Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,
Editado por Eduardo Graça
quinta-feira, março 5
5 de março - ano de 2015
É difícil conceber uma campanha eleitoral tão longa no tempo como a que já está em marcha. Mas, ao contrário, mais difícil era entender o tempo em que não havia verdadeiras campanhas eleitorais. Para quem não se lembra esse tempo já existiu - e existe - em muitas partes do mundo e em Portugal estão vivos muitos daqueles que o viveram. Sempre é preferível o confronto aberto das opiniões divergentes, com mais ou menos ruído, ou golpe baixo, do que o silêncio conformista da tirania. Preocupante é o perigo do seu regresso muito bem assinalado hoje pelo 1º ministro francês a propósito do avanço da extrema direita no seu país. Com todos os sobressaltos os países do sul da Europa têm vindo a ser portadores de novos movimentos sociais que, nalguns casos, se transformam em partidos, longe de se fundarem em ideologias fascistas, nazis, ou populistas radicais de direita, mas o mesmo se não pode dizer de França.França é o centro do problema político da Europa no próximo futuro. Não só por fazer parte, com a Alemanha, do núcleo central da ideia da construção da União Europeia - uma ideia destinada à preservação da paz na Europa antes de tudo o mais - como pelo seu peso na economia, história e geopolítica da Europa moderna. Com a eventual emergência de um poder político dominado por um partido de extrema-direita - seja qual for o seu disfarce - a União Europeia estará condenada ao fracasso. E surgirão, em todo o seu terrível esplendor, os sinais de guerra. Estamos cada vez mais perto de um tempo de grandes decisões.
quarta-feira, março 4
4 de março, ano de 2015
Pelo calendário político previsível deveremos estar exactamente, no dia de hoje, a 7 (sete) meses das eleições legislativas. (uma mera ante visão sem qualquer bússola!) Sem descontos das férias de verão (como será o mês de agosto?) pela amostras dos dias que passam, sete meses de campanha eleitoral. A que se sobreporá outra campanha - a presidencial - que se estende até janeiro. A que se sobreporá o processo de formação do governo, saído do resultado das legislativas, em plena pré campanha presidencial. Só falo, está bem de ver do calendário. Nem de conteúdos políticos, nem dos tons dos debates, nem dos protagonistas, nem dos acontecimentos políticos inesperados, nem das surpresas de conjuntura da economia nacional e internacional, nem de eventuais conflitos bélicos, nada de nada, somente de calendário, ou seja, de tempo.
segunda-feira, março 2
2015 - dia 2 de março
Houve um tempo em que acreditei na bondade intrínseca do homem, a velha crença na superioridade da filosofia de Rousseau, misturada com uma longa vivência, enquanto jovem adulto, por razões históricas, no período dos chamados 40 anos gloriosos, do crescimento económico que se julgava iria perdurar para todo o sempre. Deveria saber por uma miríade de outras razões, oriundas da religião na qual fui educado, nos livros que li e nas experiências que vivi, que não é assim. O homem não é naturalmente bom. Mas sou obrigado a fazer um esforço para assumir esta negação da bondade intrínseca do homem. Mas não posso mais deixar-me iludir. Vamos caminhando.
domingo, março 1
2015 - dia 1 de março
Este espaço existe há mais de um decénio porque o seu autor,
identificado, assim o quer. É uma janela entre milhões de janelas através da
qual eu olho a rua – o espaço público – e comunico, em liberdade, com aqueles
que por vontade própria, ou por mero acaso, decidem visitá-lo. Hoje por hoje é
uma banalidade dispor de um espaço desta natureza, talvez mesmo um pouco
antiquado, face a outros meios que entretanto surgiram e que, no conjunto,
criaram uma rede cujos densidade e propósitos vão muito além, suponho, do que a
mais hilariante imaginação pode supor. Nada busco com esta presença continuada
senão manter aberta essa ínfima janela com o exterior, no fundo, comunicar
dando expressão a uma vontade própria de reunir a minha voz a outras vozes que,
por uma qualquer razão, estejam disponíveis para ouvir. Hoje o meu filho chegou
da Áustria, onde regressará mais tarde, e tudo correu bem. O gato ficou feliz. Hoje, dia 1 de março do qual, por razões que desconheço, sempre gostei muito.
sexta-feira, fevereiro 27
"Quando não se tem carácter é preciso ter método."
“Eu moro no bairro judeu, ou o que assim se chamava até ao momento em que os nossos irmãos hitlerianos limparam tudo. Que barrela! Setenta e cinco mil judeus deportados e assassinados, é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem carácter, é preciso ter método.”
Albert Camus, in "A Queda"
quarta-feira, fevereiro 25
SETE POEMAS DE AMOR E MORTE - PELO 10º ANIVERSÁRIO DA MORTE DO MEU IRMÃO DIMAS
O chão branco de fogo cega o olhar
Longe a coroa de mar envolve a terra
E os sonhos rasam o teto do mistério
II
A parede milenar suspensa deixa ver
O passado remoto e as vozes ressoam
Pelo ar de boca em boca sussurradas
III
A risca amarela marca um tempo eterno
E os sinais de fogo desenhados a quente
Na memória fixam o momento da morte
IV
A lápide gravada a letras claras assinala
O tempo que se desfez na mão fechada
Torrão quente que faz do corpo semente
V
A eira debandou do trigo elevado ao céu
E as ervas tomaram a forma de regatos
Correndo para as nascentes fulminadas
VI
Toca a corneta na estrada anunciando
O peixe e os corpos jovens banham-se
Na sombra fresca do arvoredo ardente
VII
Fixo o olhar perdido à beira do poço
E a pedra lançada ao fundo não ecoa
Canção de amor à morte desesperada
Lisboa, 22 de Março de 2005
segunda-feira, fevereiro 23
JOSÉ AFONSO - PELO 28º ANIVERSÁRIO DA SUA MORTE
José Afonso (canto inferior esquerdo) na época em que foi professor provisório na Escola Industrial e Comercial de Faro (de 7 de Outubro de 1958 a 18 de Julho de 1959). Com a curiosidade de nesta fotografia, certamente tirada no Campo de Futebol de S. Luís, em Faro, surgir o Dr. Emílio Campos Coroa (de óculos escuros com um ramo de flores).
quinta-feira, fevereiro 19
Os Holandeses ...
"Os holandeses, oh!, são muito menos modernos! Têm tempo, repare neles. Que fazem? Ora bem, estes senhores vivem do trabalho daquelas senhoras. São, de resto, machos e fémeas, umas burguesíssimas criaturas que têm o costume de vir aqui, por mitomania ou estupidez. Em suma, por excesso ou falta de imaginação. De tempos a tempos, estes senhores puxam pela faca ou pelo revólver, mas não julgue que com muito empenho. O papel exige, eis tudo, e morrem de medo, disparando os últimos cartuchos. Posto o que, acho ainda mais moralidade neles que nos outros, aqueles que matam em família, pelo desgaste. Não notou ainda que a nossa sociedade está organizada neste género de liquidação? Já ouviu falar, naturalmente, daqueles minúsculos peixes dos cursos de água brasileiros que se lançam aos milhares sobre o nadador imprudente e o limpam, em alguns instantes, a pequenas bocadas rápidas, não deixando mais que um esqueleto imaculado? Pois bem, é essa a organização deles. «Quer uma vida limpa? Como toda a gente?» Dirá que sim, naturalmente. Como dizer que não? «De acordo. Vai ficar limpinho. Aqui tem um emprego, uma família, lazeres organizados.» E os dentes minúsculos cravam-se na carne até aos ossos. Mas sou injusto. Não é a organização deles que se deve dizer. Ela é a nossa, ao fim e ao cabo: é a ver quem limpará o próximo."
Albert Camus, in A Queda
domingo, fevereiro 15
fevereiro de 2015 - dia 15 (tão cedo não acontece...)
Ao fim do dia, já noite, a meio de um mês de fevereiro frio de 2015, 50 anos passados sobre o infame assassinato do General Humberto Delgado, soube-se, através de um vídeo divulgado hoje, que o chamado estado islâmico degolou, na Líbia, 21 egípcios capturados por serem cristãos. O ocidente europeu, através dos seus dirigentes, eleitos pelo povo, pela via democrática, entretanto degladiam-se em torno da disputa do poder no seu espaço físico, desde a guerra clássica pela conquista de territórios, definição de fronteiras e rotas, até à luta por quotas de mercado para os seus bens e serviços, passando pela definição do valor relativo da força de trabalho e do capital, papel e dimensão do estado social,.... (mapas, compassos, orçamentos, armas, ...).
É como se fosse uma velha família reunida em torno de uma intrincada questão de heranças após a morte dos pais que conceberam um modelo e fizeram fortuna através do uso de uma sabedoria urdida pela guerra mas que ao longo de 60 anos de paz se perdeu. Não conheço os meandros, não posso nem quero conhecê-los, somente vejo as manifestações exteriores através das imagens, letras e sons que me chegam - as que chegam, adivinho que muitas manipuladas - mas as caras dos protagonistas mais ou menos simpáticas, austeras, cansadas ou estarrecidas, mostram mais desorientação do que determinação e sentido de estado.
Políticos prisioneiros de mudanças que não foram capazes de antecipar? O que são e para que servem? Esta é, afinal, uma mera apreciação impressionista que a realidade no próximo futuro pode desmentir e tudo acabar numa grande festa com desfiles militares aclamados por multidões agradecidas e bailes populares de regozijo pela paz.
sábado, fevereiro 14
fevereiro - dia 14
O que me apetece escrever neste final de dia chuvoso, invernal, é simplesmente que o mundo está perigoso. Chovem notícias de acontecimentos com ressonâncias de guerra sendo as restantes acerca de negócios, falências, empréstimos, resgates, negociações, dixotes nacionalistas, dinheiro, milhões de milhões de que se desconhece o rasto ou se descobre o rastro. Cheira a dinheiro sujo saído de negócios obscuros, manchado de sangue suor e lágrimas de gente honesta, trabalhadores, aforradores ..., dinheiro oriundo de rendimentos do trabalho e do capital honestos, desviado por uma horda de gente que se acoita sob os mais diversos poderes que ninguém tem a coragem de denunciar de forma directa e frontal. Espera-se que uma guerra, desta vez mundial, resolva o imbróglio? Enojante!
quarta-feira, fevereiro 11
General Humberto Delgado - nas vésperas do 50º aniversário do seu assassinato
Terminada a leitura da Biografia de Humberto Delgado, de autoria de seu neto Frederico Delgado Rosa, não resisto a deixar algumas notas. Na minha meninice – como já antes assinalei – senti pessoalmente o frémito da campanha presidencial de 1958 e nunca mais se apagaram da minha memória as imagens do empolgamento popular que a figura de Humberto Delgado suscitou.
Esta obra promissora de desenvolvimentos, e aprofundamentos, que se aguardam para o próximo futuro, mereceria, além do mais, uma verdadeira divulgação popular que contribuísse para desmitificar o branqueamento do fascismo português e da figura do seu líder e mentor – Salazar – que amiúde se quer fazer passar como um político brando na repressão, tolerante nos costumes e eficaz na política.
A leitura das 1225 páginas de texto deste livro sugere uma meditação acerca do "fenómeno Humberto Delgado", após o golpe militar de 28 de Maio de 1926, até aos nossos dias, mesmo que não nos aventuremos pelos caminhos da crítica e nos limitemos – como é o caso – ao simples papel de leitores atentos e interessados. Eis algumas breves, e despretensiosas, dessas possíveis reflexões:
(1) É do mais elementar bom senso desconfiar das ideias feitas acerca da história, em particular, da “história oficial”, quando envolve personagens carismáticos e acontecimentos com forte carga política e emotiva;
(2) Os protagonistas que marcam, pelo seu pensamento e acção, a história das nações são homens com suas virtudes e defeitos transformando-se a si próprios a par das transformações que suscitam;
(3) O General Humberto Delgado foi um distinto militar de carreira, apoiante do golpe militar do 28 de Maio, e da ditadura entre 1926 e o dealbar dos anos 50, tendo acabado por sacrificar a carreira, e a própria vida, no combate sem tréguas ao regime fascista, após a ruptura política com Salazar, a partir das eleições presidenciais de 1958, às quais se candidatou, como independente, por vontade própria;
(4) Foi ele o verdadeiro precursor do 25 de Abril de 1974 pois defendeu (quase sempre) que a ditadura só cairia através da acção militar, que haveria de ser protagonizada pelas forças armadas, apoiadas pelo povo, o que viria, de facto, a acontecer pouco menos de nove anos após o seu assassinato que ocorreu em 13 de Fevereiro de 1965;
(5) Delgado foi, politicamente, um liberal democrata, fortemente influenciado pela cultura anglófona, e pela sociedade americana (o que lhe valeu o magnífico epíteto de “General Coca Cola”) influências assumidas ao longo de várias missões profissionais – em representação do estado português - na Inglaterra, Estados Unidos e também no Canadá;
(6) Delgado foi um político que nunca deixou de ser General e de cuja áurea anti-salazarista a esquerda, do seu tempo, se quis apropriar sem, na verdade, partilhar das suas ideias e acções, que desprezava apodando-as, pelo menos, de aventureiras;
(7) O General Humberto Delgado foi atraído a uma cilada e assassinado pela PIDE, por espancamento, e não a tiro, com conhecimento de Salazar, que sempre encobriu este hediondo crime, sob as mais variadas artimanhas, no plano interno e da diplomacia, entrando, inclusive, em rota de colisão com Franco;
(8) O julgamento dos autores materiais do crime – que não dos seus autores morais que sempre foram poupados pela democracia – em Tribunal Militar – foi uma triste farsa que não permitiu apurar a verdade e muito menos punir os criminosos;
(9) Todo o processo desde o assassinato de Delgado, passando pelo encobrimento do crime, à descoberta dos corpos, à investigação judicial e perícias forenses, realizadas pelas autoridades espanholas, até à condução do processo judicial em Portugal, julgamento e recursos judiciais, constitui um caso exemplar que permite, nos planos político e judicial, entender muitos aspectos da realidade contemporânea portuguesa e as peripécias de processos que ainda correm os seus trâmites;
(10) Este livro deveria ser de leitura obrigatória para todos os políticos, militares, juízes, magistrados, jornalistas e decisores de todos os escalões da hierarquia do estado a começar pelo Senhor Presidente da República;
(11) Espero que o autor, cuja coragem não pode ser só uma herança de sangue, prossiga as suas investigações para que os portugueses possam conhecer todos os meandros do assassinato de Humberto Delgado, para que sejam identificados os seus autores, materiais e morais, assim como os encobridores, localizados os que ainda possam estar vivos, reabrindo, eventualmente, o processo, levando a que os criminosos paguem pelos seus actos e contribuindo, dessa forma, para que os portugueses se reconciliem com a justiça do seu país.
(12) Nunca nenhum processo-crime está definitivamente encerrado enquanto subsistirem fundadas suspeitas de que se não fez justiça. É o caso.
[Publicado em agosto de 2008, após a leitura da sua biografia.]
segunda-feira, fevereiro 9
Tudo é de temer.
Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é pois inevitável. Mas não o devemos reconhecer. Quem não pode fugir a ter escravos, não valerá mais que os chame homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para os não desesperar. É-lhes bem devida esta compensação, não acha? Deste modo eles continuarão a sorrir e nós manter-nos-emos de consciência tranquila. Sem o que, seríamos forçados a voltar-nos para nós mesmos, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, tudo é de temer.
Albert Camus, in A Queda"
domingo, fevereiro 8
sexta-feira, fevereiro 6
"CARTAS A UM AMIGO ALEMÃO"
« […] Acontece-me, por vezes, ao voltar de uma dessas curtas tréguas que nos deixa a luta comum, pensar em todos os recantos da Europa que conheço bem. É uma terra magnífica, feita de sacrifícios e de história. Revejo as peregrinações que fiz com todos os homens do Ocidente. As rosas nos claustros de Florença, as tulipas douradas de Cracóvia, o Hradschin com os seus paços mortos, as estátuas contorcidas da ponte Karl sobre Ultava, os delicados jardins de Salzburgo. Todas essas flores, essas pedras, essas colinas e essas paisagens onde o tempo dos homens e o tempo da natureza confundiram velhas árvores e monumentos! A minha memória fundiu essas imagens sobrepostas para delas formar um rosto único: o da minha pátria maior. Algo me oprime quando penso, então, que sobre esse rosto enérgico e atormentado paira, desde alguns anos, a vossa sombra. E no entanto, há alguns desses lugares que você visitou comigo. Eu não imaginava, nessa altura, que fosse um dia necessário defendê-los contra os vossos. E agora ainda, em certos momentos de raiva e desespero, lamento que as rosas possam ainda crescer no claustro de São Marcos, os pombos lançar-se em bandos da catedral de Salzburgo e os gerânios vermelhos germinarem incessantemente nos pequenos cemitérios da Silésia.
Mas, noutros momentos, e são esses os verdadeiros, sinto-me feliz que assim seja. Porque todas as paisagens, todas as flores e todos os trabalhos, a mais antiga das terras, vos demonstram, em cada Primavera, que há coisas que não podereis abafar no sangue. […] Sei assim que tudo na Europa, a paisagem e a alma, vos rejeitam serenamente, sem ódios desordenados, mas com a força calma das vitórias. As armas de que dispõe o espírito europeu contra as vossas são as mesmas que nesta terra sempre renascente fazem crescer as searas e as corolas. O combate em que nos empenhamos possui a certeza da vitória, porque é teimoso como a Primavera. […] »
Albert Camus, in Cartas a um Amigo Alemão, Carta Terceira (Abril de 1944).
domingo, fevereiro 1
2 de fevereeiro de 1954 - neve a sul
Foi através da leitura de “O aprendiz de Feiticeiro” de Carlos de Oliveira que, na minha memória reluziu a data em que, acontecimento raro, caiu neve em Lisboa e também – imaginem - em Faro.
No extremo sul de Portugal, à beira mar, terra de temperatura moderada, o surgimento da neve foi um acontecimento inusitado que perdurou na memória de todos.
Eis o excerto daquele belo livro do grande poeta português - Carlos de Oliveira– nascido no Brasil – a propósito daquele acontecimento memorável:
“Contudo, relato a seguir o que me aconteceu na noite de 1 para 2 de Fevereiro de 1954, quando venci por fim a proibição interior e alinhei sem emendas ou hesitações os sessenta e três versos da primeira fala de “O Inquilino”….”
(…)“E entramos por fim no que mais interessa: acabado o impulso das primeiras palavras, afastei a cadeira distraidamente e levantei-me, tentando delinear o seguimento da peça, cuja ideia me surgira só no acto de escrever. Nenhum plano anterior, nenhum esboço. Levantei-me e andei para a janela, metido na pele do inquilino, perguntando a mim mesmo (ou a ele) se não haveria outras perguntas a fazer antes duma decisão que podia ferir o equilíbrio do mundo ou coisa parecida. Foi quando a madrugada explodiu numa féerie mais ou menos nórdica, como se tivesse realmente bastado mexer na cadeira, na ordem pré-estabelecida do quarto, para desencadear o imprevisto: uma tempestade de neve em Lisboa.” (…)
No extremo sul de Portugal, à beira mar, terra de temperatura moderada, o surgimento da neve foi um acontecimento inusitado que perdurou na memória de todos.
Eis o excerto daquele belo livro do grande poeta português - Carlos de Oliveira– nascido no Brasil – a propósito daquele acontecimento memorável:
“Contudo, relato a seguir o que me aconteceu na noite de 1 para 2 de Fevereiro de 1954, quando venci por fim a proibição interior e alinhei sem emendas ou hesitações os sessenta e três versos da primeira fala de “O Inquilino”….”
(…)“E entramos por fim no que mais interessa: acabado o impulso das primeiras palavras, afastei a cadeira distraidamente e levantei-me, tentando delinear o seguimento da peça, cuja ideia me surgira só no acto de escrever. Nenhum plano anterior, nenhum esboço. Levantei-me e andei para a janela, metido na pele do inquilino, perguntando a mim mesmo (ou a ele) se não haveria outras perguntas a fazer antes duma decisão que podia ferir o equilíbrio do mundo ou coisa parecida. Foi quando a madrugada explodiu numa féerie mais ou menos nórdica, como se tivesse realmente bastado mexer na cadeira, na ordem pré-estabelecida do quarto, para desencadear o imprevisto: uma tempestade de neve em Lisboa.” (…)
A revolta do corpo ...
"Ao fim de dois mil anos de cristianismo, a revolta do corpo. Foram precisos dois mil anos para que de novo surgisse a nudez nas praias. Consequentemente, o excesso. E o corpo reencontrou o seu lugar nos usos. Falta ainda dar-lhe de novo o seu lugar na filosofia e na metafísica. É um dos sentidos da convulsão moderna."
Albert Camus, in Caderno n.º 5 (Setembro 1945/Abril 1948) – Tradução de António Quadros. Edição “Livros do Brasil”. (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).
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