SOBRE O
ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO
ATUAL
24 de
novembro de 2013
[Os meus sublinhados da leitura deste texto programático notável do Papa Francisco o qual, às primeiras impressões, a Hierarquia da Igreja Católica procura minimizar. Pareceu-me adequado à época natalícia divulgar alguns excertos que sublinhei de uma leitura integral e atenta. O texto está disponível na sitio da Conferência Episcopal Portuguesa.]
[…]
17. Aqui escolhi propor algumas diretrizes que possam
encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de
ardor e dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina da Constituição
dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros temas, de me deter amplamente
sobre as seguintes questões:
a) A reforma da Igreja em saída missionária.
b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que
evangeliza.
d) A homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos pobres.
f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais
para o compromisso missionário.
2. Pastoral em conversão
25. Não ignoro que hoje os
documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando
rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que aquilo que pretendo deixar
expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências
importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por usar os meios
necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária,
que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos
serve uma «simples administração» Constituamo-nos em «estado permanente de
missão”, em todas as regiões da Terra.
48.
Se a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há de chegar a todos,
sem exceção. Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho,
encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos,
mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são
desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc
14,14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem
claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários
privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é
sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um
vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais
sozinhos!
1. Alguns desafios do mundo atual
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica,
que podemos constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São
louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo,
no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia não podemos
esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia
a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O
medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos
chamados países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem
a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais
patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca
dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos,
quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico,
nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da
natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de
novas formas de um poder muitas vezes anónimo.
Não a uma economia da exclusão
53. Assim como o mandamento «não matar» põe um
limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos
dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia
mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo
não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é
exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando
há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no
jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais
fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população veem-se
excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspetivas, num beco sem saída.
O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode
usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que
aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenómeno de
exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na
própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são
«explorados», mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as
teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico,
favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e
inclusão social no mundo.
Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma
confiança vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos
mecanismos sacralizados do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos
continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os
outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma
globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer
ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem
nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de
outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de
perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não comprámos,
enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um
mero espetáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Não à nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está na relação
estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre
nós e sobre as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos
esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da
primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo
bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão no
fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um
objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que acomete as
finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e
sobretudo a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser
humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente,
os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz.
Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta
dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controlo
dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma
nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e
implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respetivos juros afastam os
países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real
poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma
evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e
do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a devorar tudo para
aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio
ambiente, fica indefesa perante aos interesses do mercado divinizado,
transformados em regra absoluta.
Não a um dinheiro que governa em vez de servir
57. Por detrás desta atitude, escondem-se a rejeição da
ética e a recusa de Deus. Para a ética, olha-se habitualmente com um
certo desprezo sarcástico; é considerada contraproducente, demasiado humana,
porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida como uma ameaça, porque
condena a manipulação e degradação da pessoa. Em última instância, a ética leva a Deus que
espera uma resposta comprometida que está fora das categorias do mercado. Para
estas, se absolutizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e até mesmo
perigoso, na medida em que chama o ser humano à sua plena realização e à
independência de qualquer tipo de escravidão. A ética – uma ética não
ideologizada – permite criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana.
Neste sentido, animo os peritos financeiros e os governantes dos vários países
a considerarem as palavras dum sábio da antiguidade: «Não fazer os pobres
participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são
nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos.»
58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética
exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a
quem exorto a enfrentarem este desafio com determinação e clarividência, sem
esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro
deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a
obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres,
respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a
um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano.
Não à desigualdade social que gera violência
59. Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas,
enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e
entre os vários povos será impossível desarreigar a violência. Acusam-se
da violência os pobres e as populações mais pobres, mas, sem igualdade de
oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno
fértil que, mais cedo ou mais tarde, há de provocar a explosão. Quando a
sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si
mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que
possam garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas
porque a desigualdade social provoca a reação violenta de quantos são excluídos
do sistema, mas porque o sistema social e económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a
difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir
a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema
político e social, por mais sólido que pareça. Se cada ação tem consequências,
um mal embrenhado nas estruturas duma sociedade sempre contém um potencial de
dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a
partir do qual não podemos esperar um futuro melhor. Estamos longe do chamado
«fim da história», já que as condições dum desenvolvimento sustentável e
pacífico ainda não estão adequadamente implantadas e realizadas.
60. Os mecanismos da economia
atual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que o consumismo
desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido
social. Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma
violência que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão resolver
jamais. Servem apenas para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança,
como se hoje não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que
dar solução, criam novos e piores conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente
em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações
indevidas, e pretendem encontrar a solução numa «educação» que os tranquilize e
transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se ainda mais
irritante, quando os excluídos veem crescer este cancro social que é a
corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus Governos,
empresários e instituições – seja qual for a ideologia política dos
governantes.
108.
Como já disse, não pretendi oferecer um diagnóstico completo, mas convido
as comunidades a completarem e a enriquecerem estas perspetivas a partir da
consciência dos desafios próprios e das comunidades vizinhas. Espero que, ao
fazê-lo, tenham em conta que, todas as vezes que intentamos ler os sinais dos
tempos na realidade atual, é conveniente ouvir os jovens e os idosos. Tanto uns como outros são a
esperança dos povos. Os idosos fornecem a memória e a sabedoria da experiência,
que convida a não repetir tontamente os mesmos erros do passado. Os jovens
chamam-nos a despertar e a aumentar a esperança, porque trazem consigo as novas
tendências da humanidade e abrem-nos ao futuro, de modo que não fiquemos
encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que já não são fonte de vida
no mundo atual.
A doutrina da Igreja sobre as questões sociais
182. Os ensinamentos da Igreja acerca de
situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e
podem ser objeto de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem
pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios sociais não se
fiquem em meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as
suas consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas
complexas situações hodiernas». Os Pastores, acolhendo as contribuições
das diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que
diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção
integral de cada ser humano. Já não se pode afirmar que a religião se deve
limitar ao âmbito privado e serve apenas para preparar as almas para o Céu.
Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta Terra, embora
estejam chamados à plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para
nosso usufruto» (1Tm 6,17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a
conversão cristã exige rever, «especialmente, tudo o que diz respeito à ordem
social e consecução do bem comum».
183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos
que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer
influência na vida social e nacional, sem nos preocuparmos com a saúde das
instituições da sociedade civil, sem nos pronunciarmos sobre os acontecimentos
que interessam aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo e
silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá?
Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem
individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo,
transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por
ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a
humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus
anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A Terra é a nossa
casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do
Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à
margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são
chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se
trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e construtivo,
orienta uma ação transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um sinal de
esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, «une o
próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades
eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
185. Em seguida, procurarei
concentrar-me sobre duas grandes questões que me parecem fundamentais,
neste momento da história. Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque considero que
irão determinar o futuro da humanidade. A primeira é a inclusão
social dos pobres; e a segunda, a questão da paz e do diálogo social.
2. A inclusão social dos pobres
188 (…)
Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal
interpretada, a palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns atos
esporádicos de generosidade; supõe a criação de uma nova mentalidade que pense
em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos
bens por parte de alguns.
189. A solidariedade é uma reação espontânea de quem
reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como
realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens
justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem
comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao
pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade,
quando encarnam, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas
possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e
atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se
tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros,
dos povos mais pobres da Terra, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos
direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos».
Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como justificação
para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos dos povos
mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso
recordar-se sempre de que o Planeta é de toda a humanidade e para toda a
humanidade, e que o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos
ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos
dignamente. É preciso repetir que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns
dos seus direitos, para poderem colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao
serviço dos outros». Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é
preciso alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou
de outras regiões do próprio país. Precisamos de crescer numa solidariedade que
«permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada
homem é chamado a desenvolver-se».
192. Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais
alto. Não se fala apenas de garantir a comida ou um digno «sustento» para todos,
mas «prosperidade e civilização nos seus múltiplos aspetos»159. Isto engloba
educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho porque, no
trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e
engrandece a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado
aos outros bens que estão destinados ao uso comum.
196. Às vezes, somos duros de coração e de mente,
esquecemo-nos, entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas possibilidades de
consumo e de distração que esta sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie de
alienação que nos afeta a todos, pois «alienada é a sociedade que, nas suas
formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a
realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana».
199. O nosso compromisso
não consiste exclusivamente em ações ou em programas de promoção e assistência;
aquilo que o Espírito põe em movimento não é um excesso de ativismo, mas
primariamente uma atenção prestada ao outro «considerando-o como um só consigo
mesmo». Esta atenção amiga é o início duma verdadeira preocupação pela
sua pessoa e, a partir dela, desejo de procurar efetivamente o seu bem. Isto
implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo de ser, com a
sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é sempre
contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaidade,
mas porque ele é belo, independentemente da sua aparência: «Do amor, pelo qual
uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe dê algo de graça.» Quando
amado, o pobre «é estimado como de alto valor», e isto diferencia a autêntica
opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de utilizar os
pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a
partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los
adequadamente no seu caminho de libertação. Só isto tornará possível que «os
pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este
estilo, a maior e mais eficaz apresentação da Boa-Nova do Reino?». Sem a opção
preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este anúncio é a
primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se
naquele mar de palavras que a atual sociedade da comunicação diariamente nos
apresenta».
Economia e distribuição dos rendimentos
202. A necessidade de resolver as causas estruturais da
pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter
resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar de uma mazela que a
torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de
assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se
apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente
solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos
mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da
desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo,
problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.
203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são
questões que deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes
parecem somente apêndices acrescentados de fora para completar um discurso
político sem perspetivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas
palavras se tornaram incómodas para este sistema! Incomoda que se fale de
ética, incomoda que se fale de solidariedade mundial, incomoda que se fale de
distribuição dos bens, incomoda que se fale de defender os postos de trabalho,
incomoda que se fale da dignidade dos fracos, incomoda que se fale de um Deus
que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas
palavras se tornam objeto de uma manipulação oportunista que as desonra. A
cómoda indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas
palavras de todo o significado. A vocação de um empresário é uma nobre tarefa,
desde que se deixe interpelar por um sentido mais amplo da vida; isto
permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum com o seu esforço por
multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos.
204. Não podemos mais confiar nas forças cegas e
na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o
crescimento económico, embora o pressuponha; requer decisões, programas,
mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição
dos rendimentos, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção
integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um
populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que
são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo
o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos.
205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de
entrar num autêntico diálogo que vise efetivamente sanar as raízes profundas e
não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma
sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o
bem comum. Temos de nos convencer de que a caridade «é o princípio não só das
microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas
também das macrorrelações como relacionamentos sociais, económicos, políticos».
Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham
verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável
que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas
perspetivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados de saúde
para todos os cidadãos. E porque não recorrerem a Deus pedindo-lhe que inspire
os seus planos? Estou convencido de que, a partir de uma abertura à
transcendência, poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e económica
que ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum
social.
206. A economia – como
indica o próprio termo – deveria ser a arte de alcançar uma adequada
administração da casa comum, que é o mundo inteiro. Todo o ato económico
de uma certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do Planeta,
repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à margem de
uma responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil
encontrar soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo que
a política local se satura de problemas por resolver. Se realmente queremos
alcançar uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história,
de um modo mais eficiente de interação que, sem prejuízo da soberania das
nações, assegure o bem-estar económico a todos os países e não apenas a alguns.
3. O bem comum e a paz social
221. Para avançar nesta construção de um povo em
paz, justiça e fraternidade, há quatro princípios relacionados com tensões
bipolares próprias de toda a realidade social. Derivam dos grandes
postulados da Doutrina Social da Igreja, que constituem o «primeiro e
fundamental parâmetro de referência para a interpretação e o exame dos
fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora propor estes quatro princípios
que orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a
construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto
comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro
caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro.
O tempo é superior ao espaço
222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite.
A plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece
pela frente. O «tempo», considerado em sentido amplo, faz referimento à
plenitude como expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é
expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os
cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do
horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai.
Daqui surge um primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o
tempo é superior ao espaço.
223. Este princípio permite trabalhar a longo
prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com
paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo
da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude e
limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que, às vezes, se nota na
atividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder em vez dos tempos dos
processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como loucos para
resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os espaços
de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender pará-los. Dar
prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir
espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos de uma
cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás. Trata-se de privilegiar as
ações que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e
grupos que os desenvolverão até frutificarem em acontecimentos históricos
importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes.
A unidade prevalece sobre o conflito
226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado;
deve ser aceite. Mas se ficamos encurralados nele, perdemos a
perspetiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada.
Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda
da realidade.
227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e
passam adiante como se nada fosse, lavam as mãos para poder continuar com a sua
vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o
horizonte, projetam nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações
e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas há uma terceira forma,
a mais adequada, de enfrentar o conflito: é aceitar suportar o conflito,
resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores».
228. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma
comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas
magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual e
consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário
postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social:
a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu
sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da
história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem
alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo
ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva
em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste.
A realidade é mais importante do que a ideia
231. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a
realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve
estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se
da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do
sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é
superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a
realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os
nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os
fundamentalismos anti-históricos, os éticos sem bondade, os intelectualismos
sem sabedoria.
232. A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço
da captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da
realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo,
classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada
pelo raciocínio. É preciso passar do nominalismo formal à objetividade
harmoniosa. Caso contrário, manipula-se a verdade, do mesmo modo que se
substitui a ginástica pela cosmética185. Há políticos – e também
líderes religiosos – que se interrogam por que motivo o povo não os compreende
nem segue, se as suas propostas são tão lógicas e claras. Possivelmente é
porque se instalaram no reino das puras ideias e reduziram a política ou a fé à
retórica; outros esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma
racionalidade alheia às pessoas.
O todo é superior à parte
234. Entre a globalização e a localização também
se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair
numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que
é local, que nos faz caminhar com os pés na terra. As duas coisas unidas
impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos
vivam num universalismo abstrato e globalizante, miméticos passageiros do carro
de apoio, admirando os fogos de artifício do mundo, que é de outros, com a boca
aberta e aplausos programados; o outro extremo é que se transformem num museu
folclórico de eremitas locais, condenados a repetir sempre as mesmas coisas,
incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que
Deus espalha fora das suas fronteiras.
235. O todo é mais do
que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas. Portanto, não se
deve viver demasiado obcecado por questões limitadas e particulares. É preciso
alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a
todos nós. Mas há
que o fazer sem se evadir nem se desenraizar. É necessário mergulhar as raízes
na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus.
Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspetiva mais ampla.
Da mesma forma, uma pessoa que conserva a sua peculiaridade pessoal e não
esconde a sua identidade, quando se integra cordialmente numa comunidade não se
aniquila, mas recebe sempre novos estímulos para o seu próprio desenvolvimento.
Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que esteriliza.
4. O diálogo social como contribuição para a paz
240. O cuidado e a promoção do bem comum da sociedade
compete ao Estado. Este, com base nos princípios de subsidiariedade e
solidariedade e com um grande esforço de diálogo político e criação de
consensos, desempenha um papel fundamental – que não pode ser delegado – na
busca do desenvolvimento integral de todos. Este papel exige, nas
circunstâncias atuais, uma profunda humildade social.