
elemento central da sua política, quer no plano nacional, quer no plano
regional, quer no plano autárquico, quer mesmo no plano europeu.
2.2.2. Nesta medida, para o PS a economia social tem que ser, muito
mais do que um item programático, um novo território de intervenção
política que se afirme como um dos pilares da sua visão global e como
ilustração prospetiva da sua identidade histórica.
Isto impõe que o PS assuma uma política pública para a economia
social que, respeitando plenamente a sua autonomia, consiga incentivá-la.
Para isso tem que conjugar a ação política do Estado em todos os seus
níveis, com uma intervenção social direta e organizada dos socialistas no
quotidiano da economia social.
2.2.3. Há pois que promover não só o robustecimento estratégico
da sua importância estrutural e prospetiva, mas também a instituição, no
plano partidário, de novas estruturas de intervenção que possibilitem uma
nova maneira de inserir o PS na sociedade.
3. Para uma visão futurante da economia social
3. Sistematizando aspetos essenciais desta visão da economia social,
sublinhem-se algumas ideias básicas que ajudam a clarificar o sentido e a
utilidade das propostas que, de seguida, se apresentam:
3.1. É politicamente regressivo depreciar o potencial reformador
das práticas cooperativas, associativas, mutualistas e solidárias.
3.2. Grande parte das instâncias da economia social
internacionalmente disseminadas são exemplos de uma globalização
emancipatória e solidária.
3.3. As entidades da economia social são pioneiras na valorização,
quer da responsabilidade social das empresas, quer da ação
empresarial em rede.
3.4. Qualquer política de desenvolvimento da economia social tem
que respeitar a história e a autonomia das respetivas organizações.
3.5. Há que refletir nas políticas públicas o facto de a Constituição
consagrar expressamente o princípio da proteção do “sector cooperativo
e social”, encarando-o autonomamente.
3.6. A luta contra o desemprego e contra a exclusão social, baseada
num princípio ativo de protagonismo dos excluídos, recebe da economia
social um contributo decisivo.
3.7. Há uma sinergia forte entre a economia social e o
desenvolvimento regional e local, conducente a um enraizamento
territorial da atividade económica que verdadeiramente a humanize,
potenciando a sua impregnação democrática.
4. Alguns vetores estruturantes de uma política de fomento da
economia social
4. Todas estas ideias devem ser enquadradas por alguns vetores
estruturantes de atuação, destacando-se aqui os que mais têm a ver com
a forte vocação autárquica do Partido Socialista.
4.1. Cabe ao PS valorizar o papel que a economia social
desempenha no desenvolvimento regional e local, estimulando as
sinergias necessárias.
4.2. Deve ser dado um apoio sistemático aos socialistas que se
encontram envolvidos nas entidades deste sector.
4.3. O fomento da economia social, como parte do desenvolvimento
regional e local, deve ser encarado como um elemento importante da
reforma do Estado. Ele deve reforçar o carácter democrático da
descentralização administrativa, contribuindo sustentadamente para
atenuar o desequilíbrio demográfico e económico do país, combatendo
assim o seu despovoamento e o aumento do risco de desertificação.
4.4. Por último, insista-se na ideia de se criar um novo setor de
intervenção sociopolítica do partido, consubstanciado na criação de uma
estrutura nacional temática da economia social, no enquadramento nos
Estatutos do Partido de novas seções, no desenvolvimento de seções já
existentes ou num tipo novo de estruturas.
5. Para uma política quanto à Economia Social na Europa e no
Mundo
5. Inserindo-as na visão do mundo que as ideias acima mencionadas
e os vetores estratégicos que as suportam refletem, podem formular-se
algumas propostas políticas mais específicas, no plano europeu e no
plano mundial:
5.1. O PS deve ter uma política europeia para a economia social.
Destaquem-se três vertentes prioritárias.
5.1.1. A primeira implica a defesa, no quadro da União Europeia, da
consideração político-jurídica autónoma da economia social como um
sector com uma lógica própria, que se distingue, quer do sector público
quer do sector privado, sem prejuízo de uma possível colaboração entre
todos eles, no respeito pelas suas diferenças. Um sector que, desse modo,
não pode ser um mero instrumento de políticas públicas ditadas do seu
exterior, nem um instrumento de simples projeção, enriquecimento e
legitimação ao serviço do sector privado e a reboque da respetiva lógica.
5.1.2. A segunda, essencial, consiste na garantia, institucionalmente
formalizada no quadro da UE, de que cada país pode com plena
legitimidade encarar a economia social de acordo com o perfil e com os
limites que ela assuma dentro da respetiva ordem jurídica.
5.1.3. A terceira, em harmonia com a anterior, implica lutar-se para
que as instâncias da União Europeia reconheçam, com todas as
implicações institucionais, políticas, económicas e sociais, que na ordem
jurídica portuguesa são empresas sociais todas aquelas que estiverem
integradas na economia social (tal como a LBES a define) e só essas.
5.2. É um ponto crucial para o desenvolvimento da economia social
o estabelecimento de relações internacionais sólidas com movimentos
congéneres de outros países, regiões e continentes.
Há pois que apoiar a respetiva participação ativa em todas as
instâncias internacionais da economia social. Nesse quadro, há que
valorizar mais o protagonismo de Portugal na cooperação dentro da
Organização Cooperativista dos Países de Língua Portuguesa (OCPLP),
no plano da economia social.
6. Para uma política de fomento da economia social
6. O PS deve assumir uma política de fomento da economia social
em torno dos seguintes eixos centrais de atuação:
6.1. O primeiro traduz-se num conjunto programas de apoio e
fomento:
6.1.1\. Apoio e fomento através de programas para a criação,
modernização e expansão de cooperativas, associações mutualistas e
outras entidades associativas, bem como de fundações, todas elas
orientadas para a produção de bens e serviços de qualidade;
6.1.2. Criação de um programa plurianual de apoio às organizações
do subsetor solidário da economia social – com base num modelo de
contrato de financiamento, por concurso, integrando uma diferenciação
positiva, em função da quantidade e qualidade dos serviços
contratualizados e efetivamente prestados e da avaliação de resultados,
inserindo-os numa lógica cidadã de transformação social, radicada num
respeito efetivo por todos os direitos humanos, rumo a uma diminuição
sustentada e estrutural da pobreza e das desigualdades sociais;
6.1.3. Fomento da criação de parcerias entre entidades dos setores
público e da economia social, sob a forma de “régie cooperativa”,
(cooperativa de interesse público), tendo em vista a reutilização,
reafectação e rentabilização de equipamentos, podendo, para esse efeito,
recorrer aos recursos financeiros oriundos dos “Fundos Estruturais”;
6.1.4. Lançamento, a nível nacional, em parceria público-social que
envolva todas as estruturas representadas no CNES (Conselho Nacional
para a Economia Social), de um programa de divulgação e promoção
dos valores da cooperação, solidariedade e associativismo, nas suas
diversas formas jurídicas, dirigido aos jovens, em particular, em ambiente
escolar, predominantemente dirigido aos alunos do ensino básico;
6.1.5.Promoção de medidas de diferenciação positiva nos regimes
fiscal e de segurança social, dando resposta, de forma integrada, às
diferentes necessidades de implementação, consolidação e viabilização das
entidades da economia social;
6.1.6.Apoio à valorização e capacitação de militantes, criadores e
empreendedores sociais, de forma a habilitá-los a promoverem projetos
que visem criar novas soluções para os mais relevantes problemas sociais,
com o objetivo de encorajar o surgimento de novas organizações ou novas
iniciativas sociais.
6.2.Um outro eixo da política de desenvolvimento da economia
social que deve ser prosseguida pelo PS é o que envolve a continuação da
reforma legal e institucional da economia social e a sua permanente
reavaliação, à luz da nova política seguida pelo atual Governo, tendo
sempre presente o imperativo de respeito pela Constituição e de
compatibilidade com a LBES. Assim, propõe-se:
6.2.1. A continuação e a reavaliação da reforma da legislação
ordinária do setor da economia social, no quadro da LBES e com pleno
respeito pela Constituição, para serem criadas condições para o
desenvolvimento e modernização das entidades que o integram e para a
expansão das suas atividades;
6.2.2. A promoção da reforma estatutária da CASES, dotando-a
de competências próprias de entidade reguladora do setor da economia
social, considerando o seu perímetro nos termos do previsto no art.º 4.º da
LBES;
6.2.3. A promoção da reforma do estatuto do voluntariado,
respeitando a sua complementaridade em relação ao trabalho assalariado,
de modo a dotá-lo de um enquadramento legal adequado à promoção do
seu crescimento, dada a sua importância na sociedade portuguesa;
6.2.4. Em articulação com as estruturas do sector, instituir estímulos
relevantes à criação entre os jovens de organizações inseridas na
economia social;
6.2.5. Promover sistematicamente a educação e a formação
cooperativa, mutualista e solidária, no plano da educação, quer formal,
quer informal, no quadro de uma valorização geral e estruturante da
economia social.
6.3. Um outro eixo do fomento da economia social a ser assumido
pelo PS é o que visa o apoio e incentivo ao reforço e reforma do
movimento associativo, garantindo-se:
6.3.1. Estímulo e apoio a uma reforma da organização do
movimento associativo, preservando a sua autonomia e independência
face aos poderes públicos, em prol do fortalecimento, e criação, de
organizações associativas de grau superior – Uniões, Federações e
Confederações – reforçando e dignificando a sua presença nas instâncias
de concertação social nacionais e nos fora internacionais;
6.3.2. Reforma do CNES (Conselho Nacional para a Economia
Social), promovendo o seu alargamento a novas entidades representativas
do setor da economia social;
6.3.3. Reformulação do programa de apoio à qualificação
institucional das entidades associativas de nível superior do setor da
economia social, reforçando os recursos que lhe são destinados com
origem nos Fundos Estruturais.
6.4. Como passo relevante, indispensável e urgente, no
desenvolvimento de políticas autárquicas de fomento da economia social,
propõe-se a criação de um Conselho Municipal da Economia Social que
projecte, no plano municipal, aquilo que significa no plano nacional o
Conselho Nacional para a Economia Social. Essa criação deve ser
articulada, no seu desenho e na sua implantação em concreto, com outras
práticas congéneres eventualmente já existentes no plano
autárquico.
6.4.1.Nos municípios liderados pelo PS pode desde já abrir-se
caminho, instituindo como instância política informal um Conselho
Municipal para a Economia Social, enquanto órgão de consulta da
Câmara Municipal.
6.4.2. No mesmo sentido, o PS criará uma Lei-Quadro dos
Conselhos Municipais para a Economia Social, que ficará assim
disponível para ser utilizada pelas câmaras municipais que o queiram
instituir em concreto.
6.4.3. Uma instância deste tipo, necessariamente flexível para poder
ser utilizada pelas autarquias permitindo um reforço do protagonismo das
entidades nela envolvidas, do seu mútuo reconhecimento, acompanhado
por um sentimento de pertença a um mesmo conjunto e por um forte
impulso dirigido à intercooperação. Vai também ficar mais facilitada uma
colaboração sistemática entre o poder autárquico e a economia social,
suscetível de os entrelaçar duravelmente.
6.4.4. Será igualmente desejável que, a partir dos Conselhos
Municipais para a Economia Social, se abra caminho a novas formas de
cooperação e a novas sinergias entre as entidades de economia social
situadas em cada freguesia, potenciando-se até, naturalmente, o
envolvimento das correspondentes entidades autárquicas nesses processos.
6. 5. No âmbito de uma política de desenvolvimento regional e local
fortemente impregnada pela economia social, deverá promover-se politica,
jurídica e institucionalmente uma plena inserção do subsector
comunitário na economia social, com especial relevo para os baldios.
Far-se-á assim uma reavaliação do protagonismo possível das
cooperativas de interesse público nesse novo contexto, quer ao nível
municipal, quer ao nível das freguesias.
6.6. No âmbito da modernização político-jurídica da economia
social, o PS deverá também ocupar-se do subsector autogestionário,
atualizando o seu enquadramento jurídico comum, de modo a criar um
caminho viável de subsistência para as empresas de que os seus titulares
desistirem, pela mão e sob a responsabilidade dos respetivos
trabalhadores.
6.7. No âmbito do subsector cooperativo, deve ser dada
continuidade à reforma jurídica, sem contudo deixar de se reavaliar o
caminho já percorrido, quer no plano jurídico-constitucional, quer no
plano político. Devem ainda ser abertas algumas janelas de renovação, tais
como, a título de exemplos:
6.7.1. Preenchimento da inexplicável lacuna do sistema jurídicocooperativo
português, existente desde a entrada em vigor do Código
Cooperativo em 1980, quanto às cooperativas de crédito. Na verdade, não
foi ainda publicado nenhum diploma legal que regulasse, na sua
globalidade, as cooperativas de crédito, apenas se tendo mantido uma
das suas parcelas, a das Caixas de Crédito Agrícola Mútuo (CCAM).
A iniciativa a assumir deve ser naturalmente concertada, quer com
as CCAM, quer com outros estabelecimentos bancários que existam no
seio da economia social, nomeadamente com o Montepio.
6.7.2. Na esteira de algumas das propostas políticas atrás feitas,
justifica-se uma reapreciação do diploma legal por que se regem as
cooperativas de interesse público, de modo a ajustá-lo ao acréscimo
qualitativo de protagonismo que se espera deste tipo de entidades.
Na verdade, não deve aqui recear-se a opção por uma atitude
pioneira que, ainda que muito atenta às necessidades e potencialidades das
cooperativas de interesse público já existentes, tenha o rasgo necessário
para dar respostas inovadoras, no plano da cooperação entre o sector
público e o sector cooperativo e social. Por exemplo, poder-se-ia renovar a
abordagem da problemática das empresas de inserção, que tão
promissoras foram, fazendo com que assumissem a forma de cooperativas
de interesse público.
6.7.3. Como resposta inovadora a desafios urgentes, há que apostar
na criação de um novo ramo cooperativo, as cooperativas de mão-de-obra,
instrumento que pode ajudar os trabalhadores a gerir melhor a sua
própria precariedade, o risco de desemprego, aumentando a flexibilidade
da oferta laboral, mas podendo calibrá-la eles próprios, em termos que
maximizem a proteção dos seus direitos. A complexidade e a novidade
desta via impõem uma prévia concertação com o movimento sindical,
indispensável para garantir que o novo ramo se insira na defesa dos
trabalhadores e não na instrumentalização das suas dificuldades.
6.7.4. Numa outra vertente, radicada na educação, seria muito
positivo criar mais um novo ramo cooperativo ou integrar uma vertente
nova num ramo já existente, predominantemente destinado aos alunos dos
primeiros níveis de ensino, o das cooperativas escolares. Assim, seria
gerada um vivência sistemática de cooperação, reciprocidade e
solidariedade, que enriqueceria o processo educativo geral e seria
indiretamente uma educação cooperativa pela prática.
6.7.5. O fomento do cooperativismo agrícola, na atual conjuntura
com especial incidência nas adegas cooperativas, é um estímulo poderoso
do desenvolvimento económico-social de muitos territórios. Merece uma
menção específica. E só pode esgotar todas as suas virtualidades se for
encarado como um aspeto do desenvolvimento rural, como um aspeto
importante do combate ao despovoamento do interior do país e nalguns
casos à sua desertificação.
O estímulo ao cooperativismo agrícola implica um reexame
profundo da fiscalidade que nele incide, bem como das estratégias
implícitas nas políticas públicas que o materializem, sejam elas nacionais
ou europeias. Um reexame que se deve inserir na aposta numa
territorialização conjugada dos protagonismos vividos dentro da economia
social, favorecendo e pressupondo uma intercooperação alargada,
especialmente no que diz respeito à cooperativização da intermediação
económica.
Essa política de fomento deve assumir-se também, nomeadamente,
como procura de novas formas de propriedade e de posse (cooperativas
e sociais), como uma aposta num reforço estrutural do papel nela atribuído
às cooperativas de interesse público (ou régies cooperativas), como
opção por um aprofundamento da natureza e da qualidade da gestão
cooperativa, bem como pela abertura a uma aproximação com as
microempresas em geral, num esforço de complementaridade que as
conjugue sistematicamente com a economia social, no plano local.
6.8. Existiu, ligada ao PS, a Fundação Azedo Gneco, uma
fundação que se ocupava do cooperativismo e do associativismo. Foi
extinta. Pelo papel que a Economia Social tem vindo a conquistar em
Portugal, na Europa e no Mundo, e pelo modo com é urgente que se insira
na vida do PS, compreende-se facilmente a proposta de recuperação da
Fundação Azedo Gneco.
Poderá ser uma fundação autónoma ou a criação de uma seção
autónoma dentro da Fundação Res Publica. Poderá ter a sua sede física
fora de Lisboa. Abrangerá toda a economia social.
6.9. Para que a economia social não continue a ser menosprezada e
incompreendida, com prejuízo para o seu desenvolvimento e para os seus
objetivos, é indispensável encará-la como objeto autónomo de estudo,
investigação e ensino.
Nomeadamente, é urgente autonomizar, nos concursos públicos de
projetos de investigação, uma área da economia social, delimitada e
identificada com base na ordem jurídica portuguesa.
7. Conclusão
Esta moção pretende alertar para a relevância da economia social,
quer como decisiva instância de solidariedade e desenvolvimento, quer
como elemento estruturante do socialismo democrático.
É urgente levar a sério a sua temática. Ignorá-la poderá traduzir-se
num prejuízo para o país, numa renúncia do PS a um maior enraizamento
social e a uma maior robustez política. E para o atual Governo poderá ser
a perda de um importante contributo para a prossecução dos seus objetivos
essenciais, poderá ser a renúncia a um fator estratégico de reforço da
maioria parlamentar que o sustenta.
sábado, maio 28
EUROPA
A Europa, na sua versão UE, estrebucha em suas contradições, exercitando a hegemonia das potências do centro, sem territórios contíguos para conquistar (a Rússia a leste nunca foi conquistável!), e sem exército capaz de qualquer empresa militar de vulto (a Inglaterra debate-se com a opção entre o continente ou o reencontro com sua velha tradição atlântica), centrifugando os países que compõem a sua periferia a sul, paradoxalmente, vizinhos de zonas politicamente destruturadas e socialmente pulverizadas. O centro da Europa (a Alemanha, os países do Benelux, e seus aliados a Norte) parece estar apostada em desguarnecer uma fronteira crucial para o desenvolvimento do seu próprio projeto hegemónico. A Rússia e os USA têm vindo, no plano estratégico, a cercar a Europa e os sistemas de alianças intraeuropeus, de que a UE é o supremo paradigma, oscilam ameaçando ruir. Haverá o "suplemento de alma" capaz de fazer resistir o projeto da UE, com seus princípios democráticos, a todas as ameaças? Ou ainda veremos surgir, como vencedores, os pregadores das vantagens da tirania? Com ou sem guerra? Esperemos pelo referendo no Reino Unido e pelas eleições na América. Logo depois se poderá fazer um balanço realista acerca das perspetivas de futuro.
segunda-feira, maio 23
Festejos futebolisticos
Nos últimos dias têm sido só festas futebolísticas, por entre as sombras de um processo de investigação a viciação de resultados, com receções oficiais e manifestações populares de norte a sul. Quem vence festeja e, como os céticos costumam dizer, o povo esquece as carências e as mágoas. Quem perde aspira à "vingança" na próxima oportunidade. O mais curioso das festas deste ano é a associação presidencial - dos clubes e da república - ao júbilo dos vencedores, em regra, sem uma palavra para os vencidos. Como se também nesta disputa, o fluxo futebolístico não fosse sempre composto por duas partes que se complementam: vencedores e derrotados. Por detrás de todos os contendores, que se digladiam pelos campos de futebol desse pais, existem paixões e imaginários que nem por se tratar de um jogo são menos importantes do que a luta pela dignidade no trabalho, pela defesa da liberdade e pela exaltação da cidadania. Nada contra as festas mas como se escreveu naquela ardósia da gelataria de Almoçageme, de uma familiar de um italiano fugido à ditadura fascista de Mussolini, Paz Respeito Liberdade.
sábado, maio 14
AEROPORTO GENERAL HUMBERTO DELGADO
Amanhã, domingo, o aeroporto da Portela, em Lisboa, vai ser batizado de Aeroporto General Humberto Delgado.
Um ato simbólico que enobrece quem decidiu, o apoia e acompanha. Humberto Delgado (General da Força Aérea) foi o inspirador, e criador, da Força Aérea Portuguesa moderna, assim como da aviação civil (desde a criação da TAP às infraestruturas aeroportuárias). Tendo participado, em jovem, no 28 de maio que derrubou a I República, era temido por Salazar que só andou de avião uma vez - um Lisboa Porto - para nunca mais!, que sempre afastou Delgado do exercício de altos cargos militares a que aspirava. Humberto Delgado era um militar de carreira, exigente, cumpridor e competente. Salazar deu-lhe a missão de negociar com os aliados as bases aéreas dos Açores, e assim foi; nomeou-o para cargos diplomático fora do país, e assim foi; por volta de 1957 desafiado por António Sérgio (ideia partilhada com o capitão Henrique Galvão que estava preso) candidatou-se à presidência da República, e assim foi. As eleições de 58 foram duras e o General afrontou, politica e fisicamente a ditadura, como ninguém antes havia feito, com forte apoio popular, a ditadura tremeu, e ficou conhecido como o General sem medo. Sendo um democrata liberal, desalinhado no plano partidário, ameaçado de prisão, quase sozinho, escapou a todas as perseguições, participou, desde 58, em todas as tentativas de golpe para derrubar a ditadura, até que a ditadura decidiu elimina-lo fisicamente, e assim foi. Em 13 de fevereiro de 1965, atraído a uma cilada, foi assassinado por uma brigada da PIDE, em Espanha junto à raia. Os criminosos, e seus inspiradores, após um julgamento interminável e cheio de peripécias indignas, ficaram impunes. Honra à sua memória.
Um ato simbólico que enobrece quem decidiu, o apoia e acompanha. Humberto Delgado (General da Força Aérea) foi o inspirador, e criador, da Força Aérea Portuguesa moderna, assim como da aviação civil (desde a criação da TAP às infraestruturas aeroportuárias). Tendo participado, em jovem, no 28 de maio que derrubou a I República, era temido por Salazar que só andou de avião uma vez - um Lisboa Porto - para nunca mais!, que sempre afastou Delgado do exercício de altos cargos militares a que aspirava. Humberto Delgado era um militar de carreira, exigente, cumpridor e competente. Salazar deu-lhe a missão de negociar com os aliados as bases aéreas dos Açores, e assim foi; nomeou-o para cargos diplomático fora do país, e assim foi; por volta de 1957 desafiado por António Sérgio (ideia partilhada com o capitão Henrique Galvão que estava preso) candidatou-se à presidência da República, e assim foi. As eleições de 58 foram duras e o General afrontou, politica e fisicamente a ditadura, como ninguém antes havia feito, com forte apoio popular, a ditadura tremeu, e ficou conhecido como o General sem medo. Sendo um democrata liberal, desalinhado no plano partidário, ameaçado de prisão, quase sozinho, escapou a todas as perseguições, participou, desde 58, em todas as tentativas de golpe para derrubar a ditadura, até que a ditadura decidiu elimina-lo fisicamente, e assim foi. Em 13 de fevereiro de 1965, atraído a uma cilada, foi assassinado por uma brigada da PIDE, em Espanha junto à raia. Os criminosos, e seus inspiradores, após um julgamento interminável e cheio de peripécias indignas, ficaram impunes. Honra à sua memória.
segunda-feira, maio 9
Agostinho Roseta
Agostinho Roseta morreu no dia 9 de Maio de 1995, na plena pujança das suas faculdades humanas, intelectuais e políticas. A sua morte prematura impediu que tivesse, muito provavelmente, exercido influência ainda mais marcante, a partir de 1995, no movimento sindical, no Partido Socialista e, quiçá, no governo.
Ele foi, no movimento operário e sindical, o activista mais importante do MES associando juventude (ou talvez melhor, jovialidade), capacidade teórica e sentido prático de organização sendo, ao mesmo tempo, persuasivo, sedutor e desprendido do poder.
Falar de pessoas é sempre muito delicado mas não receio cometer qualquer injustiça destacando a influência marcante de Agostinho Roseta na formação pessoal e política de um vasto e influente conjunto de dirigentes políticos e sindicais portugueses.
Lembro-o, além do mais, pela amizade sincera que sempre por ele nutri, aliás, retribuída, e porque foi ele o primeiro, entre todos nós, que mais cedo compreendeu o fracasso do projecto político do MES optando por dedicar as suas imensas capacidades de liderança ao movimento sindical.
O dia da sua morte coincide, ironicamente, com o dia de aniversário de minha mulher a quem pedi para reconstruir a última imagem que dele possuo: uma fotografia de grupo registada, certamente, em 27 de Outubro de 1994 na celebração do 4º aniversário de meu filho.
domingo, maio 1
1º de Maio - o MES saiu à rua
Passaram 42 anos. Hoje. A sigla do MES surgiu pela 1ª vez num pano improvisado, na manifestação do 1º de maio de 1974. Ideia do César de Oliveira, segundo Rosário Belmar da Costa (autora das fotografias).
quinta-feira, abril 28
ANIVERSÁRIO
“ – Meu corpo, quem mais receias?
- Receio quem não escolhi.”
Jorge de Sena, in Vilancete “Amor” – “Pedra Filosofal” – Poesia I
- Receio quem não escolhi.”
Jorge de Sena, in Vilancete “Amor” – “Pedra Filosofal” – Poesia I
terça-feira, abril 26
25 de abril - um dia depois
Ontem, dia 25 de abril, quer queiram ou não queiram, na efeméride da restauração da democracia e da liberdade, foi o dia de Marcelo, Presidente da República. Para muitos foi a surpresa, para alguns o engano, para a maior parte o reconforto. Por palavras, e gestos, Marcelo (como sempre será chamado) foi o reverso das ideias, e posturas, da direita revanchista. Num só dia assumiu, com meridiana clareza, o seu compromisso com o regime democrático – plural e dialogante – assim como honrou os ideais dos que lutaram, quase cinco décadas, contra a ditadura. E ainda mais homenageou, por inteiro, sem cinismo, alguns dos que encarnam essa luta: os militares de abril, Salgueiro Maia, Manuel Alegre e António Arnaut. Acham pouco? Eu acho muito! Em poucas palavras, não lhe tendo dado o voto, aqui lhe deixo a minha homenagem.
segunda-feira, abril 25
25 de Abril - uma cerimónia
Pela primeira vez desde o 25 de abril de 1974 assisti hoje ao vivo, na Assembleia da República à celebração oficial do seu 42º aniversário. Na verdade nunca havia desejado partilhar a celebração formal de uma revolta, que o povo transformou em revolução, no ambiente formal de um parlamento. Mas o Presidente da AR, Eduardo Ferro Rodrigues, no exercício das suas funções, decidiu por amizade antiga e forjada na luta politica contra a ditadura, ter a delicadeza de me endereçar o convite. Não o podia recusar e não me arrependo. Neste dia, tantos anos passados, pude apreciar a energia, moldada ao ambiente institucional da AR, de uma evocação do 25 de abril pela voz, e presença simbólica, de alguns dos seus mais destacados protagonistas. Muitas faces presentes, muitas memórias de ausentes, e sempre a liberdade forjada por uma multidão de gestos generosos que se não podem, nem devem, esquecer. A liberdade fica mais forte quando os democratas a cortejam e exaltam. Uma cerimónia onde fiquei a saber, quase sem margem de engano, que as duas mais altas figuras do estado, por caminhos diferentes, convergem na defesa dos valores da democracia politica e da liberdade, valores que o 25 de abril, que eu próprio vivi, restituiu à comunidade.
DIA 25 DE ABRIL DE 1974
No interior da “porta de armas” do quartel do Campo Grande (2º GCAM) – João Mário Mascarenhas (à esquerda) e eu próprio. Outras imagens inesquecíveis destes dias:
Os soldados deitados nas camaratas do quartel, em posição defensiva, vigiando a rua ou o recital de poesia do alferes Mário Viegas no refeitório do quartel.
O popular, de bicicleta, levantando nas mãos a bandeira nacional aos gritos: Liberdade, Liberdade, Portugal, Portugal!
Os soldados deitados nas camaratas do quartel, em posição defensiva, vigiando a rua ou o recital de poesia do alferes Mário Viegas no refeitório do quartel.
O popular, de bicicleta, levantando nas mãos a bandeira nacional aos gritos: Liberdade, Liberdade, Portugal, Portugal!
sábado, abril 23
sexta-feira, abril 15
Os dias após estado de graça
Passados os primeiros meses é sempre difícil para qualquer governo manter a áurea flamejante do sucesso. Sempre assim foi, e será, ainda para mais quando as soluções politicas de governo são originais e exigem debate permanente e concertação afinada, em democracia no pleno exercício das liberdades públicas. As diferenças de opinião, e a expressão livre das mesmas, é mil vezes melhor do que a tirania. Os governos democráticos, eleitos pelo voto popular, sob diversos modelos de representação, estão sempre sob escrutínio da opinião pública, da imprensa e da oposição politica. Assim deve ser. O que os distingue entre si, além das opções politicas, doutrinárias e ideológicas, é a capacidade de lidar com as diferenças não perdendo nunca a capacidade de fazer delas a sua força e não a sua fraqueza. Uma liderança forte não cede perante a maledicência. Para ser forte tem que ser capaz de manter intato o núcleo duro no qual repousa a sua força, ou seja a credibilidade dos seus principais dirigentes. Raras vezes estou de acordo com Fernando Ulrich que disse, numa entrevista recente, que o mais importante para a credibilidade da banca é a qualidade humana dos seus gestores. Assim é para tudo na vida e também, por maioria de razão, na politica.
segunda-feira, abril 11
Os amantes obscuros
Nossos sentidos juntos fazem chama:
e as fantasias nossas vão soltar
os desejos desertos de quem ama
e em verso ou coração se quis tornar.
Nossos sentidos são matéria prima
de um canto que é mais leve do que o ar;
o mundo todo não nos adivinha:
somos sombra sem luz, sequer luar.
Que o corpo quebre a noite desolada,
que o corvo ceda a voz à escuridão:
mil luzes são o nome da amada;
quem se perdeu no verso é sem perdão.
Luís Filipe Castro Mendes
(Poema para o projeto "A Poesia Está na Rua" - pelo 25º aniversário do 25 de abril de 1974 - de iniciativa do INATEL. Em homenagem ao cidadão e ao poeta que vai assumir a função de Ministro da Cultura.)
Fotografia de Hélder Gonçalves
e as fantasias nossas vão soltar
os desejos desertos de quem ama
e em verso ou coração se quis tornar.
Nossos sentidos são matéria prima
de um canto que é mais leve do que o ar;
o mundo todo não nos adivinha:
somos sombra sem luz, sequer luar.
Que o corpo quebre a noite desolada,
que o corvo ceda a voz à escuridão:
mil luzes são o nome da amada;
quem se perdeu no verso é sem perdão.
Luís Filipe Castro Mendes
(Poema para o projeto "A Poesia Está na Rua" - pelo 25º aniversário do 25 de abril de 1974 - de iniciativa do INATEL. Em homenagem ao cidadão e ao poeta que vai assumir a função de Ministro da Cultura.)
Fotografia de Hélder Gonçalves
sexta-feira, abril 8
Contas e contagens
Entre tantas minudências da nossa vida em sociedade deixamos, muitas vezes para trás, questões nas quais reparamos mas que, por uma qualquer razão, não tomamos a sério mesmo quando sentimos que nos prejudicam. Sei que um dos pontos do memorando da Troika, de má memória, se referia aos chamados bens e serviços não transacionáveis. Buscando, de forma expedita, uma definição são a maior parte dos serviços prestados a particulares, o fornecimento de bens públicos tais como o saneamento, a iluminação pública ou o fornecimento domiciliário de água, telecomunicações, etc.... Sempre que reparo mais atentamente nas faturas que os respetivos operadores fazem religiosamente chegar-me às mãos, me espanto, e comigo a maioria se espanta, com o elenco dos itens que respeitam ao bem ou serviço fornecido bem assim como às alcavalas que nada têm a ver com ele. Não dou exemplos que não vale a pena. Mais recentemente tem vindo a tornar-se escandaloso a meus olhos o modelo de faturação assente nas estimativas de consumo. Ora imagina uma casa com contador de consumo de água, no exterior e com acesso livre, que durante 6 meses não é contada pelos respetivos serviços municipalizados. Ao fim de um tempo surge uma conta astronómica para pagar. O cidadão paga, sob pena de corte e, mais tarde, repara, após a contagem, que, na prática, fez um empréstimo forçado aqueles serviços que durante meses beneficiam a seu belo prazer do dinheiro alheio. Estes bens e serviços são fornecidos a milhões de cidadãos por fornecedores, incluindo municípios, ou serviços municipalizados, a preços exorbitantes, em paridade de poder de compra, contas faturadas de formas pouco transparentes, e passam os anos, os governos, as vereações, sem se ouvir bulir uma agulha no caminho. Falem-me mais do panamá...
terça-feira, abril 5
O nosso tempo
As pessoas honestas, aquelas que ao longo da vida, com suas virtudes e defeitos, vivem e trabalham segundo princípios de convivência cidadã assentes no respeito pelo outro e por si próprias, sentem fugir-lhe o chão debaixo dos pés. Sei que as pessoas honestas são a maioria e não aceito os maniqueísmos que colocam os pobres no altar da probidade e os ricos na antecâmara do crime. Onde está a raiz do mal? A razão do aumento das desigualdades económicas e sociais? Do saque da riqueza alheia sob a capa da aplicação de regras impostas pelos mais fortes? Da guerra e do desrespeito pelas diferenças? Dizem alguns, ostentando estudos e pareceres que, afinal, hoje, o mundo até está melhor. Não creio que existam critérios de medida que permitam comparar as conquistas da ciência e da tecnologia de nossos dias, e sua apropriação pelas sociedades, com as grandes fomes e pestes do passado. O progresso só vale se medido pelo avanço da qualidade de vida do homem no seu espaço de vida natural e social. Se uma ultra minoria de cidadãos do mundo acumula riqueza material à conta da exploração, e em prejuízo, da esmagadora maioria todo os apelos à revolta podem ser apresentados como legítimo mesmo contra a democracia e a liberdade. Como fazer? Mantendo firme, em permanência e por todo o lugar, a luta contra a ignorância, o populismo, o fanatismo, o racismo, a xenofobia, a violência e o medo. O homem, sendo parte da natureza, sempre encontrou solução para os males do homem regenerando-se a si próprio e a natureza com ele. O nosso tempo será para os vindouros, como em todos os tempos, um tempo passado com seus defeitos e virtudes.
sexta-feira, abril 1
O FUTURO INCERTO
Toda a gente já entendeu que se adensam as nuvens no horizonte no que respeita à paz no mundo. É difícil, sem entrar em especulações, saber quais as origens da crise que ameaça os equilíbrios herdados no pós 2ª guerra. Há muita literatura séria acerca do tema e não quero elaborar teses simplistas. Mas a crise financeira mundial pós 2008, a reemergência do terrorismo como fenómeno banal, as guerras civis da Síria, Líbia, ..., com suas terríveis consequências, incluindo as ondas migratórias, as crises politica em grandes países emergentes como o Brasil, a "bolha" em enchimento na China, que um dia destes rebentará, o crescimento da extrema direita na Europa ocidental (em países da UE, vide Hungria e Polónia, por ex.), o fenómeno Donald Trump nas eleições presidenciais americanas, faz-me temer o pior. Qualquer vaga esperança de um paraíso decalcado nos 30 anos gloriosos acabou. Preparemos-nos para um tempo de violências e de incertezas, a não ser que uma nova vaga de dirigentes políticos, com envergadura de verdadeiros homens de estado, se revele entre as novas gerações nascidas após o inicio dos anos 90, e ganhe as rédeas do poder.
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