SOBRE O
ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO
ATUAL
24 de
novembro de 2013[Os meus sublinhados da leitura deste texto programático notável do Papa Francisco o qual, às primeiras impressões, a Hierarquia da Igreja Católica procura minimizar. Pareceu-me adequado à época natalícia divulgar alguns excertos que sublinhei de uma leitura integral e atenta. O texto está disponível na sitio da Conferência Episcopal Portuguesa.]
17. Aqui escolhi propor algumas diretrizes que possam
encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de
ardor e dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina da Constituição
dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros temas, de me deter amplamente
sobre as seguintes questões:
a) A reforma da Igreja em saída missionária.
b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que
evangeliza.
d) A homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos pobres.
f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais
para o compromisso missionário.
25. Não ignoro que hoje os
documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando
rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que aquilo que pretendo deixar
expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências
importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por usar os meios
necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária,
que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos
serve uma «simples administração» Constituamo-nos em «estado permanente de
missão”, em todas as regiões da Terra.
48.
Se a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há de chegar a todos,
sem exceção. Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho,
encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos,
mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são
desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc
14,14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem
claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários
privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é
sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um
vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais
sozinhos!
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica,
que podemos constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São
louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo,
no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia não podemos
esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia
a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O
medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos
chamados países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem
a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais
patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca
dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos,
quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico,
nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da
natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de
novas formas de um poder muitas vezes anónimo.
Não a uma economia da exclusão
53. Assim como o mandamento «não matar» põe um
limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos
dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia
mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo
não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é
exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando
há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no
jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais
fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população veem-se
excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspetivas, num beco sem saída.
O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode
usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que
aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenómeno de
exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na
própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são
«explorados», mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as
teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico,
favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e
inclusão social no mundo.
Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma
confiança vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos
mecanismos sacralizados do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos
continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os
outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma
globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer
ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem
nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de
outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de
perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não comprámos,
enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um
mero espetáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Não à nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está na relação
estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre
nós e sobre as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos
esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da
primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo
bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão no
fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um
objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que acomete as
finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e
sobretudo a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser
humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente,
os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz.
Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta
dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controlo
dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma
nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e
implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respetivos juros afastam os
países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real
poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma
evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e
do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a devorar tudo para
aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio
ambiente, fica indefesa perante aos interesses do mercado divinizado,
transformados em regra absoluta.
58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentarem este desafio com determinação e clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano.
182. Os ensinamentos da Igreja acerca de
situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e
podem ser objeto de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem
pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios sociais não se
fiquem em meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as
suas consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas
complexas situações hodiernas». Os Pastores, acolhendo as contribuições
das diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que
diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção
integral de cada ser humano. Já não se pode afirmar que a religião se deve
limitar ao âmbito privado e serve apenas para preparar as almas para o Céu.
Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta Terra, embora
estejam chamados à plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para
nosso usufruto» (1Tm 6,17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a
conversão cristã exige rever, «especialmente, tudo o que diz respeito à ordem
social e consecução do bem comum».
183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos
que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer
influência na vida social e nacional, sem nos preocuparmos com a saúde das
instituições da sociedade civil, sem nos pronunciarmos sobre os acontecimentos
que interessam aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo e
silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá?
Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem
individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo,
transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por
ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a
humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus
anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A Terra é a nossa
casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do
Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à
margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são
chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se
trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e construtivo,
orienta uma ação transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um sinal de
esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, «une o
próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades
eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
185. Em seguida, procurarei
concentrar-me sobre duas grandes questões que me parecem fundamentais,
neste momento da história. Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque considero que
irão determinar o futuro da humanidade. A primeira é a inclusão
social dos pobres; e a segunda, a questão da paz e do diálogo social.
2. A inclusão social dos pobres188 (…)
Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal
interpretada, a palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns atos
esporádicos de generosidade; supõe a criação de uma nova mentalidade que pense
em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos
bens por parte de alguns.
189. A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando encarnam, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros,
dos povos mais pobres da Terra, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos
direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos».
Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como justificação
para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos dos povos
mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso
recordar-se sempre de que o Planeta é de toda a humanidade e para toda a
humanidade, e que o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos
ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos
dignamente. É preciso repetir que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns
dos seus direitos, para poderem colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao
serviço dos outros». Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é
preciso alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou
de outras regiões do próprio país. Precisamos de crescer numa solidariedade que
«permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada
homem é chamado a desenvolver-se».
196. Às vezes, somos duros de coração e de mente,
esquecemo-nos, entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas possibilidades de
consumo e de distração que esta sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie de
alienação que nos afeta a todos, pois «alienada é a sociedade que, nas suas
formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a
realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana».
202. A necessidade de resolver as causas estruturais da
pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter
resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar de uma mazela que a
torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de
assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se
apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente
solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos
mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da
desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo,
problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.
205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de
entrar num autêntico diálogo que vise efetivamente sanar as raízes profundas e
não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma
sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o
bem comum. Temos de nos convencer de que a caridade «é o princípio não só das
microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas
também das macrorrelações como relacionamentos sociais, económicos, políticos».
Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham
verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável
que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas
perspetivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados de saúde
para todos os cidadãos. E porque não recorrerem a Deus pedindo-lhe que inspire
os seus planos? Estou convencido de que, a partir de uma abertura à
transcendência, poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e económica
que ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum
social.
221. Para avançar nesta construção de um povo em
paz, justiça e fraternidade, há quatro princípios relacionados com tensões
bipolares próprias de toda a realidade social. Derivam dos grandes
postulados da Doutrina Social da Igreja, que constituem o «primeiro e
fundamental parâmetro de referência para a interpretação e o exame dos
fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora propor estes quatro princípios
que orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a
construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto
comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro
caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro.
O tempo é superior ao espaço
222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite.
A plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece
pela frente. O «tempo», considerado em sentido amplo, faz referimento à
plenitude como expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é
expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os
cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do
horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai.
Daqui surge um primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o
tempo é superior ao espaço.
A unidade prevalece sobre o conflito
226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado;
deve ser aceite. Mas se ficamos encurralados nele, perdemos a
perspetiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada.
Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda
da realidade.
227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e
passam adiante como se nada fosse, lavam as mãos para poder continuar com a sua
vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o
horizonte, projetam nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações
e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas há uma terceira forma,
a mais adequada, de enfrentar o conflito: é aceitar suportar o conflito,
resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores».
228. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma
comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas
magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual e
consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário
postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social:
a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu
sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da
história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem
alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo
ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva
em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste.
A realidade é mais importante do que a ideia
231. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a
realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve
estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se
da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do
sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é
superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a
realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os
nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os
fundamentalismos anti-históricos, os éticos sem bondade, os intelectualismos
sem sabedoria.
232. A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço
da captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da
realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo,
classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada
pelo raciocínio. É preciso passar do nominalismo formal à objetividade
harmoniosa. Caso contrário, manipula-se a verdade, do mesmo modo que se
substitui a ginástica pela cosmética185. Há políticos – e também
líderes religiosos – que se interrogam por que motivo o povo não os compreende
nem segue, se as suas propostas são tão lógicas e claras. Possivelmente é
porque se instalaram no reino das puras ideias e reduziram a política ou a fé à
retórica; outros esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma
racionalidade alheia às pessoas.
234. Entre a globalização e a localização também
se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair
numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que
é local, que nos faz caminhar com os pés na terra. As duas coisas unidas
impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos
vivam num universalismo abstrato e globalizante, miméticos passageiros do carro
de apoio, admirando os fogos de artifício do mundo, que é de outros, com a boca
aberta e aplausos programados; o outro extremo é que se transformem num museu
folclórico de eremitas locais, condenados a repetir sempre as mesmas coisas,
incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que
Deus espalha fora das suas fronteiras.
240. O cuidado e a promoção do bem comum da sociedade
compete ao Estado. Este, com base nos princípios de subsidiariedade e
solidariedade e com um grande esforço de diálogo político e criação de
consensos, desempenha um papel fundamental – que não pode ser delegado – na
busca do desenvolvimento integral de todos. Este papel exige, nas
circunstâncias atuais, uma profunda humildade social.