terça-feira, julho 9

PLÁCIDO DOMINGO

EVIDÊNCIAS - XIX


Perdidas uma a uma as coisas todas,

os corpos e as estrelas, flores e rios
na construção do espírito sonhado,
humanamente vos haveis unido,

para de além de tudo ainda regerdes
apenas pó a ser cindido um dia,
que o que ficava, dissoluto o mundo,
a morte humana assim éreis num só,


ó deuses, formas de existir, presença,
tão sempre jovens e dourados mortos
de morte que é sol-posto ou madrugada,

ó deuses do universo! – a tarde cai,
e, em vagas vozes de crianças rindo,
cindido tudo, ó deuses, regressai.

16-4-1954

domingo, julho 7

ERA UMA VEZ UM PEQUENO INFERNO E UM PEQUENO PARAÍSO ...

"Era uma vez um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno a ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-l...as é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. A parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo - diziam. E depois amavam-se depressa, e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.”

Herberto Helder

quarta-feira, julho 3

EVIDÊNCIAS - XVIII


Deixai que a vida sobre nós repouse
qual como só de vós é consentida
enquanto em vós o que não sois não ouse

erguê-la ao nada a que regressa a vida.
Que única seja, e uma vez mais aquela
que nunca veio e nunca foi perdida.

Deixai-a ser a que se não revela

senão no ardor de não supor iguais
seus olhos de pensá-la outra mais bela.

Deixai-a ser a que não volta mais,
a ansiosa, inadiável, insegura,
a que se esquece dos sinais fatais,

a que é do tempo a ideia da formosura,
a que se encontra se se não procura.
26-3-1954

Jorge de Sena

terça-feira, julho 2

POLÍTICA - 11

Um pico de crise política emerge e dificilmente se antevê a saída dela. A tempestade perfeita de consequências difíceis de prever. Escasseiam as palavras para a descrever. A democracia sem partidos, ou de partido único, não é democracia, é tirania. Não há volta a dar. É preciso reinventar um modelo que, faz muito tempo, assentava no que se chamava “centrismo radical”. Os partidos que foram gerados pelos processos de libertação da tragédia da 2ª guerra e/ou das ditaduras, mais ou menos tardias, (algumas da europa meridional) estão gastos, geraram em todos os países (mesmo nos do norte da Europa) dinâmicas de reprodução ideológica, e de aparelho, que já não são expressão satisfatória das aspirações de largas camadas das populações. Sem afastar os partidos será necessário criar novas formas de expressão da vontade popular, novas conjugações que assimilem a democracia digital, a democracia representativa e a democracia direta (ou participativa, para usar um termo mais moderado). Tudo demora tempo e por vezes exige convulsões. Ao que assistimos hoje, não só no ocidente, como no oriente e nas américas, em todo o mundo, é a uma revolução que um dia será conhecida por uma designação ainda não encontrada com exatidão.   

segunda-feira, julho 1

"Terra e a Morte"

Terra vermelha terra negra
que vens do mar
dos campos queimados,
onde estão as palavras
antigas e as fadigas do sangue
e gerânios entre os rochedos –
não sabes quanto tens
de mar palavras e fadiga,
tu rica como a lembrança,
como os campos agrestes,
tu dura e dulcíssima
palavra, antiga pelo sangue
que afluiu aos olhos;
jovem, como um fruto
que é estação e eco –
o teu hálito repousa
ao céu de Agosto,
as azeitonas do teu olhar
adoçam o mar,
e tu vives e renasces
sem espanto, segura
como a terra, escura
como a terra, lagar
de estações e de sonhos
que à lua se descobre
antiquíssimo, como
as mãos da tua mãe,
a pedra gasta da lareira.

27 de Outubro de 1945

Cesare Pavese

[“Terra e a Morte” in “Virá a morte e terá os teus olhos.”

“Trabalhar Cansa” – Tradução de Carlos Leite, Cotovia]

domingo, junho 30

EVIDÊNCIAS - XVII

Neste soneto XVII, dos 21 que compõem “As Evidências”, aquando da minha leitura inicial, logo após a sua morte, sublinhei, a lápis, um verso que sempre me tem acompanhado: “É pequena a margem pura onde só há tristeza”.


Na noite funda em que das nuvens corre
interceptado o luar prateando a vida,
de tudo a forma é sombra desmedida
como do corpo a contrição qual morre.

Últimas fezes do estertor, na espuma
que aos lábios sobe envidraçando o olhar,
crispam-se os dedos, quanto devagar
memórias se desatam uma a uma.

De súbito explodido, ou na serena
e distendida muscular dureza,
o espírito se quebra nas miríades

que o foram sucessivas. É pequena
a margem pura onde só há tristeza.
Da podridão logo renascem tríades.


25-3-1954

Jorge de Sena

quinta-feira, junho 27

AS EVIDÊNCIAS - XVI






































Livres de ser o que os acasos tecem
na teia de eras que aumentando os muda,

não sendo vamos contrição desnuda,
e como nós as coisas acontecem.


E porque acontecidas logo cessem
de ser a liberdade ponteaguda
que de entre teias como gota exsuda,
mudam-se em nós as que a mudança esquecem.


E um sentimento, a máquina, um abraço,
um filho, a estátua, as dimensões do espaço
- pensado ou não, sentido ou não, talhado
ou não – fado serão do próprio fado,
qual como em fios luminosos vemos
o gecto igual com que outra fronte erguemos.

15-3-1954

Jorge de Sena

segunda-feira, junho 24

AS EVIDÊNCIAS - XV


Manhã de glória! – ó deuses, ó imagens,
palavras, gestos, silenciosa crença,
ó plácida ternura das paisagens,
brincar das crianças na convalescença,

lembrado vento das remotas viagens,
saber perpétuo das ciências novas,
sereno deslisar de astrais paragens,
mentiras, crimes, proclamadas provas

de tudo contra tudo: universal
visão que sois, só porque sois tão mal

a mão que toca e que a si própria sente;
nessa mentira veramente ouvida,
nessa verdade que, de o ser, já mente,
o mal que sois é o bem de haver só vida.

9-3-1954

Jorge de Sena

Anjani Thomas

sábado, junho 22

AS EVIDÊNCIAS - XIV

Nenhuma voz me atinge por destino
dela, e nenhuma me procura ansiosa.
Se o espaço cruzam num murmúrio fino
ou gritam seu destino, a mais formosa

é sempre aquela que eu encontro agora,
apenas porque a encontro e por mais nada.
E para ouvi-las não existo, embora
as ouça claramente, na humilhada,

ténue, profunda, vasta e dolorosa,
conquanto doce, humanidade alheia,
que em mim se alberga tímida e receosa.

Assim se escutam vozes. Delicada,
sopra no espírito a formosa ideia,
e encrespam-se as palavras na alvorada.

 
9-3-1954

Jorge de Sena
 

quarta-feira, junho 19

AS EVIDÊNCIAS - XIII

                                                                               XIII

Quando me encontro sempre sem poesia
do ritmo ouvindo o cadenciar perfeito
em que as palavras passam como um dia
que é fluído e pálido, gelado e estreito,

sempre uma voz, que eu antes não ouvia,
me preenche o espaço entre o destino e o leito
de fogo e de cristal em que me deito
na música sem dor nem alegria.

Alguém que eu fui ou não cheguei a ser,
que alguém não teve tempo de viver
na ondulação do transitório acaso,

é por acaso que em mim próprio escuto,
qual do vazio ocasional refuto
a vacuidade inane do seu vaso.

9-3-1954

Jorge de Sena

NAPOLEÃO BONAPARTE

                                                  As grandes frases de Napoleão.


“A felicidade é o maior desenvolvimento das minhas faculdades.”

Antes da ilha de Elba: “Um malandro vivo vale mais do que um imperador morto”.

“Um homem realmente grande colocar-se-á sempre acima dos acontecimentos que originou.”

“É necessário querer viver e saber morrer.”


Albert Camus, in Caderno n.º 4

segunda-feira, junho 17

POLÍTICA (10)

Correm-se as notícias de uma a outra ponta e o que vemos? Um diário de conflitos, de violência, de guerra! Cá e lá, por todo o lado, não é só o que mais convém à indústria das notícias mas um reflexo da realidade nua e crua. O que há pouco tempo atrás era um devaneio de lunáticos - a guerra – passou a ser um presságio de realistas. Talvez um pouco mais de espirito de paz no G8, no lugar da volúpia da guerra, em mangas de camisa, menos usura e mais compaixão, menos manobra e mais política, mais grandeza e menos subserviência. Apetece-me citar Camus em “Núpcias, O Verão”: "
(...) A primeira coisa é não desesperar. Não prestemos ouvidos demasiadamente àqueles que gritam, anunciando o fim do mundo. As civilizações não morrem assim tão facilmente; e mesmo que o mundo estivesse a ponto de vir abaixo, isso só ocorreria depois de ruírem outros. É bem verdade que vivemos numa época trágica. Contudo, muita gente, confunde o trágico com o desespero. “O trágico”, dizia Lawrence, “deveria ser uma espécie de grande pontapé dado na infelicidade”.

sábado, junho 15

AS EVIDÊNCIAS XII

XII

Uma outra vida espera em vosso peito.
Dentro do meu que em gestos se condensa
a carne fala e vibra, a carne pensa
por vós como por mim, que não aceito

mais que a linguagem de ter sido eleito
igual aos outros: tão igual, que sou
a identidade vária com que vou
sendo a diferença dolorosa – o jeito

de uma pura perda celebrar o amor,
sagrando-vos humanos e lembrados
na plena luz a que viveis os fados.

Beijemo-nos então. Língua na língua,
essa outra vida que trazeis, distingo-a,
e como liberdade aceito a dor.


Jorge de Sena

6-3-1954