sexta-feira, junho 20

Chico Buarque por Caetano Veloso


"Chico chega aos setenta (e até agosto sou apenas um ano mais velho do que ele, prazer de dois meses a cada ano). O Brasil é capaz de produzir um Chico Buarque: todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo a cor das águas de Fernando de Noronha, o canto do sotaque gaúcho, os cabelos crespos, a língua portuguesa, as movimentações do mundo em busca de saúde social. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Os arranha-céus de Chicago, os azeites italianos, as formas-cores de Miró, as polifonias pigmeias. Suas canções impõem exigências prosódicas que comandam mesmo o valor dos erros criativos. Quem disse que sofremos de incompetência cósmica estava certo: disparava a inevitabilidade da virada. O samba nos cinejornais de futebol do Canal 100, Antônio Brasileiro, o Bruxo de Juazeiro, Vinicius, Clarice, Oscar, Rosa, Pelé, Tostão, Cabral, tudo o que representou reviravolta para nossa geração foi captado por Chico e transformado em coloquialismo sem esforço. Vimos melhor e com mais calma o quanto já tínhamos Noel, Haroldo Barbosa, Caymmi, Wilson Batista, Ary, Sinhô, Herivelto. A Revolução Cubana, as pontes de Paris, o cosmopolitismo de Berlim, o requinte e a brutalidade de diversas zonas do continente africano, as consequências de Mao. Chico está em tudo. Tudo está na dicção límpida de Chico. Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto o Brasil. Sem o amor que eu e alguns alardeamos à nossa raiz lusitana, ele faz muito mais por ela (e pelo que a ela se agrega) do que todos nós juntos.”

quarta-feira, junho 18

junho - dia 18


Um texto dos mais antigos que escrevi aqui acerca do futebol. Intitulei-o de "Após a Derrota", de tantas que fazem parte da actividade humana, do jogo da vida e também do desporto. Nada pior do que não saber aceitar a derrota com as suas penas. Nada pior do que não saber vencer com suas alegrias. Escrevi assim:   "Os negócios da imagem (e outros) dominam o fenómeno do futebol contemporâneo, eu sei, mas a imagem dos meus heróis de juventude, que quase pagavam para jogar, colou-se na formação do meu gosto e este jamais o perderei ao contrário do vício de fumar que perdi de um dia para o outro. A beleza do futebol, mesmo após a derrota, tal como a beleza feminina, mesmo sendo produzida (e a beleza não é sempre produzida?), fascina-me e incorpora a minha formação cultural. Não há volta a dar!" 

segunda-feira, junho 16

junho - dia 16


Hoje foi um dia não para notícias, não que não hajam notícias, todas as antigas e outras novas, os povos da Europa navegando por entre fumos de guerra. Volto a referir a guerra, o Irão oferece uma aliança aos USA na luta contra os insurgentes sunitas no Iraque. Os USA dão sinais de aceitar. Qual será o negócio? A Rússia ameaça o abastecimento de gás à Ucrânia (e à Europa da UE) e a diplomacia da UE aparenta desnorte, qual barata tonta, enquanto todos chatageiam todos, ameaçando em on e off, como se estivéssemos em plena época de manobras bélicas. Hoje  numa tribuna de um país de criação portuguesa, o Brasil, nascido da estratégia vencedora da projecção externa de quinhentos, a chanceler alemã, com toda a carga simbólica, aplaudiu a vitória dos seus. Hoje, em Salvador da Baía,  não havia quem simbolicamente confortasse os derrotados, no exacto lugar da chegada de Cabral. A primeira capital, coisas sem importância. Honra aos vencidos, glória aos vencedores.      

junho - dia 15

                                                           Fotografia de Hélder Gonçalves

Continuo a escrever aqui. Para mim é uma coisa normal. Mas passou muito tempo desde que comecei. Apetece-me escrever quando me recolho. É  fascinante a página em branco. Nada me obriga. Oiço dizer em muitos lugares que escrever no espaço público é perigoso. Mas não tenho medo de me manifestar, através da opinião, do testemunhar, tomar partido. De forma mais serena e, naturalmente, mais ponderada do que ontem. Mas não ter medo, salvo raras excepções, não é um estado de espírito inato. Resulta de uma aprendizagem na qual as nossas relações com os outros e o mundo nos conformam o ser em construção. Por estes dias viajei pelo sul litoral. O meu olhar reteve uma paisagem natural extraordinariamente bela, o mar beijando a terra sob a lua de prata. A terra florescente nos seus contrastes fascina o olhar mais distraído. Mas a qualidade dos serviços prestados parece ter parado no tempo, senão mesmo regredido. Será uma injustiça generalizar mas parece-me notório que recrudesceu o amadorismo. A maior parte das nossas pequeníssimas empresas (que são quase a totalidade do nosso empresariado), parece à beira de sucumbir. Poupa-se na ração, o animal ameaça morrer.        

sábado, junho 14

junho - dia 14









Não sou mais do que um cidadão interessado pelas coisas do mundo. Preocupam-me os sinais de guerra
que em algumas regiões passaram de ameaças a actos. Não me guio pela agenda da comunicação social global e busco contrariar o esquecimento. Li nas notícias do dia  que a França e a Alemanha manifestaram preocupação com a situação na Ucrânia. É a Europa à beira da guerra ou a guerra à beira da Europa. Com aparente surpresa os islamitas radicais (sunitas) ameaçam tomar o poder no Iraque. Não foi lançada pelo ocidente imperial uma "guerra santa"  contra o poder sunita de Saddam Hussein? Sabem quando foi? Quanto tempo demorou? Quanto custou? Da democracia que lá implantou? Das razões reais e invocadas? Da Síria as trombetas emudeceram! Da Líbia as novas são escassas! A paz sofre tratos de polé do grande conglomerado militar industrial internacional. Seja qual for o lado em que avança vitoriosa uma guerra as armas ostentam as mesmas insígnias. Alguém as vende, alguém as paga, enquanto os povos sofrem!  É preciso ouvir com muita atenção as palavras do Papa Francisco.  

sexta-feira, junho 13

junho - dia 13


                                                          Fotografia de Hélder Gonçalves

Dia de Santo António, feriado em Lisboa, inicio do campeonato do mundo de futebol. Nada de novo a ocidente a não ser tudo o que de novo o nosso tempo anuncia. Sob os nossos pés, tantas vezes sem nos darmos conta, florescem sinais de mudança. O tempo, leal conselheiro, faz o seu trabalho. Muitas injustiças, que a nossos olhos são irreparáveis (e muitas são), reverterão em favor dos injustiçados. As mulheres e os homens de boa vontade, seja qual for a sua condição social, profissão, ideologia, partido, raça ou credo, em suas tarefas e misteres, não temem as dificuldades. As barreiras tantas vezes derrubadas ao longo da história por movimentos que os próprios homens moldaram serão de novo derrubadas. De um a outro campo da vida em comunidade, adversários e correlegionários, entrecuzam-se e disputam o poder. Sempre assim foi em democracia. Nada de novo a ocidente a não ser tudo o que de novo o nosso tempo anuncia.   

quinta-feira, junho 12

junho - dia 12


Véspera de Santo António, dia de festa em Lisboa. Só para lembrar que a rendição de Lisboa ocorreu em 21 de Outubro, mas a  tomada de Lisboa aos "mouros" deu-se em 25 de Outubro de 1147.  Ao calcorrear as ruas de Lisboa, ao sentir a quentura da sua luminosa luz, ao ouvir a grita de suas gentes, mesmo no auge de sua nostalgia, lembremos que esta é uma cidade antiga. Hoje cosmopolita talvez mais do que nunca, a porta maior de abertura de Portugal ao mundo, um porto, um rio, uma mescla de gentes de toda a sorte, ao olhá-la atentamente, com seus claros e escuros, Lisboa ilumina-nos a esperança no futuro.

terça-feira, junho 10

junho - dia 10


Hoje é dia 10 de junho, um dia como outro qualquer, salvo ter sido escolhido faz tempo, não vem ao caso a razão, para Dia de Portugal. Lembrei-me a propósito do dia 10 de junho de 1977, celebrado na Guarda, como este que hoje se celebra. O que me faz lembrar esse longínquo dia é o discurso que nele foi convidado a proferir Jorge de Sena. Estávamos no fim do chamado período revolucionário, haviam ocorrido as eleições presidenciais, tendo sido eleito Ramalho Eanes, e a voz de Sena, tão pouco chamada a ser ouvida fora dos meios literários e académicos, irrompia como uma fagulha que iluminava temas raramente trazidos à praça pública em eventos de natureza politica, ou afins. A partir desse dia passei a ler a obra de Sena de forma sistemática,em particular a poética, que sempre me inspirou. Publiquei, na madrugada de hoje, o discurso de Jorge de Sena, proferido em 10 de junho de 1977, no IRAOFUNDOEVOLTAR porque contém tanta actualidade que até dói. Foi uma das sua últimas intervenções públicas em Portugal, senão a última, pois morreu em 4 de junho de 1978 em Santa Bárbara, Califórnia, onde vivia com sua mulher Mécia (haja saúde) e sua vasta prole.

domingo, junho 8

junho - dia 8


O verão ameaça dar sinal de si por entre os ruídos de todos os perigos que ameaçam a paz na Europa. Abate-se o silêncio acerca da emergência dos extremismos que as eleições europeias revelaram em toda a sua crueldade. Ao solavanco da surpresa sucede-se a acomodação ou o que parece ser a aceitação de uma normalidade que, na verdade, deveria colocar em alerta vermelho os amantes da liberdade. Na falta do pão a primeira tentação dos povos é valorizar a justiça em detrimento da liberdade. A maior tentação de todas as comunidades, em períodos de carência, é menosprezar os valores da liberdade em favor dos da justiça. Um erro que sempre se pagou caro na maior parte das vezes com a eclosão da guerra. É preciso manter o equilíbrio para não nos tornarmos assassinos mesmo quando as vozes se elevam mais alto do que os valores que proclamam.

sexta-feira, junho 6

junho - dia 6

Chove em Lisboa, cheira a verão, não ardem os pinheiros, sempre me lembram os pinheiros, quase à beira mar, e as figueiras do campo de meus avós, e seus saborosos frutos. Hoje celebra-se o 70º aniversário do longínquo dia D, o desembarque na Normandia, que é a batalha emblemática que ditou a derrota do nazi fascismo. Os americanos vieram derramar o seu sangue na Europa, os ingleses resistiram aos bombardeamentos, os franceses desertaram dos seus ideias de liberdade igualdade e fraternidade, deixando ao heroísmo de uma minoria de resistentes a tarefa de resgatar a sua honra, o povo russo, uma vez mais, mostrou que jamais será vencido pelas armas. Na hora que passa semeiam-se sinais de uma nova peste totalitária. Ainda bem que os lideres são capazes de se juntar para celebrar a efeméride.    

quarta-feira, junho 4

junho - dia 4


No ambiente político, no ar que se respira, reina uma tensão como poucas vezes se tem sentido nos últimos anos. Anunciam-se mudanças mesmo que ninguém revele ao que vem nem para onde pensa que vai. São demasiadas coincidências, nos gestos, falas, silêncios e gritas. É um tempo novo que se anuncia sem que saibamos quem dele vai beneficiar, quem nele vai perder ou ganhar, viver ou morrer. Continuar a trabalhar, o melhor que se pode e sabe. Nada mais.  

domingo, junho 1

junho - dia 1


Primeiro dia de um mês de junho que vai ser quente em diversas frentes. Na frente europeia, após eleições, surgirão novos responsáveis e inevitáveis ajustamento nas politicas. Podem ser na aparência pequenos acertos mas a situação resultante da ascensão de forças da extrema direita exige mudanças profundas. A nível nacional é o que está à vista de todos. Os dados estão lançados. Nem à direita nem à esquerda é possível imaginar a vitória do situacionismo. O PS pode mudar de liderança, o PSD será obrigado a responder, o CDS não poderá ficar indiferente, todas as forças serão obrigadas a reposicionar-se, atrair eleitores descrentes e desiludidos, com eleições legislativas e presidenciais à vista. No meio de tudo o campeonato do mundo de futebol ... e uma crise financeira/económico/social sem precedentes ...      

Roberto Bolle & Polina Semionova in Passage


sábado, maio 31

NA MORTE DE MARILYN


Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes
Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser atá ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou.

Ruy Belo

Transporte No Tempo
Editorial Presença

quarta-feira, maio 28

A minha cabeça está baralhada

"A minha cabeça está baralhada
Sobre um determinado trabalho, sobre um determinado assunto (habitualmente aqueles sobre os quais se fazem dissertações), sobre um determinado dia de vida, gostaria ele de colocar como divisa este dito de comadre: a minha cabeça está baralhada (imaginemos uma língua na qual o jogo das categorias gramaticais obrigasse por vezes o sujeito a enunciar-se sob as vestes de uma velha).
E, todavia, ao nível do seu corpo, nunca sente a cabeça baralhada. (…)
Sente por vezes vontade de deixar repousar toda essa linguagem que tem na cabeça, no trabalho, nos outros, como se a própria linguagem fosse um membro cansado do corpo humano; parece-lhe que, se descansasse da linguagem, descansaria completamente, pelo feriado dado às crises, às repercussões, às exaltações, às feridas, às razões, etc. Vê a linguagem sob os traços duma velha mulher cansada (algo como uma antiga mulher-a-dias de mãos gastas) que suspira por uma certa aposentação”.

"Roland Barthes por Roland Barthes" 
Edição portuguesa: "Edições 70"

segunda-feira, maio 26

Ruy Belo - ...tu és em cada gesto todos os teus gestos

“...tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra paz

Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas perdoa pagares tão alto preço por estar aqui

prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias

e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui”

Ruy Belo

in “Toda a Terra”

sexta-feira, maio 23

Abrahamsen: Let me tell you / Hannigan · Nelsons · Berliner Philharmoniker


VOTAR - DE NOVO


Tenho escrito sempre na véspera de eleições desde que frequento estes espaços de comunicação - vulgo redes sociais - por dever de consciência. Faço parte daquele grupo de eleitores, que os especialistas na matéria devem qualificar de uma forma qualquer, fiéis a um ideário. Nada que me incomode ou associe, de mim para comigo, a um qualquer imobilismo ou letargia acrítica. A propósito destas eleições europeias tenho-me lembrado, com frequência, da experiência de candidato, independente nas listas do PS, às eleições legislativas de 1985. Ainda no decurso de um período de dura politica de austeridade, dirigida por um governo PS, nas vésperas da adesão à CEE, ser candidato foi mais do que uma maçada, foi um risco físico, à beira de apanhar pancada vinda de enfurecidos, mas pacatos, cidadãos que anunciavam a pior votação de sempre no PS. É como em tudo na vida, umas vezes em baixo outras em cima. Para dizer que, desde que o misterioso e distinto MES, acabou para as lides eleitorais, sempre votei no PS. Para ganhar ou perder é uma manifestação de fidelidade que acalento desde a adolescência. Assim seja!