sábado, março 21

DIA MUNDIAL DA POESIA

Em memória do meu irmão Dimas

I
nas minhas mãos sinto
o que não tenho

10 de Fevereiro de 2006

II
o raio de luz estilhaça o espaço
do meu silêncio

11 de Fevereiro de 2006

III
no fim do tempo as cores belas do poente

12 de Fevereiro de 2006

IV
as cidades ocupam o lugar dos campos abandonados
mas é neles que me revejo

17 de Fevereiro de 2006

V
subindo a montanha do tempo descubro
as mãos vazias de nada

19 de Fevereiro de 2006

VI
o tempo corre desvairado e na poeira de seus passos
meu filho se fez homem

21 de Fevereiro de 2006




VII
não me digas não pois mesmo no teu silêncio alisado
eu descubro uma voz que sempre fala e me descobre

23 de Fevereiro de 2006

VIII
Sinto as ruas da infância as pedras gotas de água
ângulos gritos silêncios de dorida e surda mágoa

9 de Março de 2006

IX
Sulcava um ar lavrado de indefinível espessura
o prazer do jogo das palavras não ditas perdura

10 de Março de 2006

X
Pode ser este o último poema a que mais nenhum suceda
como antes do princípio: a palavra recortada no silêncio

10 de Março de 2006

XI
Numa manhã de um dia qualquer subi olhei
do ponto mais alto procurei não vi ninguém

15 de Março de 2006

XII
Sofre-se devagar lentamente as palavras malditas
dos lamentos ecoam nos vagos silêncios do destino

21 de Março de 2006

XIII
Enroscada ao côncavo do corpo a solidão
incendeia o desejo no alvor da primavera

21 de Março de 2006

XIV
Nada acontece de novo desde o tempo luminoso
esboço a sépia quente o teu corpo simplesmente

24 de Março de 2006

XV
Ouço o insuportável zumbido das mágoas
vozes do meu sangue que o tempo apagou

30 de Março de 2006

XVI
Vejo a criação como o lugar dos silêncios
templo vazio prenhe do tempo imaginado

1 de Abril de 2006

XVII
O sol quente irradia primavera à vista do mar
flores saúdam o vento a única força do mundo

3 de Abril de 2006

XVIII
A terra quente a meus pés o pó do carvão ardendo
o frio da manhã fumos soltos o vento sol nascente

4 de Abril de 2006

XIX
No calor da sombra a terra quente subiu
em fúria desordenada rompeu o silêncio

7 de Abril de 2006

XX
Inóspito caminho, o sangue quente latejou
na cavalgada o prazer no dorso da espada

8 de Abril de 2006

XXI
A noite alisando a pele dos sentidos os floria
soletrando silêncios a madrugada amanhecia

10 de Abril de 2006

XXII
Olhei as mãos de seus sulcos emergiam desenhos
inacabados preces sonhos regressos imaginados

12 de Abril de 2006

XXIII
O dia desce sobre a cidade as ruas fumegam
os passos ecoam como corpos vestidos de dor
16 de Abril de 2006
*
XXIV
Um brado difuso me percorre no fio do silêncio
desesperada ausência o rosto na voz esquecida

18 de Abril de 2006

XXV
Se fosse noite ver-te-ia correr em mim
longa carícia colorida, sonho sem fim

20 de Abril de 2006

XXVI
Sabemos de nós tudo através do olhar dos outros

21 de Abril de 2006

XXVII
No cimo a luz branca pontiaguda ilumina
as mãos que tendem o pão da minha vida

3 de Maio de 2006

XXVIII

Como as palavras as imagens, que tomamos como nossas, são um bocado do imaginário que sobrevive à decapitação dos sonhos. Caminhamos por entre escombros.
Quando minha mãe morreu nos meus braços não chorei. Só chorei quando, velando o seu corpo, me surgiu pela frente uma vizinha que frequentava a minha infância. O imaginário, naquele breve momento, tomou de assalto as minhas defesas que ruíram com estrondo.
Percebi a leveza insustentável dos corpos depois de mortos e a infinita fraqueza que se esconde por detrás da nossa aparente normalidade.

S/data

XXIX
Nas pedras irregulares do chão da infância
luminosas as sombras que acolhem os corpos

15 de Maio de 2006

XXX
Fosse meu tudo o que não tem medida certa
seria feliz por possuir o mundo
Tomaria em mãos as diversas artes
sendo múltiplo fingir-me-ia uno
uno por dentro e por fora repartido em partes

19 de Maio de 2006

XXXI
Gosto de iniciar o caminho pelo princípio
Onde não se encontra nada o que abraçar

Inventar tudo desde o começo mesmo sem
A ideia clara do caminho que hei-de rasgar

Buscar a luz que alumia a vida na revolta
Da palavra e na surpresa de afinal confiar

Gosto de sentir o frio na testa desabrigada
Cavar fendas na memória e nelas recordar

O meu mundo secreto único e indivisível
Separado de todos os mundos é outro mar

Gosto de ouvir ao longe sons esquecidos
E nos largos vazios o silêncio a esvoaçar

4 de Junho de 2006

XXXII
Passar o tempo ver passar o passado no presente
Sonhar com as longínquas memórias nas doridas
Noites anoitecidas a ver passar o tempo sedento
De nos devorar o corpo ainda quente dos afagos
Esquecidos de mãos que vagamente escorregam
Pelo esquecimento como todas as mãos milhões
De sinais passaram e deles já todos esqueceram
Os ensinamentos, o toque, a música, o desespero
Passar o tempo deixar em herança esquecimento
Sabendo que mais nada restará senão só o tempo

18 de Junho de 2006

XXXIII
Olhar ao longe por entre a neblina
O mar de verão que acalma a vida

15 de Julho de 2006

XXXIV
Este mar é a luz da minha memória

16 de Julho de 2006
  
XXXV
Sempre o som do mar ao fundo
No silêncio da noite se agiganta
Encosta acima mais nítido puro

21 de Julho de 2006

XXXVI
Branca como sombra reflectida no chão
terra mãe percorrida ao som do silêncio

S/data

XXXVII
Estendo a memória até onde a mão alcança
o tempo submerso resplandece de sabedoria

23 de Novembro de 2006


21 de março - ano de 2015


Tempos conturbados - todos os tempos, afinal, o são cada um a seu modo - mas neste assoma o cheiro acre a fim de regime. Deverei estar enganado pelo menos na medida em que as afirmações de fé radicais quase sempre são desmentidas. Digo quase, pois nos períodos anteriores ao advento dos totalitarismos poucos são os que se atrevem a vaticiná-los. E mesmo, para não ir mais longe, já no pleno exercício dos crimes de regimes totalitários a maioria se acobarda, e os aceita, pois de outra forma não medrariam. Assim ao alcance da nossa memória aconteceu com o nazi fascismo, de várias estirpes, e o estalinismo que duraram muitos anos, produziram guerras de uma crueldade inimaginável e praticaram crimes inomináveis. Venho preencher o espaço branco do ecran porque por essa Europa fora ganham adeptos os lideres de extrema direita, ameaçando ganhar pelo voto, senão o poder, pelo menos o direito a partilhá-lo. E não tenhamos ilusões que se tal acontecer teremos o toque de finados da União Europeia e o advento de uma guerra. E quais serão os efeitos de uma guerra no nosso tempo?    

quarta-feira, março 18

AS EVIDÊNCIAS


XVIII

Deixai que a vida sobre nós repouse
qual como só de vós é consentida
enquanto em vós o que não sois não ouse

erguê-la ao nada a que regressa a vida.
Que única seja, e uma vez mais aquela
que nunca veio e nunca foi perdida.

Deixai-a ser a que se não revela
senão no ardor de não supor iguais
seus olhos de pensá-la outra mais bela.

Deixai-a ser a que não volta mais,
a ansiosa, inadiável, insegura,
a que se esquece dos sinais fatais,

a que é do tempo a ideia da formosura,
a que se encontra se se não procura.

26-3-1954

Jorge de Sena


domingo, março 15

HÉLDER GONÇALVES - uma prenda


As primeiras fotografias que postei neste blogue são de autoria do meu amigo Hélder Gonçalves. É um grande fotógrafo amador, pois a sua profissão é outra na qual, aliás, são elevados os seus méritos. Ontem enviou-me uma fotografia captada no dia 1 de março passado que aqui deixo com os desejos de melhoras e um abraço.  

sexta-feira, março 13

FERRO RODRIGUES


Em 30 de setembro de 2014 publiquei neste espaço pessoal um texto raro a respeito do regresso à "grande política" do Eduardo Ferro Rodrigues. Não tenho como regra fazer a louvaminha dos amigos e, ainda menos, dos amigos de longa data. Mas senti necessidade de escrever o que escrevi e sinto hoje necessidade de reeditar as palavras de saudação que aqui trouxe. Elas, para quem souber entender o seu sentido profundo, explicam as críticas, a meu ver injustas, de que tem sido alvo por estes dias. Multidões de virgens ofendidas clamam pela necessidade urgente de trazer para a política gente honrada, competente e com sentido de serviço público. Cidadãos que, sem prejuízo dos seus naturais defeitos, assumindo funções politicas de relevo, constituam uma barreira às derivas populistas e demagógicas que tanto têm desprestigiado, aos olhos dos cidadãos, a politica, os partidos e a democracia. Mas quando os cidadãos honrados assumem os pesados riscos de uma ativa e empenhada intervenção política aqui del rei que o bom senso é erigido em fraqueza, a competência em maçada e o sentido de serviço público, afinal, numa banalidade.   

Uma escolha é uma escolha. No caso de Ferro Rodrigues é o regresso à "grande política" de quem nunca, na verdade, se afastou. Apenas se ausentou para recobrar forças. Sinto este ressurgimento como um ato de justiça. Vai ser duro para ele conjugar sentimento e razão. O seu regresso à ribalta não anuncia somente o regresso da política, que a vitória de Costa pronuncia, mas um sinal de abertura ao diálogo em todas as direcções. As soluções politicas de governo de futuro não se jogam na tradicional alternativa, pura e dura, esquerda/direita. Nem sequer num jogo de palavras em torno de alternativa versus alternância. É preciso ir mais longe. Fundar um novo modelo de alianças políticas em cuja matriz nem hajam excluídos à partida, nem escolhidos eternos. Um novo pacto social que viabilize uma verdadeira reforma do estado social. É difícil fazer POLITICA que nunca dispense a aceitação da diversidade, a superação das contradições e a busca dos consensos em torno de soluções que satisfaçam o maior número. A sociedade organizada - os cidadãos de todas as condições - espera por propostas nas quais acredite e lhes dêem alento para lutar por um futuro melhor para si e para a comunidade. Políticos são precisos. Por isso o regresso do Ferro Rodrigues é uma boa notícia para além da nossa velha e profunda amizade.  

Wagner - Der Augen leuchtendes Paar. V. Kowaljow; Barenboim, Scala Dece...


quinta-feira, março 12

Dia 12 de março - 2015


Voltando ao tema do nosso tempo político que é um tempo no qual o debate público é uma coisa banal. Um resultado da liberdade de expressão do pensamento. Sempre que acontece, e acontece muitas vezes, que nos sentimos constrangidos no uso da liberdade algo vai mal. Na questão da liberdade o excesso é sempre preferível à escassez. Em qualquer caso o mundo move-se a diversos níveis e na política as forças posicionam-se em permanência para a disputa do poder. É da própria natureza das coisas, com o carácter dos protagonistas pelo meio marcando o tom e o ritmo dos acontecimentos que podem influenciar e, na maior parte dos casos, podem influenciar pouco. Mas voltando ao tema do nosso tempo político questiono-me acerca da viabilidade de conduzir, governo e oposição, cada qual com seus objectivos, mais de seis (6) meses de disputa eleitoral aberta ( para não usar a expressão campanha). É a realidade com a qual cada um em seu mister tem de lidar. Só há uma postura séria neste contexto para quem tem responsabilidade, seja a que nível for, na vida pública: minimizar os erros e não se deixar enredar em enganos.  

sábado, março 7

7 de março - ano de 2015

                                                           
As próximas eleições legislativas - regresso ao assunto - serão realizadas, salvo qualquer solavanco imprevisível no calendário, num dos dias, a escolher pelo senhor PR, 27 de setembro, 4 ou 11 de outubro de 2015, a uma distância de sete (7) meses, desde o presente dia. Nada obsta a que, em democracia, se realizem debates e discussões, se acalorem as polémicas e se avolumem os casos, pois é o mais próprio da democracia liberal. Mas ... acontece que o calendário politico eleitoral tem, neste ano de 2015, uma peculiaridade: à eleição legislativa sucede-se a eleição presidencial (sem intervalo para descanso!), imbricadas uma na outra, condicionando-se mutuamente. E, ainda mais, acontece que nos seis meses antes e após a eleição presidencial (a realizar em janeiro de 2016) o PR não pode dissolver a AR (Artº 172 - 1. A Assembleia da República não pode ser dissolvida nos seis meses posteriores à sua eleição, no último semestre do mandato do Presidente da República ou durante a vigência do estado de sítio ou do estado de emergência.). Ora, no caso desta conjuntura eleitoral, atenta a sequência dos atos eleitorais, o PR, em funções, não poderá dissolver a AR a partir de um dia de finais do presente mês de março/meados do próximo mês de abril, e o próximo PR, eleito em janeiro de 2016, não a poderá dissolver até abril de 2016. Ou há condições para formar governo com o resultado das legislativas ou .... Tudo se resolverá nos termos da lei e dos bons costumes!   

quinta-feira, março 5

5 de março - ano de 2015


É difícil conceber uma campanha eleitoral tão longa no tempo como a que já está em marcha. Mas, ao contrário, mais difícil era entender o tempo em que não havia verdadeiras campanhas eleitorais. Para quem não se lembra esse tempo já existiu - e existe - em muitas partes do mundo e em Portugal estão vivos muitos daqueles que o viveram. Sempre é preferível o confronto aberto das opiniões divergentes, com mais ou menos ruído, ou golpe baixo, do que o silêncio conformista da tirania. Preocupante é o perigo do seu regresso muito bem assinalado hoje pelo 1º ministro francês a propósito do avanço da extrema direita no seu país. Com todos os sobressaltos os países do sul da Europa têm vindo a ser portadores de novos movimentos sociais que, nalguns casos, se transformam em partidos, longe de se fundarem em ideologias fascistas, nazis, ou populistas radicais de direita, mas o mesmo se não pode dizer de França.França é o centro do problema político da Europa no próximo futuro. Não só por fazer parte, com a Alemanha, do núcleo central da ideia da construção da União Europeia - uma ideia destinada à preservação da paz na Europa antes de tudo o mais - como pelo seu peso na economia, história e geopolítica da Europa moderna. Com a eventual emergência de um poder político dominado por um partido de extrema-direita - seja qual for o seu disfarce - a União Europeia estará condenada ao fracasso. E surgirão, em todo o seu terrível esplendor, os sinais de guerra. Estamos cada vez mais perto de um tempo de grandes decisões.      

quarta-feira, março 4

4 de março, ano de 2015


Pelo calendário político previsível deveremos estar exactamente, no dia de hoje, a 7 (sete) meses das eleições legislativas. (uma mera ante visão sem qualquer bússola!) Sem descontos das férias de verão (como será o mês de agosto?) pela amostras dos dias que passam, sete meses de campanha eleitoral. A que se sobreporá outra campanha - a presidencial - que se estende até janeiro. A que se sobreporá o processo de formação do governo, saído do resultado das legislativas, em plena pré campanha presidencial. Só falo, está bem de ver do calendário.  Nem de conteúdos políticos, nem dos tons dos debates, nem dos protagonistas, nem dos acontecimentos políticos inesperados, nem das surpresas de conjuntura da economia nacional e internacional, nem de eventuais conflitos bélicos, nada de nada, somente de calendário, ou seja, de tempo.  

segunda-feira, março 2

2015 - dia 2 de março


Houve um tempo em que acreditei na bondade intrínseca do homem, a velha crença na superioridade da filosofia de Rousseau, misturada com uma longa vivência, enquanto jovem adulto, por razões históricas, no período dos chamados 40 anos gloriosos, do crescimento económico que se julgava iria perdurar para todo o sempre. Deveria saber por uma miríade de outras razões, oriundas da religião na qual fui educado, nos livros que li e nas experiências que vivi, que não é assim. O homem não é naturalmente bom. Mas sou obrigado a fazer um esforço para assumir esta negação da bondade intrínseca do homem. Mas não posso mais deixar-me iludir. Vamos caminhando.

domingo, março 1

2015 - dia 1 de março


Este espaço existe há mais de um decénio porque o seu autor, identificado, assim o quer. É uma janela entre milhões de janelas através da qual eu olho a rua – o espaço público – e comunico, em liberdade, com aqueles que por vontade própria, ou por mero acaso, decidem visitá-lo. Hoje por hoje é uma banalidade dispor de um espaço desta natureza, talvez mesmo um pouco antiquado, face a outros meios que entretanto surgiram e que, no conjunto, criaram uma rede cujos densidade e propósitos vão muito além, suponho, do que a mais hilariante imaginação pode supor. Nada busco com esta presença continuada senão manter aberta essa ínfima janela com o exterior, no fundo, comunicar dando expressão a uma vontade própria de reunir a minha voz a outras vozes que, por uma qualquer razão, estejam disponíveis para ouvir. Hoje o meu filho chegou da Áustria, onde regressará mais tarde, e tudo correu bem. O gato ficou feliz. Hoje, dia 1 de março do qual, por razões que desconheço, sempre gostei muito.     

sexta-feira, fevereiro 27

"Quando não se tem carácter é preciso ter método."


Eu moro no bairro judeu, ou o que assim se chamava até ao momento em que os nossos irmãos hitlerianos limparam tudo. Que barrela! Setenta e cinco mil judeus deportados e assassinados, é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem carácter, é preciso ter método.” 

Albert Camus, in "A Queda"

quarta-feira, fevereiro 25

SETE POEMAS DE AMOR E MORTE - PELO 10º ANIVERSÁRIO DA MORTE DO MEU IRMÃO DIMAS












O chão branco de fogo cega o olhar
Longe a coroa de mar envolve a terra
E os sonhos rasam o teto do mistério

II

A parede milenar suspensa deixa ver
O passado remoto e as vozes ressoam
Pelo ar de boca em boca sussurradas

III

A risca amarela marca um tempo eterno
E os sinais de fogo desenhados a quente
Na memória fixam o momento da morte

IV

A lápide gravada a letras claras assinala
O tempo que se desfez na mão fechada
Torrão quente que faz do corpo semente

V

A eira debandou do trigo elevado ao céu
E as ervas tomaram a forma de regatos
Correndo para as nascentes fulminadas

VI

Toca a corneta na estrada anunciando
O peixe e os corpos jovens banham-se
Na sombra fresca do arvoredo ardente

VII

Fixo o olhar perdido à beira do poço
E a pedra lançada ao fundo não ecoa
Canção de amor à morte desesperada


Lisboa, 22 de Março de 2005

segunda-feira, fevereiro 23

JOSÉ AFONSO - PELO 28º ANIVERSÁRIO DA SUA MORTE

José Afonso (canto inferior esquerdo) na época em que foi professor provisório na Escola Industrial e Comercial de Faro (de 7 de Outubro de 1958 a 18 de Julho de 1959). Com a curiosidade de nesta fotografia, certamente tirada no Campo de Futebol de S. Luís, em Faro, surgir o Dr. Emílio Campos Coroa (de óculos escuros com um ramo de flores). 

quinta-feira, fevereiro 19

Os Holandeses ...


"Os holandeses, oh!, são muito menos modernos! Têm tempo, repare neles. Que fazem? Ora bem, estes senhores vivem do trabalho daquelas senhoras. São, de resto, machos e fémeas, umas burguesíssimas criaturas que têm o costume de vir aqui, por mitomania ou estupidez. Em suma, por excesso ou falta de imaginação. De tempos a tempos, estes senhores puxam pela faca ou pelo revólver, mas não julgue que com muito empenho. O papel exige, eis tudo, e morrem de medo, disparando os últimos cartuchos. Posto o que, acho ainda mais moralidade neles que nos outros, aqueles que matam em família, pelo desgaste. Não notou ainda que a nossa sociedade está organizada neste género de liquidação? Já ouviu falar, naturalmente, daqueles minúsculos peixes dos cursos de água brasileiros que se lançam aos milhares sobre o nadador imprudente e o limpam, em alguns instantes, a pequenas bocadas rápidas, não deixando mais que um esqueleto imaculado? Pois bem, é essa a organização deles. «Quer uma vida limpa? Como toda a gente?» Dirá que sim, naturalmente. Como dizer que não? «De acordo. Vai ficar limpinho. Aqui tem um emprego, uma família, lazeres organizados.» E os dentes minúsculos cravam-se na carne até aos ossos. Mas sou injusto. Não é a organização deles que se deve dizer. Ela é a nossa, ao fim e ao cabo: é a ver quem limpará o próximo." 

Albert Camus, in A Queda

domingo, fevereiro 15

fevereiro de 2015 - dia 15 (tão cedo não acontece...)


Ao fim do dia, já noite, a meio de um mês de fevereiro frio de 2015, 50 anos passados sobre o infame assassinato do General Humberto Delgado, soube-se, através de um vídeo divulgado hoje, que o chamado estado islâmico degolou, na Líbia, 21 egípcios capturados por serem cristãos. O ocidente europeu, através dos seus dirigentes, eleitos pelo povo, pela via democrática, entretanto degladiam-se em torno da disputa do poder no seu espaço físico, desde a guerra clássica pela conquista de territórios, definição de fronteiras e rotas, até à luta por quotas de mercado para os seus bens e serviços, passando pela definição do valor relativo da força de trabalho e do capital, papel e dimensão do estado social,.... (mapas, compassos, orçamentos, armas, ...).
É como se fosse uma velha família reunida em torno de uma intrincada questão de heranças após a morte dos pais que conceberam um modelo e fizeram fortuna através do uso de uma sabedoria urdida pela guerra mas que ao longo de 60 anos de paz se perdeu. Não conheço os meandros, não posso nem quero conhecê-los, somente vejo as manifestações exteriores através das imagens, letras e sons que me chegam - as que chegam, adivinho que muitas manipuladas - mas as caras dos protagonistas mais ou menos simpáticas, austeras, cansadas ou estarrecidas, mostram mais desorientação do que determinação e sentido de estado.
Políticos prisioneiros de mudanças que não foram capazes de antecipar? O que são e para que servem? Esta é, afinal, uma mera apreciação impressionista que a realidade no próximo futuro pode desmentir e tudo acabar numa grande festa com desfiles militares aclamados por multidões agradecidas e bailes populares de regozijo pela paz.              

sábado, fevereiro 14

fevereiro - dia 14

O que me apetece escrever neste final de dia chuvoso, invernal, é simplesmente que o mundo está perigoso. Chovem notícias de acontecimentos com ressonâncias de guerra sendo as restantes acerca de negócios, falências, empréstimos, resgates, negociações, dixotes nacionalistas, dinheiro, milhões de milhões de que se desconhece o rasto ou se descobre o rastro. Cheira a dinheiro sujo saído de negócios obscuros, manchado de sangue suor e lágrimas de gente honesta, trabalhadores, aforradores ..., dinheiro oriundo de rendimentos do trabalho e do capital honestos, desviado por uma horda de gente que se acoita sob os mais diversos poderes que ninguém tem a coragem de denunciar de forma directa e frontal. Espera-se que uma guerra, desta vez mundial, resolva o imbróglio?  Enojante!


quarta-feira, fevereiro 11

General Humberto Delgado - nas vésperas do 50º aniversário do seu assassinato


Terminada a leitura da Biografia de Humberto Delgado, de autoria de seu neto Frederico Delgado Rosa, não resisto a deixar algumas notas. Na minha meninice – como já antes assinalei – senti pessoalmente o frémito da campanha presidencial de 1958 e nunca mais se apagaram da minha memória as imagens do empolgamento popular que a figura de Humberto Delgado suscitou.

Esta obra promissora de desenvolvimentos, e aprofundamentos, que se aguardam para o próximo futuro, mereceria, além do mais, uma verdadeira divulgação popular que contribuísse para desmitificar o branqueamento do fascismo português e da figura do seu líder e mentor – Salazar – que amiúde se quer fazer passar como um político brando na repressão, tolerante nos costumes e eficaz na política.

A leitura das 1225 páginas de texto deste livro sugere uma meditação acerca do "fenómeno Humberto Delgado", após o golpe militar de 28 de Maio de 1926, até aos nossos dias, mesmo que não nos aventuremos pelos caminhos da crítica e nos limitemos – como é o caso – ao simples papel de leitores atentos e interessados. Eis algumas breves, e despretensiosas, dessas possíveis reflexões:

(1) É do mais elementar bom senso desconfiar das ideias feitas acerca da história, em particular, da “história oficial”, quando envolve personagens carismáticos e acontecimentos com forte carga política e emotiva;

(2) Os protagonistas que marcam, pelo seu pensamento e acção, a história das nações são homens com suas virtudes e defeitos transformando-se a si próprios a par das transformações que suscitam;

(3) O General Humberto Delgado foi um distinto militar de carreira, apoiante do golpe militar do 28 de Maio, e da ditadura entre 1926 e o dealbar dos anos 50, tendo acabado por sacrificar a carreira, e a própria vida, no combate sem tréguas ao regime fascista, após a ruptura política com Salazar, a partir das eleições presidenciais de 1958, às quais se candidatou, como independente, por vontade própria;

(4) Foi ele o verdadeiro precursor do 25 de Abril de 1974 pois defendeu (quase sempre) que a ditadura só cairia através da acção militar, que haveria de ser protagonizada pelas forças armadas, apoiadas pelo povo, o que viria, de facto, a acontecer pouco menos de nove anos após o seu assassinato que ocorreu em 13 de Fevereiro de 1965;

(5) Delgado foi, politicamente, um liberal democrata, fortemente influenciado pela cultura anglófona, e pela sociedade americana (o que lhe valeu o magnífico epíteto de “General Coca Cola”) influências assumidas ao longo de várias missões profissionais – em representação do estado português - na Inglaterra, Estados Unidos e também no Canadá;

(6) Delgado foi um político que nunca deixou de ser General e de cuja áurea anti-salazarista a esquerda, do seu tempo, se quis apropriar sem, na verdade, partilhar das suas ideias e acções, que desprezava apodando-as, pelo menos, de aventureiras;

(7) O General Humberto Delgado foi atraído a uma cilada e assassinado pela PIDE, por espancamento, e não a tiro, com conhecimento de Salazar, que sempre encobriu este hediondo crime, sob as mais variadas artimanhas, no plano interno e da diplomacia, entrando, inclusive, em rota de colisão com Franco;

(8) O julgamento dos autores materiais do crime – que não dos seus autores morais que sempre foram poupados pela democracia – em Tribunal Militar – foi uma triste farsa que não permitiu apurar a verdade e muito menos punir os criminosos;

(9) Todo o processo desde o assassinato de Delgado, passando pelo encobrimento do crime, à descoberta dos corpos, à investigação judicial e perícias forenses, realizadas pelas autoridades espanholas, até à condução do processo judicial em Portugal, julgamento e recursos judiciais, constitui um caso exemplar que permite, nos planos político e judicial, entender muitos aspectos da realidade contemporânea portuguesa e as peripécias de processos que ainda correm os seus trâmites;

(10) Este livro deveria ser de leitura obrigatória para todos os políticos, militares, juízes, magistrados, jornalistas e decisores de todos os escalões da hierarquia do estado a começar pelo Senhor Presidente da República;

(11) Espero que o autor, cuja coragem não pode ser só uma herança de sangue, prossiga as suas investigações para que os portugueses possam conhecer todos os meandros do assassinato de Humberto Delgado, para que sejam identificados os seus autores, materiais e morais, assim como os encobridores, localizados os que ainda possam estar vivos, reabrindo, eventualmente, o processo, levando a que os criminosos paguem pelos seus actos e contribuindo, dessa forma, para que os portugueses se reconciliem com a justiça do seu país.

(12) Nunca nenhum processo-crime está definitivamente encerrado enquanto subsistirem fundadas suspeitas de que se não fez justiça. É o caso.

[Publicado em agosto de 2008, após a leitura da sua biografia.]

segunda-feira, fevereiro 9

Tudo é de temer.


Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é pois inevitável. Mas não o devemos reconhecer. Quem não pode fugir a ter escravos, não valerá mais que os chame homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para os não desesperar. É-lhes bem devida esta compensação, não acha? Deste modo eles continuarão a sorrir e nós manter-nos-emos de consciência tranquila. Sem o que, seríamos forçados a voltar-nos para nós mesmos, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, tudo é de temer.

Albert Camus, in A Queda"

sexta-feira, fevereiro 6

"CARTAS A UM AMIGO ALEMÃO"


« […] Acontece-me, por vezes, ao voltar de uma dessas curtas tréguas que nos deixa a luta comum, pensar em todos os recantos da Europa que conheço bem. É uma terra magnífica, feita de sacrifícios e de história. Revejo as peregrinações que fiz com todos os homens do Ocidente. As rosas nos claustros de Florença, as tulipas douradas de Cracóvia, o Hradschin com os seus paços mortos, as estátuas contorcidas da ponte Karl sobre Ultava, os delicados jardins de Salzburgo. Todas essas flores, essas pedras, essas colinas e essas paisagens onde o tempo dos homens e o tempo da natureza confundiram velhas árvores e monumentos! A minha memória fundiu essas imagens sobrepostas para delas formar um rosto único: o da minha pátria maior. Algo me oprime quando penso, então, que sobre esse rosto enérgico e atormentado paira, desde alguns anos, a vossa sombra. E no entanto, há alguns desses lugares que você visitou comigo. Eu não imaginava, nessa altura, que fosse um dia necessário defendê-los contra os vossos. E agora ainda, em certos momentos de raiva e desespero, lamento que as rosas possam ainda crescer no claustro de São Marcos, os pombos lançar-se em bandos da catedral de Salzburgo e os gerânios vermelhos germinarem incessantemente nos pequenos cemitérios da Silésia.

Mas, noutros momentos, e são esses os verdadeiros, sinto-me feliz que assim seja. Porque todas as paisagens, todas as flores e todos os trabalhos, a mais antiga das terras, vos demonstram, em cada Primavera, que há coisas que não podereis abafar no sangue. […] Sei assim que tudo na Europa, a paisagem e a alma, vos rejeitam serenamente, sem ódios desordenados, mas com a força calma das vitórias. As armas de que dispõe o espírito europeu contra as vossas são as mesmas que nesta terra sempre renascente fazem crescer as searas e as corolas. O combate em que nos empenhamos possui a certeza da vitória, porque é teimoso como a Primavera
[…] » 

Albert Camus, in Cartas a um Amigo Alemão, Carta Terceira (Abril de 1944).

Uma daquelas coisas raras do mundo ...

A expectativa de nevar a sul, porventura excessivamente optimista, anima-me. É uma daquelas coisas raras do mundo!


domingo, fevereiro 1

2 de fevereeiro de 1954 - neve a sul


Foi através da leitura de “O aprendiz de Feiticeiro” de Carlos de Oliveira que, na minha memória reluziu a data em que, acontecimento raro, caiu neve em Lisboa e também – imaginem - em Faro.

No extremo sul de Portugal, à beira mar, terra de temperatura moderada, o surgimento da neve foi um acontecimento inusitado que perdurou na memória de todos.

Eis o excerto daquele belo livro do grande poeta português - Carlos de Oliveira– nascido no Brasil – a propósito daquele acontecimento memorável:

“Contudo, relato a seguir o que me aconteceu na noite de 1 para 2 de Fevereiro de 1954, quando venci por fim a proibição interior e alinhei sem emendas ou hesitações os sessenta e três versos da primeira fala de “O Inquilino”….”

(…)“E entramos por fim no que mais interessa: acabado o impulso das primeiras palavras, afastei a cadeira distraidamente e levantei-me, tentando delinear o seguimento da peça, cuja ideia me surgira só no acto de escrever. Nenhum plano anterior, nenhum esboço. Levantei-me e andei para a janela, metido na pele do inquilino, perguntando a mim mesmo (ou a ele) se não haveria outras perguntas a fazer antes duma decisão que podia ferir o equilíbrio do mundo ou coisa parecida. Foi quando a madrugada explodiu numa féerie mais ou menos nórdica, como se tivesse realmente bastado mexer na cadeira, na ordem pré-estabelecida do quarto, para desencadear o imprevisto: uma tempestade de neve em Lisboa.” (…)
 

A revolta do corpo ...


"Ao fim de dois mil anos de cristianismo, a revolta do corpo. Foram precisos dois mil anos para que de novo surgisse a nudez nas praias. Consequentemente, o excesso. E o corpo reencontrou o seu lugar nos usos. Falta ainda dar-lhe de novo o seu lugar na filosofia e na metafísica. É um dos sentidos da convulsão moderna."

Albert Camus, in Caderno n.º 5 (Setembro 1945/Abril 1948) – Tradução de António Quadros. Edição “Livros do Brasil”. (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

BEETHOVEN - Symphony no. 3 "EROICA" - Leonard Bernstein (1)

Mahler: Symphony No. 1 / Rattle · Berliner Philharmoniker

Sibelius: Symphony No. 1 / Rattle · Berliner Philharmoniker

sexta-feira, janeiro 30

NUNO TEOTÓNIO PEREIRA - 93 ANOS


O Arquitecto Nuno Teotónio Pereira é uma daquelas personalidades raras na qual se juntam um notável curriculum profissional e uma postura de intervenção cívica, persistente e pertinente, assumida desde os tempos da oposição à ditadura. Ele é, na verdade, um dos arquitectos portugueses contemporâneos que foi capaz, como poucos, de integrar, sem cedências à facilidade, as preocupações sociais e a arte de «arquitectar». Há por esse país muitas obras de sua autoria, ou co-autoria, que testemunham esta simbiose. 

Nos tempos de brasa do 25 de Abril foi um dos mais proeminentes dirigentes do MES, posição que saiu reforçada aquando da ruptura do grupo de Jorge Sampaio, ocorrida no 1º Congresso de Dezembro de 1974. O MES, na sua curta existência, só participou, de parte inteira, nas duas primeiras eleições da nossa III República: as eleições para a Assembleia Constituinte, disputadas em 25 de Abril de 1975, e as primeiras eleições para a Assembleia da República disputadas em 25 de Abril de 1976.

As nossas esperanças iniciais eram muitas elevadas. A lista do MES, pelo círculo de Lisboa, às eleições para a Assembleia Constituinte, foi encabeçada pelo Afonso de Barros a que se seguiram o Eduardo Ferro Rodrigues, o Augusto Mateus e o Luís Martins (padre, ainda a exercer…). A lista candidata às primeiras eleições legislativas, realizadas em 25 de Abril de 1976, foi encabeçada pelo Nuno Teotónio Pereira, seguido do subscritor destas linhas. 

Poder-se-ia pensar que o MES havia encontrado o seu líder. Puro engano. Ao contrário dos restantes partidos, sem excepção, a personalidade que encabeçava a lista por Lisboa nunca foi, no caso do MES, o líder do partido pela simples razão de que no MES nunca existiu um líder. O que hoje penso é que, por incrível que pareça, sempre assumimos, do princípio ao fim, o que poderia designar-se como uma obsessão pelo colectivo. 

Estávamos perante as primeiras eleições, verdadeiramente, livres e democráticas, após quase 50 anos de ditadura. Ainda hoje me interrogo como foi possível que tenhamos, no MES, encarado essas eleições, cuja transcendência política era inegável, como meros actos de pedagogia, mais do que actos destinados à disputa do poder. Ainda hoje me questiono acerca das raízes da concepção que permitiram à UDP (com o BE ainda tão longe!) ter obtido, nas eleições para a Assembleia Constituinte, menos votos do que o MES, a nível nacional, e feito eleger um deputado.

Existem muitas evidências dessa atitude de participação «não interesseira» do MES, desde o discurso anti-eleitoralista, que emanava de uma desconfiança, de raiz ideológica, acerca da verdadeira natureza da democracia representativa que, na verdade, aceitávamos como um mal menor, até à ausência de sinais de personalização nas campanhas eleitorais nas quais nunca foram utilizadas sequer fotografias dos cabeças de lista pelo círculo de Lisboa. A participação nas campanhas, embora tenha utilizado todos os meios, à época disponíveis, nunca cedeu um milímetro à personalização.

Após o fracasso da candidatura do MES à constituinte, ainda mais me parece estranho, a tão grande distância, a abdicação de personalizar na figura do Nuno Teotónio Pereira a campanha para as eleições destinadas a eleger a 1ª Assembleia da República. A sua participação como cabeça de lista pode ser interpretada, não me lembrando dos detalhes do processo decisório, como uma tentativa de credibilizar o MES jogando na refrega eleitoral a figura do seu mais proeminente dirigente. 

Mas, ao contrário do que aconselharia a mais elementar lógica eleitoral, a campanha não valorizou a figura do Nuno Teotónio Pereira o que acabou por constituir o haraquiri político eleitoral do MES. Lembro-me de ter ocupado o segundo lugar nessa lista e do desconforto que senti quando, chegada a hora de votar, numa secção de Benfica, no meio da multidão, comovido até às lágrimas, sozinho, pressenti a derrota inevitável. E essa derrota foi ainda mais pesada do que aquela que averbámos nas eleições para a Assembleia Constituinte.

Se há uma personalidade que não merecia sair derrotada da aventura política do MES é o Nuno Teotónio Pereira a quem, como escrevi, em 2004 , devemos todos, os jovens quadros dos anos 60 e 70, uma imensidade de ensinamentos, gestos de desprendida solidariedade e humanidade que jamais poderemos retribuir com a mesma intensidade e sentido de dádiva. 

Que viva!

Pelo 93º aniversário de Nuno Teotónio Pereira.

quinta-feira, janeiro 29

O que ilumina o mundo ...

“O que ilumina o mundo e o torna suportável é o habitual sentimento que temos dos nossos laços com ele – mais particularmente do que nos liga aos seres. As relações com os seres ajudam-nos sempre a continuar porque pressupõem desenvolvimentos, um futuro – e também porque vivemos como se a nossa única tarefa fosse precisamente o manter relações com os seres.

Mas nos dias em que nos tornamos conscientes de que não é a nossa única tarefa, sobretudo nos dias em que compreendemos que só a nossa vontade conserva esses seres ligados a nós – deixem de escrever ou de falar, isolem-se e verão como eles fundem em vosso redor – verão como a maioria está na realidade de costas voltadas (não por malícia, mas por indiferença) e que o resto conserva sempre a possibilidade de se interessar por outra coisa, quando imaginamos desta forma tudo quanto entra de contingente, de jogo das circunstâncias no que costuma chamar-se um amor ou uma amizade, então o mundo regressa à sua noite e nós a esse grande frio de que a ternura humana por um momento nos tinha afastado.”


Albert Camus, in Caderno n.º 4 (Janeiro 1942/Setembro 1945)

Fotografia de Hélder Gonçalves

domingo, janeiro 25

25 de janeiro - Grécia


Tenho observado com frequência a pouca atenção que as pessoas dão às palavras. Explico-me. Um homem simples (com simples não quero dizer parvo, e sim não-eminente) tem uma opinião, critica uma instituição ou crença geral; sabendo que a maioria das pessoas não pensa assim, cala-se, na suposição de que não vale a pena falar, pois o que pudesse dizer não mudaria coisa alguma. Trata-se de um erro grave. Eu ajo de outro modo. Por exemplo, sou contra a pena de morte. Sempre que me aparece uma oportunidade, manifesto-me a respeito, não porque ache que, com isso, o Estado a vá abolir, mas porque estou convencido de que assim contribuo para o triunfo das minhas ideias. Pouco me importa que ninguém concorde comigo. O que eu disse não foi em pura perda. Talvez alguém repita minhas palavras e elas cheguem a ouvidos que as ouçam e as perfilhem. Quem sabe se futuramente algum daqueles que ora discordam de mim não se vai lembrar, numa ocasião propícia, daquilo que eu disse e convencer-se ou pelo menos sentir abalada sua opinião em contrário. - O mesmo vale para diversas outras questões sociais, das que exigem acção. Reconheço que sou tímido e não sei agir. Por isso limito-me a falar. Não acho, porém, que minhas palavras sejam em vão. Outro agirá, mas essas palavras – de mim, o tímido, - terão facilitado 
a acção e limpado o terreno.
KAVAFIS, K. Reflexões sobre Poesia e Ética. SP: Ática, 1998

sábado, janeiro 24

GRÉCIA


As eleições na Grécia do próximo domingo fazem-me lembrar (exagero, está bem de ver) um 25 de abril em janeiro. Um tempo diferente. Um confronto semelhante. Hoje a Grécia não é um país isolado na Europa, integra a UE e, apesar de todas as dúvidas, através de uma decisão politica, adoptou o € como moeda. Um confronto semelhante por ter atingido um ponto de ruptura social -  um povo com índices de pobreza, desemprego e desesperança insuportável. Dirão os cínicos que  todo o sofrimento e desesperança é suportável. Mas aí teremos que regressar ao tempo das trevas, das masmorras e dos julgamentos sumários pela simples aspiração a viver com decência e liberdade. A Grécia, e as suas eleições de 25 de janeiro, são um teste de stress à UE e ao €, no final de contas, à sua capacidade para assumir e praticar, indo além dos cálculos mercantilistas, a solidariedade de um espaço económico, social e... cultural comum. Um teste, afinal, que tem como cenário o país que é o berço da cultura ocidental - tão incensada nos últimos tempos - e onde nasceu a democracia, tendo ousado levar à prática uma velha utopia que se tornou realidade.

quinta-feira, janeiro 22

ORDEM


“Fala-se agora muito de ordem. Porque a ordem é uma coisa boa que bem falta nos fez. […] Evidentemente, a ordem de que se fala muito hoje é a ordem social. Mas a ordem social é somente a da tranquilidade nas ruas? Não é certo. […] Talvez ajude para saber o que é a ordem social a comparação com a conduta individual. Quando dizemos nós que um indivíduo pôs a sua vida em ordem? Quando ele vive de acordo com ela e conformou a sua conduta ao que julga verdadeiro. Um insurreto que, sob a desordem das paixões, morre por uma ideia que fez sua, é na verdade um homem de ordem, porque ordenou toda a sua conduta segundo um princípio que lhe parece evidente. Mas não podemos nunca dizer que tem a vida em ordem um privilegiado que faz regularmente, durante toda a sua vida, três refeições por dia, e baseia a sua fortuna em valores seguros, mas que se fecha em casa quando ouve barulho na rua. Trata-se somente de um homem com medo e poupado. E se a ordem francesa fosse a da prudência e a da secura do coração, estaríamos tentados a ver nela a pior das desordens, já que, por indiferença, se passariam a permitir todas as injustiças. De tudo isto se concluiria que não há ordem sem equilíbrio e sem acordo. Não basta exigir ordem para bem governar, porque bem governar é a única forma de atingir uma ordem que faça sentido. Não é a ordem que dá força à justiça, mas a justiça que dá a certeza da ordem.“

Albert Camus, in "Atuais". 

sábado, janeiro 17

janeiro - dia 17


De súbito os governos dos países europeus - que integram a UE - surgem em cena assumindo todo o protagonismo na luta anti terrorista. Os responsáveis políticos da UE, e as suas instituições, passam a plano secundário. É como se se tivesse assumido uma estranha especialização: aos governos nacionais a politica, à UE a exigência que os governos nacionais cumpram as metas dos tratados. Assiste-se, sem escândalo, ao espectáculo do regresso em força dos nacionalismos em desfavor das conquistas de uma Europa como espaço de partilha de políticas comuns. Basta olhar às imagens das manifestações de Paris! A política acantona-se nas sedes dos governos nacionais, tendo desertado das instâncias da União Europeia. Resistirá a UE sem politica comum nas áreas militar e de defesa?    

quinta-feira, janeiro 15

janeiro, dia 16

                                                       Fotografia de Hélder Gonçalves

Um mundo de violência, dividido pela posse da riqueza, como sempre ao longo da história, pela posse das matérias primas, das rotas, dos territórios; disputas pelo domínio da terra, do mar, do espaço vital, com guerra sempre à vista mesmo quando predomina a paz; cegueira ideológica, idolatria por chefes, desprestígio do sagrado, sedução e culto pelo dinheiro, sempre com novas formas, escalas e artes de cativar a maioria. A tirania espreita na esquina da intolerância. É preciso que se ergam vozes e luzam rostos capazes de, com realismo e coragem, enfrentarem, uma vez mais, o totalitarismo que, sob diversas vestes, se insinua por entre os povos que trabalham e aspiram à paz e à liberdade.  

segunda-feira, janeiro 12

RONALDO - UMA VEZ MAIS


Já escrevi muitas vezes acerca do Ronaldo, futebolista de profissão, como do futebol escrevi também, não tanto como acerca de Camus, ou citando-o amiúde, que também amava o futebol, tal como o sol, a água, a praia, gente do sul, e uma vez mais o celebro, Ronaldo, um homem que agradece num palco do mundo, na sua lingual mãe - o português. Bem haja!  

domingo, janeiro 11

11 de janeiro - 2015


W. Whitman. «Lorsque la liberté s´en va de quelque part, elle n´est pas la première chose à s´en aller. Elle attend que toutes les autres s´en aillent, elle est la toute dernière.»
Albert Camus

“Carnets – III” - Cahier nº VII (Mars 1951/Juillet 1954)
Gallimard

sexta-feira, janeiro 9

DIAS DIFÍCEIS PARA A FRANÇA E PARA O MUNDO

                                                  Fotografia de Hélder Gonçalves

Fim de tarde/noite em Lisboa, cidade pacata de um país chamado Portugal, com uma longa história, que nunca deixou de ser europeu continental e ao mesmo tempo europeu atlântico, pela cultura e pela geografia. Portugal que foi, pelos idos dos séculos XV/XVI, uma potência global, dizem os entendidos - ao contrário de outras narrativas - a primeira de todas criando, mar afora, um império em rede tanto mais surpreendentemente grandioso quanto diminuta a sua dimensão demográfica e económica. Quando nos deixamos acantonar neste espaço diminuto de terra, rodeado do grande mar, perdemos força e influência na politica europeia e global. A União Europeia não pode servir para diminuir cada um dos seus membros. Tem que servir para os engrandecer num projecto comum evoluindo para a integração politica, projecto ousado, original e difícil, salvo se quiser dar-se ao sacrifício de uma inevitável implosão. A diversidade das Nações europeias, com seus povos, no espaço físico europeu, enquanto projecto politico comum, é uma vantagem num mundo que não mais será um conglomerado de autarcias. Os acontecimentos por estes dias em França estimulam, certamente, sentimentos nacionalistas extremos. É certo e sabido não sendo necessário ser especialista em politica internacional para o pressentir. Mas, ao mesmo tempo, é uma janela de oportunidade para que os dirigentes políticos democratas, exercitem, à vista de todos, capacidade para conciliar autoridade e tolerância, aspiração à justiça e defesa da liberdade. O Presidente francês tão impopular aos olhos da opinião pública francesa, tão desprezado pelos seus pares, julgo não me enganar, tem mostrado, neste momento difícil, perante acontecimentos dramáticos, uma dimensão de homem de Estado que é apreciável e deve ser reconhecida. Domingo próximo a França vai sair à rua pela liberdade. Estarei de corpo inteiro em Portugal como se marchasse pelos Campos Elísios. Portugal deveria estar representado nessa manifestação ao mais nível do Estado como parte de uma estratégia da sua afirmação no espaço comum europeu.            

segunda-feira, janeiro 5

CHOREI POR TI EUSÉBIO

Faz hoje um ano que morreu Eusébio. Nesse dia chorei por ele. Um herói e um símbolo para gerações de portugueses. O futebol é um jogo coletivo mas nele avultam alguns jogadores que o tornam mágico. Eusébio era um deles e desde criança me fez sonhar e acreditar que os mais fracos sempre podem vencer os mais fortes. Deixo em sua homenagem um texto que em tempos escrevi neste blogue em homenagem ao futebol. QUE VIVA!

Uma multidão no estádio, em nossa casa, parece-nos sempre pequena. Amigável. Conhecemos muitos rostos. Mesmo as vozes nos são familiares. Os ditos, as recriminações, “seu isto, seu aquilo …”. Uma multidão que incentiva os ídolos de um tempo que é o nosso é como se fosse alguém da nossa família. Os momentos de glória exigem uma multidão que aclame os heróis. Vista de longe a multidão é anónima. Uma massa de gente que grita, aclama, protesta e gesticula. Vista de perto é um mundo de paixões e afectos que se partilham com fervor. As claques podem ser uma degenerescência das multidões que aplaudem por puro prazer apoiando os seus à vitória. O tumulto pode substituir a festa. Mas a essência do futebol é a festa. A partilha do prazer entre pobres, remediados e ricos; homens e mulheres; crianças, jovens e velhos, misturados na turba que ferve na crença na vitória que, tantas vezes, se transforma na melancolia da derrota. A multidão que se manifesta mostra a alma de um povo que aspira a libertar-se das rotinas do trabalho e das agruras da vida. A história das multidões, para o bem e para o mal, é uma parte da própria história das nações, cidades, associações e famílias. O futebol é o sol que ilumina a vida da maioria nas comunidades.