segunda-feira, fevereiro 20

No sul o sol impõe as suas regras

A natureza despe-se sem pudor apesar do olhar dos homens. Nasci com a escassez da água por entre os medos da seca e da fome. Mas a natureza não detém a sua marcha perante os receios do homem. * No sul o frio é suave e temperado pelo mar e pela vizinhança de África. A minha terra fica mais próxima de África do que de Lisboa. Sempre nos esquecemos disso quando pensamos nos espanhóis. * A sul a neve caiu de 1 para 2 de Fevereiro de 1954. Vi-a cair pela primeira vez debruçado de espanto da janela com vista para o meu mundo. A rua ficou branca e fiz bolas de jogar. Mas a neve na minha memória é quente. * A nespereira familiar da minha infância prepara-se para dar frutos. Imagino o seu lugar no quintal de onde nunca saiu e se apresenta sempre viçosa às gerações que passam. Ela renova-se e parece imortal. * A figueira do caminho do campo despida de folhas olha-me curiosa. O frio fê-la ficar nua e reparei que não se mexia nem tiritava nem sequer temia a sua morte anunciada. Ela sabe que no próximo verão ainda vai dar frutos suculentos. * As árvores são um mundo de vida e de afectos para os artistas. Poetas, pintores, músicos, cineastas, fotógrafos ... muitos dos grandes artistas cantaram a natureza através das árvores. * A sombra de cada árvore é diferente conforme a sua natureza. Cada sombra projectada por uma árvore tem vida própria e uma personalidade diferente conforme as espécies. As sombras das árvores são todas diferentes. * Ir para a sombra era uma obsessão da minha infância. No sul o sol impõe as suas regras. As árvores no verão eram o lugar da sombra antes de serem o lugar dos frutos e da subsistência. Fotografia de amistad

domingo, fevereiro 19

SUL

uns breves dias de regresso à cidade natal, ao sul respira-se o mesmo ar de sempre, os lugares estão diferentes mas a meus olhos iguais, no tempo da alegria convencional,

sábado, fevereiro 18

HABITAÇÃO

"Pacote do Governo para habitação recebido com críticas por economistas, fiscalistas, arquitetos, investidores e proprietários", (In Expresso). Chovem as críticas à direita e à esquerda mas, sem prejuízo dos méritos das medidas anunciadas, a questão politica é simples de enunciar: o governo retomou a inicitiva e a oposição passou à defensiva. A ver vamos...

sexta-feira, fevereiro 17

ELES ANDAM POR AÍ

«Rolão Preto, ao entrar no Palácio das Exposições, saudado romanamente pelos camisas azuis em guarda de honra». [18 de Fevereiro de 1933, fotografia a preto e branco - Revolução, n.º 292, Lisboa, Portugal - Fotografia publicada no Revolução - Diário Nacional-Sindicalista da Tarde (1932-1933), de segunda-feira, 20 de Fevereiro de 1933.] O banquete de homenagem a Rolão Preto, de 18 de Fevereiro de 1933, comemorava o primeiro aniversário da publicação do diário Revolução, no início subintitulado Diário Académico Nacionalista da Tarde, cujo primeiro número tinha saído em 15 de Fevereiro de 1932. In “O Portal da História” As corporações só conhecem a linguagem da força. Não vale a pena escrever lindas palavras em barras de sabão. É preciso esculpi-las no granito afrontando a dureza das pedras endurecidas pelo tempo. Os homens perdem a capacidade de se libertar da servidão quando nela nasceram e foram educados para obedecer. Ou quando já se esqueceram da servidão no que ela tem de mais abjecto. É o caso de Portugal e da maioria das democracias da Europa Ocidental.

quinta-feira, fevereiro 16

AMIGA, no te mueras.

Pablo Neruda parece que foi envenenado, dizem os peritos, e não me espanta que seja verdade.

terça-feira, fevereiro 14

ESPALDÃO

Ao cimo da rua onde nasci, do outro lado da estrada da circunvalação, ficava o “Espaldão”. Era pequena a distância e foi lá que vi pela primeira vez na minha vida rãs a coaxar nas poças e foi lá que tomei a noção de espaço livre. Aprendi o medo de me encontrar perdido, de regressar a casa tarde demais, de ser repreendido, de me esquecer do tempo, ser apanhado numa emboscada ou correr os perigos que afinal não existiam. As redondezas do “Espaldão”, até aos meus oito anos, compreendiam toda a minha vida: a casa onde nasci, as ruas e os becos, os vizinhos, o estabelecimento e o armazém, o ganha-pão da família, o barbeiro, a feira do Carmo, a igreja, a carroça dos cães, os vendedores ambulantes, a rua de terra, o cheiro das estações e, lá mais acima, um lugar de mistérios. O “Espaldão”, ali ao lado da minha cidade, foi a minha primeira natureza antes de conhecer o que era a natureza. Tudo tão perto e tão longe na cidade que era um lugar limitado pelo meu olhar mas sem limites para a minha liberdade.

segunda-feira, fevereiro 13

MEMÓRIA

O II Congresso do MES realizou-se na FIL, à Junqueira, em Lisboa, nos dias 13, 14 e 15 de Fevereiro de 1976, no rescaldo dos acontecimentos do 25 de Novembro de 1975.

domingo, fevereiro 12

IMIGRAÇÃO

Tema muito interessante e importante no mundo contemporâneo que me tem interessado. Este interesse nasceu a partir de um trabalho empenhado que me obrigou a abordar, com frequência, a questão do designado "envelhecimento demográfico". Trata-se, pois, de uma abordagem que me levou à questão económica. As economias ditas desenvolvidas do ocidente são atingidas pelo fenómeno do envelhecimento das populações. Carecem de importar mão de obra. Não de forma pontual, localizada ou temporal, mas de forma continuada e massiva. É um processo irreversível. Nas sociedades ocidentais já não há capacidade de reposição das gerações. Por isso a nossa sociedade só pode rejuvenescer através da imigração. A nossa sociedade já é, e será cada vez mais, composta de diversas cores, religiões, ritos e culturas. Em Portugal existe uma forte tradição de emigração. Hoje, ao contrário, os portugueses são confrontados com um número crescente de estrangeiros com os quais têm de conviver. É sem dúvida um tema que tenderá a tornar-se central na disputa política. No debate dos direitos humanos e de cidadadia. Nas abordagens sociológicas. Sei que tem sido um tema debatido com intensidade na blogofera. Ninguém pense que existe uma qualquer saída radical para a questão da imigração. Tema a revisitar em breve. (Janeiro de 2004).

sábado, fevereiro 11

KANT - um chumbo humilhante!

Kant, "o filósofo dos direitos humanos", morreu a 12 de fevereiro de 1804. Pelo aniversário da sua morte vou voltar a contar uma "pequena história" pessoal na qual Kant tem o lugar de protagonista. "Foi uma das maiores humilhações da minha vida. Explico em duas palavras. No meu 7º ano de liceu, à época, ano terminal do secundário, faziam-se exames finais em algumas disciplinas incluindo filosofia. A nota da prova escrita necessária para dispensar da oral era 16. Obtive, na escrita, 15. Estranho! Na realidade ninguém obtinha, na escrita, 15. Ou se obtinha 14 ou então 16. Fui, assim, "condenado" a ir à oral com 15. Na oral fui confrontado com a primeira (e única) pergunta: fale-me do "imperativo categórico" de Kant. Iniciei uma dissertação acerca do tema! A examinadora considerou a resposta insuficiente. Insistiu no tema. Eu titubeie. Não era (nem sou) um especialista em Kant mas - que diabo - tinha estudado a matéria. Mas a examinadora é que não mudava de tema! Fale-me do "imperativo categórico" de Kant! Se bem me lembro tentei de novo satisfazer a exigência. Em vão! Percebi, então, que nada iria resultar. Estava condenado a chumbar fosse qual fosse o meu desempenho! Levantei-me e saí da sala perante o espanto dos meus colegas que assistiam à cena. Desci a avenida e fui tomar um café na esplanada da Gardy, que ainda lá está apesar dos factos se terem passado à quase 40 anos, na baixa de Faro. O chumbo era certo! Não valia a pena ir ver a pauta. Eu era um pouco irreverente (talvez mesmo bastante irreverente) é verdade! Não dominava de cor as matérias todas! É verdade! Mas na segunda época de exames obtive na escrita a nota de 18 na mesmíssima disciplina de filosofia! Assunto arrumado. A professora que me sujeitou aquela humilhação oral já faleceu. Nunca cheguei a saber, nem saberei, das verdadeiras razões daquele inusitado chumbo! Mas hoje ao ler o trabalho, limpo e clarividente, do Público, acerca de Kant, a minha memória retomou o caminho da explicação para o chumbo: "Com o seu "Imperativo Categórico" Kant estabeleceu um novo princípio ético: introduziu a ideia de que a moral é algo inerente à estrutura da razão, não decorrendo portanto, por exemplo, de imperativos religiosos. Segundo ele, cada homem deverá actuar de forma a que cada um dos seus actos possa ser tomado como princípio universal. Cada um desses gestos é um objectivo e um fim em si mesmo, não um meio para um outro fim (como o "Bem" praticado na religião católica que surge como uma forma de atingir a salvação). Para Kant, o gesto imoral acontece quando alguém tenta estabelecer para os outros um padrão de comportamento diferente daquele que ele próprio adopta." Hoje estou convicto (não me atrevo a dizer: estou certo!) que a razão do chumbo naquela oral está sintetizado neste texto, de Vanessa Rato, no Público, acerca do "imperativo categórico". Hoje, como ontem, o mundo está repleto de "gestos imorais", ou seja, de gente que julga o comportamento do outros por critérios que se dispensam de aplicar a si próprios."

sexta-feira, fevereiro 10

PORQUE ESCREVO I (Vinte Poemas de Cuba XII)

 

Kate Breakey


Escrever para quê?
É como o pó que piso
Areia fina mármore liso
Escrever para quê?
É como supor que existo
E para alguém sobrevivo
Escrever para quê?
Minto. É como acreditar
Que a eternidade existe

25/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (12). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba.]

HUMBERTO DELGADO - HONRA À SUA MEMÓRIA

Na próxima segunda feira, dia 13 de fevereiro, passam 58 anos sobre o dia em que o General Humberto Delgado foi, cobardemente, assassinado pela PIDE.

O General Humberto Delgado foi um distinto militar de carreira, apoiante do golpe militar do 28 de Maio, e da ditadura entre 1926 e o dealbar dos anos 50, tendo acabado por sacrificar a carreira, e a própria vida, no combate sem tréguas ao regime fascista, após a rutura política com Salazar, a partir das eleições presidenciais de 1958, às quais se candidatou, como independente, por vontade própria. Foi ele o verdadeiro precursor do 25 de Abril de 1974 pois defendeu (quase sempre) que a ditadura só cairia através da ação militar, que haveria de ser protagonizada pelas forças armadas, apoiadas pelo povo, o que viria, de facto, a acontecer pouco menos de nove anos após o seu assassinato que ocorreu em 13 de Fevereiro de 1965. Delgado foi, politicamente, um liberal democrata, fortemente influenciado pela cultura anglófona, e pela sociedade americana (o que lhe valeu o magnífico epíteto de “General Coca Cola”) influências assumidas ao longo de várias missões profissionais – em representação do estado português - na Inglaterra, Estados Unidos e também no Canadá. Delgado foi um político que nunca deixou de ser General e de cuja áurea antissalazarista a esquerda, do seu tempo, se quis apropriar sem, na verdade, partilhar das suas ideias e ações, que desprezava apodando-as, pelo menos, de aventureiras. O General Humberto Delgado foi atraído a uma cilada e assassinado pela PIDE, por espancamento, e não a tiro, com conhecimento de Salazar, que sempre encobriu este hediondo crime, sob as mais variadas artimanhas, no plano interno e da diplomacia, entrando, inclusive, em rota de colisão com Franco. O julgamento dos autores materiais do crime – que não dos seus autores morais que sempre foram poupados pela democracia – em Tribunal Militar – foi uma triste farsa que não permitiu apurar a verdade e muito menos punir os criminosos. Todo o processo desde o assassinato de Delgado, passando pelo encobrimento do crime, à descoberta dos corpos, à investigação judicial e perícias forenses, realizadas pelas autoridades espanholas, até à condução do processo judicial em Portugal, julgamento e recursos judiciais, constitui um caso exemplar que permite, nos planos político e judicial, entender muitos aspetos da realidade contemporânea portuguesa e as peripécias de processos que ainda correm os seus trâmites.

quarta-feira, fevereiro 8

À Beira do Atlântico (Vinte poemas de Cuba XI)

Adolfo Carli


À beira do Atlântico o mar do sul
abrasa a carne mais que a vida.
À beira do Atlântico fala-se outra
língua, acre, ora livre ora tolhida,
entre sorrisos de dentes brancos.
À beira do Atlântico o ar ardente,
carregado de salmoira, marulhar
reluzente lembra-me outro mar.

25/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (11). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba.]

UCRÂNIA/EUROPA

 



"Zelenski pide desde Londres al Parlamento británico que respalde el envío de cazas de combate a Ucrania", in El Pais

Receção ao mais alto nível de Zelenski no Reino Unido, segue-se a UE, o que quer dizer o mais alto empenho da Europa no apoio à Ucrânia no seu caminho para um regime democrático e integração económico politica na UE.  No fim deste caminho se vier a ter sucesso terá ocorrido uma profunda transformação da Europa.  A ver vamos!

terça-feira, fevereiro 7

EPIGRAMA II (Vinte poemas de Cuba X)

Brigitte Carnochan


Uma boa notícia chegou de longe,
num dia qualquer e tarde demais
far-se-á justiça; e regresso a casa.

24/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (10). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba.]

domingo, fevereiro 5

Epigrama I (Vinte poemas de Cuba IX)

John Chervinsky


Gostava de ser exacto, preciso e conciso.
E a vida? Onde encontrar lugar para a vida?

24/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (9). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba.]

sábado, fevereiro 4

4 fevereiro 1927 - Revolta no Algarve

 

Leia-se no Almanaque Republicano o relato breve da revolta de Fevereiro de 1927 no Algarve. Da lista dos revoltosos presos, após o fracasso, ressoam na minha cabeça alguns apelidos conhecidos.

No dia 4 de Fevereiro de 1927, rebenta a revolta no Algarve. Ao largo de Faro, a canhoneira Bengo, comandada pelo 1º tenente Sebastião José da Costa e tendo a bordo o comité revolucionário constituído ainda pelo Dr. Manuel Pedro Guerreiro e o Dr. Victor Castro da Fonseca, começa a bombardear a cidade de Faro. Estes seriam os principais elementos revoltosos que comandavam alguns militares da marinha, da GNR, elementos do regimento de caçadores nº 4, de Tavira e algumas dezenas de civis.

sexta-feira, fevereiro 3

Tão tarde (Vinte poemas de Cuba VIII)

 


Kerry Skarbakka

Escrevo tão tarde sem antes
me ter dado conta de quão tardia
era a minha vontade de dar forma
de versos ao que do passado havia
feito o labirinto que me habita.

24/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (8). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba.]

CONTRADIÇÕES


Um Olhar da Inês – Fotografia de Hélder Gonçalves


“”Antisthène “É verdadeiramente real fazer o bem e ouvir dizer mal de nós.”

“Cf. Marco Aurélio: “Seja onde for que se possa viver, pode viver-se bem.”

“Aquilo que detém uma obra projectada transforma-se na própria obra”

Aquilo que barra o caminho faz avançar.

Terminado em Fevereiro de 1942.””

Albert Camus

Caderno” n.º 3 (Abril de 1939/Fevereiro 1942) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

(Camus assinala que o “Caderno" n.º 3 termina aqui. No início de 1942 tem uma recaída da tuberculose e viaja de Orão, acompanhado da mulher, para o sul de França – Le Panelier, próximo de Saint-Etiénne.)

quinta-feira, fevereiro 2

Dez versos - (Vinte poemas de Cuba VII)



O que nos mata é solidão povoada.

É estarmos juntos e separados
É sermos sós, mesmo ajuntados
É nada dizer de olhos lavados
É ouvir outros na voz dos amados
É sentir solidão sendo povoados.

O que nos mata
é tanta gente enchendo a solidão.

Assim envoltos de gente em revolta
Ausente do presente que lhe falta
Sermos crentes no porvir a perfeição
O que é afinal o que que nos mata?
Solidão povoada é o que nos mata.

24/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (7). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba. Neste caso tomando, como epígrafe, dois versos do poema “For whom the bell tolls, com incidências do “cogito” cartesiano”, de 23/8/1965].

RÚSSIA/ EUROPA - UE


 Von der Leyen leva equipa a Kiev para aprofundar a cooperação com o Governo do país (Imagem e título de "Público").

Ainda mais, a partir de hoje, uma vitória da Rússia será uma derrota da Europa e vice versa. 

quarta-feira, fevereiro 1

À vista do mar (Vinte poemas de Cuba VI)

 

Marialuisa Morando


À vista do mar, ao longe
ecoam os sons antigos
À vista do mar, as águas
desenham os sons amigos
À vista do mar, ao perto
da miséria sobram sorrisos
À vista do mar, os tons
azuis reluzentes postigos

24/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (6). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba.]

NEVE A SUL

No extremo sul de Portugal, à beira mar, terra de temperatura moderada, o surgimento da neve foi um acontecimento inusitado que perdurou na memória de todos.

Eis o excerto de "O Aprendiz de Feiticeiro", belo livro do grande poeta português Carlos de Oliveira, nascido no Brasil, a propósito daquele acontecimento memorável:

“Contudo, relato a seguir o que me aconteceu na noite de 1 para 2 de Fevereiro de 1954, quando venci por fim a proibição interior e alinhei sem emendas ou hesitações os sessenta e três versos da primeira fala de “O Inquilino”….”

(…)“E entramos por fim no que mais interessa: acabado o impulso das primeiras palavras, afastei a cadeira distraidamente e levantei-me, tentando delinear o seguimento da peça, cuja ideia me surgira só no acto de escrever. Nenhum plano anterior, nenhum esboço. Levantei-me e andei para a janela, metido na pele do inquilino, perguntando a mim mesmo (ou a ele) se não haveria outras perguntas a fazer antes duma decisão que podia ferir o equilíbrio do mundo ou coisa parecida. Foi quando a madrugada explodiu numa féerie mais ou menos nórdica, como se tivesse realmente bastado mexer na cadeira, na ordem pré-estabelecida do quarto, para desencadear o imprevisto: uma tempestade de neve em Lisboa.” (…)

terça-feira, janeiro 31

Ambientes (Vinte poemas de Cuba V)



Cig Harvey

O vento corre perfeito
a borda do mar aquieta
e desenha o fresco da manhã
como uma limonada seca
que se bebe de um golo
e a faca limpa o fruto

24/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (5). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba.]

segunda-feira, janeiro 30

Apátrida (20 poemas de Cuba IV)

 


Whitney Hubbs

Vistos de longe os trastes esquecem
tornam-se um ponto morto, me-
mória que se devorou a ela pró-
pria, a vida torna-se presente sem
passado, como te compreendo bem,
os versos apátridas são o teu
autêntico cântico nacionalista
contra o esquecimento da própria
voz que fala a língua já esquecida

23/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (4). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba.]

O meu irmão Dimas - uma lembrança


As voltas da vida levaram a que meus pais viessem a adoptar, antes do tempo, o modelo quase perfeito da família nuclear. Um casal e dois filhos. Mas é interessante que já os pais de meus pais haviam gerado famílias pequenas: os meus avós paternos com três filhos e os maternos com dois. O modelo da família alargada havia ficado pelas gerações anteriores.


O meu irmão Dimas nasceu onze anos antes de mim. Ele é contemporâneo dos inícios da guerra civil de Espanha e eu sou um “baby boomer” típico. Não sou capaz de imaginar a intensidade do impacto do meu nascimento tardio no equilíbrio familiar.

Mas é um facto que o meu irmão não concluiu o liceu tendo os meus pais que buscar uma via alternativa para a sua formação. Por ruas e travessas chegaram a um caminho que deu certo. O meu irmão, ainda antes de 1955, partiu para o Porto para aprender, ao mesmo tempo, dois ofícios: óptico e gravador.

Lembro o dia da sua partida. Naquela época a distância entre o extremo sul de Portugal e o Norte, entre Faro e o Porto, era incomensuravelmente maior do que é hoje. O meu irmão Dimas, com menos de vinte anos, instalou-se no Porto, tendo encetado a sua aprendizagem na “Óptica Retina”.

Aprendeu bem todos os segredos dos ofícios a que se propôs dedicar-se o que lhe permitiu durante quase cinquenta anos fazer um percurso ascendente, à maneira de um “self-made-man”, que lhe havia de granjear prestígio profissional e social além de prosperidade económica.

Como escrevi, por alturas da sua morte, prematura e injusta, é um caso de alguém que subiu a pulso na vida, com o esforço do seu trabalho, o apoio inicial dos pais, e uma forte exigência na qualidade do seu próprio desempenho pessoal e profissional.

Os meus pais, forçados pelas circunstâncias da vida, com alegrias e amarguras, fizeram, em relação ao futuro dos filhos, o melhor que puderam. E, no essencial, acertaram. Ao mais velho uma profissão, ao mais novo um curso superior. Depois cada um que assumisse, com liberdade, o seu próprio futuro.

domingo, janeiro 29

MAR (Vinte poemas de Cuba III)

Ilustração daqui

O mar profundo é igual a todos
os mares menos o ar adocicado
que se derrama salgado e grosso
tomando todas as cores tropicais
quando pela tarde alta declama
uma sinfonia de reluzentes raios
e subitamente a chuva irrompe
inundando a terra do mar ao cais

23/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (3). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba.]

OH MINHA SENHORA Ó MINHA SENHORA

 


Oh minha senhora ó minha senhora oh não se incomode senho-
ra minha não faça isso eu lhe peço eu lhe suplico por Deus nosso
redentor minha senhora não dê importância a um simples mortal
vagabundo como eu que nem mereço a glória de quanto mais
de...não não não minha senhora não me desabotoe a braguilha
não precisa também de despir o que é isso é verdadeiramente fora
de normas e eu não estou absolutamente preparado para seme-
lhante emoção ou comoção sei lá minha senhora nem sei mais o
que digo eu disse alguma coisa? sinto-me sem palavras sem fôle-
gos sem saliva para molhar a língua e ensaiar um discurso coeren-
te na linha do desejo sinto-me desamparado do Divino Espírito
Santo minha senhora eu eu eu ó minha senh...esses seios são
seus ou é uma aparição e esses pêlos essas nád...tanta nudez me
deixa naufragado me mata me pulveriza louvado bendito seja
Deus é o fim do mundo desabando no meu fim eu eu...

Carlos Drummond de Andrade 

sábado, janeiro 28

Tempo (Vinte poemas de Cuba II)

 


Fernando Delgado - Cuban-American, b.1957


Não sei ao certo se ainda sonho
Realizar algum projecto não sei
Ao certo o tempo que me sobra
Do tempo gasto não sei ao certo

23/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (2). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba.]

Luís Moita

O Luis Moita morreu. Quantos anos de cumplicidade e de lutas. A defesa das mais nobres causas a que dedicou a sua vida, justiça e liberdade, exigem que honremos a sua memória. 

sexta-feira, janeiro 27

Contradição (Vinte poemas de Cuba I)

 

Tria Giovan


Se chegamos longe o tempo
por vir se encurta
Se vemos mais além o silêncio
muda de qualidade
Se amamos a liberdade porém
que fazer sem ela?

23/7/2007

[“Vinte Poemas de Cuba” (1). Escritos a lápis nas páginas do livro “Poesia III”, de Jorge de Sena, nos dias de uma visita a Cuba.]

Shostakovich 7th Symphony

quinta-feira, janeiro 26

Treze poemas de agosto XIII



Se os dentes cravo no fruto

E o sabor se entranha sinto

Do prazer os primórdios

E já é ficar a saber muito


Se o corpo enterro no mar

E sinto o frio se entranhar nele

Já sei do prazer o suficiente

Para o mar desejar sempre


Se o mar se espraia ardente

Nas areias finas que gerou

E me abraça assim quente

Que mais desejar do mundo?


Faro, Agosto de 2008

quarta-feira, janeiro 25

Treze poemas de agosto XII


Chaco Terada


Após muitos dias de jejum

soltam-se umas palavras

alinhadas ao som da ponta

larga e romba do lápis

que surgindo do nada

me trazem de volta

ao prazer da escrita

Faro, Agosto de 2008

HOUVE EM TEMPOS UMA GUERRA

 


(...) As pessoas queixam-se de que tratamos os animais como objectos, mas, na realidade tratamo-los como prisioneiros de guerra . Sabes que, quando, pela primeira vez, se abriram ao público os jardins zoológicos, os zeladores tinham de proteger os animais dos ataques dos visitantes? Os visitantes achavam que os animais estavam ali para serem insultados e abusados, como prisioneiros depois da vitória. Houve, em tempos, uma guerra contra os animais a que chamámos caça embora de facto, guerra e caça sejam a mesma coisa (Aristóteles percebeu-o com toda a clareza). Essa guerra durou milhões de anos. Só há uns séculos atrás a ganhámos quando inventámos as armas. Só depois da vitória estar consolidada é que nos pudémos dar ao luxo de cultivar a compaixão. Mas a nossa compaixão é muito superficial. Por baixo dela existe uma atitude mais primitiva. O prisioneiro de guerra não pertence à nossa tribo. Podemos fazer dele o que quisermos. Podemos sacrificá-lo aos nossos deuses. Podemos degolá-lo, arrancar-lhe o coração, lançá-lo às chamas. Quando se trata de prisioneiros de guerra não há leis.

J.M. Coetzee, Elisabeth Costello, romance ed D. Quixote, p 106,
in cap. 4 As Vidas Dos Animais, Os poetas e os animais.

terça-feira, janeiro 24

Treze poemas de agosto XI


Fotografia de Hélder Gonçalves (recorte)


No espaço da celebração

dos antepassados

vagueiam meus passos

na busca humilde

da sombra.


Deslizam as silhuetas

no largo da igreja

rostos frios

na hora do encontro

com a morte.

Faro, Agosto de 2008

segunda-feira, janeiro 23

KAVAFIS

Tenho observado com frequência a pouca atenção que as pessoas dão às palavras. Explico-me. Um homem simples (com simples não quero dizer parvo, e sim não-eminente) tem uma opinião, critica uma instituição ou crença geral; sabendo que a maioria das pessoas não pensa assim, cala-se, na suposição de que não vale a pena falar, pois o que pudesse dizer não mudaria coisa alguma. Trata-se de um erro grave. Eu ajo de outro modo. Por exemplo, sou contra a pena de morte. Sempre que me aparece uma oportunidade, manifesto-me a respeito, não porque ache que, com isso, o Estado a vá abolir, mas porque estou convencido de que assim contribuo para o triunfo das minhas ideias. Pouco me importa que ninguém concorde comigo. O que eu disse não foi em pura perda. Talvez alguém repita minhas palavras e elas cheguem a ouvidos que as ouçam e as perfilhem. Quem sabe se futuramente algum daqueles que ora discordam de mim não se vai lembrar, numa ocasião propícia, daquilo que eu disse e convencer-se ou pelo menos sentir abalada sua opinião em contrário. - O mesmo vale para diversas outras questões sociais, das que exigem acção. Reconheço que sou tímido e não sei agir. Por isso limito-me a falar. Não acho, porém, que minhas palavras sejam em vão. Outro agirá, mas essas palavras – de mim, o tímido, - terão facilitado a acção e limpado o terreno.

KAVAFIS, K. Reflexões sobre Poesia e Ética. SP: Ática, 1998

Treze poemas de agosto X

Fotografia de Hélder Gonçalves (recorte)


Um pequeno poema

luxuriante.

Um ponto de luz

Incandescente.

É o silêncio ao fundo

da palavra

que não mente.

Faro, Agosto de 2008

domingo, janeiro 22

Treze poemas de agosto IX

Fotografia de Hélder Gonçalves (recorte)


Não me interessa o jogo

puro das palavras

deslizando

no papel branco da folha

que recorto e sujo

com a leveza da pena

que uso.

Não escrevo como quem bebe

um licor e se inebria

mas inebria-me a corrente

das palavras que escrevo.

Faro, Agosto de 2008