terça-feira, dezembro 17

O "ESPALDÃO"

O “ESPALDÃO”

Ao cimo da rua onde nasci, do outro lado da estrada da circunvalação, ficava o “Espaldão”. Era pequena a distância e foi lá que vi pela primeira vez na minha vida rãs a coaxar nas poças e foi lá que tomei a noção de espaço livre. Aprendi o medo de me encontrar perdido, de regressar a casa tarde demais, de ser repreendido, de me esquecer do tempo, ser apanhado numa emboscada ou correr os perigos que afinal não existiam. As redondezas do “Espaldão”, até aos meus oito anos, compreendiam toda a minha vida: a casa onde nasci, as ruas e os becos, os vizinhos, o estabelecimento e o armazém, o ganha-pão da família, o barbeiro, a feira do Carmo, a igreja, a carroça dos cães, os vendedores ambulantes, a rua de terra, o cheiro das estações e, lá mais acima, um lugar de mistérios. O “Espaldão”, ali ao lado da minha cidade, foi a minha primeira natureza antes de conhecer o que era a natureza. Tudo tão perto e tão longe na cidade que era um lugar limitado pelo meu olhar mas sem limites para a minha liberdade.
 
[Publicado em 21 de abril de 2007. Um regresso à infância.]

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