“É verdade, o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média
chamavam o «desconforto»? Em geral, esqueciam-nos aí para o resto da vida. Esta
cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficientemente
alta para se poder estar de pé, nem suficientemente larga para se poder estar
deitado. Tinha-se de adoptar o género tolhido, viver em diagonal; o sono era uma
queda, a vigília um acocoramento.”
In “A Queda”, Albert Camus, na data em que, cinquenta
anos atrás, recebeu o Nobel da Literatura.
Não sei
se é vantajoso para Portugal negociar com Chávez mas todos os países negoceiam
com todos e, se forem grandes potências, ninguém leva a mal. A natureza dos
regimes políticos interessa pouco aos negócios. De outra maneira nenhum país
democrático negociava com a China que não é um país democrático. Porque não com
a Venezuela que é um país democrático? Imaginem!
Não sei se é vantajoso
para Portugal gastar energias na promoção de uma cimeira dos países da União
Europeia com os países africanos. Uma parte significativa dos regimes políticos
dos países africanos são cleptocracias, oligarquias, ditaduras e o mais que se
possa imaginar para pior (com excepções!). Neste caso, mais uma vez, a natureza
dos regimes políticos interessa pouco aos negócios.
Não sei se é
vantajoso para Portugal apostar na consolidação e aprofundamento da União
Europeia e suponho que, mesmo dentro do partido do governo, campeiam dúvidas
acerca da bondade do projecto europeu. Pois se a natureza dos regimes políticos
interessa pouco aos negócios que razão há para partilhar um espaço supra
nacional que exige um esforço de partilha da liberdade e da
democracia?
Não sei se é vantajoso para Portugal dispor de um governo que
se sujeite ao julgamento das urnas, ou seja, um governo democrático se, como diz
a voz do povo e a de alguns intelectuais ultra pessimistas, como Medina
Carreira, os governos, nos últimos trinta anos, são todos iguais na incúria,
incompetência e desleixo? A mensagem subliminar deste discurso é a de que a
natureza dos regimes políticos interessa pouco aos negócios e, ainda menos, aos
cidadãos.
Há cada vez mais gente que defende que não é possível em
Portugal discutir seja o que for acerca do futuro, o futuro dos portugueses,
pois o tempo, no nosso tempo, corre a uma velocidade vertiginosa e os políticos
eleitos, seguindo as regras da democracia representativa, tornam-se lívidos
perante os ciclos eleitorais e a ditadura mediática, reduzindo a ética
republicana a um minúsculo emblema que ostentam na lapela.
Se a maioria
dos cidadãos está apartada da política e, na sua mão, somente luze uma vaga
esperança em assegurar a sobrevivência material, não sei se não seria vantajoso
para Portugal “
convocar as cortes” para debater, enquanto é tempo, a
própria democracia em prol de uma reforma profunda do regime democrático, a
duras penas conquistado.
Ao contrário de todas as evidências a natureza
dos regimes políticos interessa aos negócios e, mais do que aos negócios,
interessa aos cidadãos e só o inconformismo que ouse colocar a democracia em
debate pode salvar a própria democracia.
[Artigo
publicado na edição de hoje do Semanário Económico – versão
integral.]
(Em 7 de dezembro de 2007 refletindo acerca de uma questão que sendo colocada hoje, embora noutros termos, causa grande escândalo...)