quarta-feira, dezembro 8

Ir à rua

A rua é uma instituição urbana. Os meus antepassados próximos, de origem rural, conheciam mal este conceito. O advento da sociedade urbana atribuiu um estatuto especial a “ir ao campo”. Mas, durante séculos, para os rurais o grande dia era o da feira que os levava a “ir à cidade”.

A geração dos “babby-boomers”, de que faço parte, experimentou a fase final desta contradição. Lembro-me da impressão que me causou o filme de Renoir, “Passeio ao Campo”.

Lembro-me dos meus passeios ao monte dos meus avós maternos que, ainda nos anos 70, não tinham energia eléctrica em casa tendo assistido, impotentes, à instalação, mesmo ao pé da porta, de dois postes que suportavam a linha que fornecia a energia a Tavira mas não os alimentava a eles.

Senti o encanto da grande urbe de Lisboa ainda mal tinha resolvido a contradição “cidade/campo”. Nos primeiros dias, após a minha chegada definitiva a Lisboa, caminhei a pé pela Baixa, calcorreei as ruas dos bairros da Estrela, Campo de Ourique e da Lapa. Até que os pés aguentassem. Só. Fiz a carreira do eléctrico 28 dos Prazeres à Graça e da Graça aos Prazeres. Lindas as palavras que identificam estes dois bairros de Lisboa.

Caminhar pelas ruas da cidade de Lisboa era uma alegria. A partir de certo momento tornou-se uma aventura e um risco. Não pelo trânsito nem sequer pela delinquência que, em Lisboa, sempre foi uma brincadeira de crianças se comparada com outras urbes da Europa ou das Américas.

Mas porque em certas esquinas, à noite, nas saídas tardias das tertúlias ou das actividades associativas (subversivas?), surgiam vozes cavas e anónimas que pronunciavam o nosso nome em tom ameaçador. Porque ao caminhar pela rua surgiam interpelações ameaçadoras de desconhecidos que nos acotovelavam. Porque o regresso a casa, à noite, tinha de ser cuidadosamente preparado prevendo a arremetida que nos levaria ao hospital ou à prisão.

Muitas destas caminhadas fi-las acompanhado pelo Eduardo Ferro Rodrigues. Nunca nos deixamos intimidar mas estávamos longe de prever como seria possível que, nos tempos da democracia, pela qual lutamos a vida toda, ressurgirem as mesmas ameaças à liberdade revestidas de novas e mais subtis formas.

Ir à rua, para mim, sempre foi um verdadeiro exercício de liberdade. Como sabemos “ir à rua” pode ser até uma manifestação espontânea, ou organizada, de protesto. Mas há quanto tempo não vamos à rua?

Em tempo: ir às urnas, em democracia, também é um salutar exercício de liberdade!

Absorto - 1º Aniversário (11 de 17)

terça-feira, dezembro 7

SIS

Um blog premiado

Vejam Por um punhado de pixels, de autoria de nemo nox, um blog premiado, em língua portuguesa.

Mário Soares - 80 anos

Pensei não escrever nada acerca dele. Todos escrevem, nestas efemérides, mesmo que as personagens não lhes interessem para coisa nenhuma.

Um dia, só pode ter sido no ano de 1969, fui com o Xico Chaves e a Helena Moura e mais alguém, que já não me lembro quem, falar com o Soares à sede da CEUD. O Xico Chaves, que vive no Brasil e não sei que é feito, é que teve a ideia.

Ficamos à espera numa sala um tempo e apareceu-nos um Soares imponente com aquele ar triunfante mesmo quando está na mó de baixo. A conversa foi curta e inconclusiva pois, pelo menos eu, não estava virado, à época, para a social-democracia ou para o socialismo democrático.

O Soares impressionava mas era demasiado pouco estimulante para o nosso desejo de mudança. Sentia-me melhor na CDE. E assim foi.

No início dos anos 80 tudo mudou. Passei a apoiar todas as iniciativas do Soares e, desde o início, a sua “impensável” primeira candidatura presidencial que havia de sair vencedora.

Na sequência da extinção do MES, com um grupo de ex-militantes deste movimento, no qual se incluía o Ferro Rodrigues, ingressei, em 1986, no PS depois de ter sido candidato independente nas eleições legislativas de 1985 nas quais só faltou ser açoitado pelo povo nas ruas. Deve ter sido o pior resultado de sempre do PS.

A partir de 1985 Mário Soares, para mim, passou a ser fixe. Até hoje. Agora já não entro nestas festas de aniversário, mesmo de inscrição livre, porque me aborrecem a maior parte dos convivas e desconfio das palmadas nas costas.

O que me interessa é o hino à vida e à intervenção cívica de que Mário Soares é um exemplo. Parabéns.

O PR e os ataques da direita

Os ataques violentos, destes dias, ao PR, provindos da direita, são difíceis de entender. As vítimas da decisão do PR estão a falar muitos decibéis acima do que seria aceitável pela opinião pública. Pela simples razão de que a opinião pública desejava esta solução ou, pelo menos, não a considerou desajustada ao desempenho do governo.

O PR fez aquilo que a maioria dos portugueses ansiava que fizesse. Ainda por cima faltam jogar imensos lances. O PR ainda nem sequer tomou a palavra para explicar as razões políticas da sua decisão. Os partidos do governo ainda não decidiram se avançam em coligação ou cada um por si; o PS ainda não apresentou o seu programa de governo embora tenha feito emergir Vitorino.

Uma coisa é certa: o PR tomou uma decisão que vai ao encontro da crescente insatisfação popular. As eleições são uma válvula de escape essencial para evitar males maiores. Trata-se de dar a palavra ao povo, um princípio sagrado da democracia representativa.

As razões da decisão do PR estão bastante explicadas pelos acontecimentos recentes conhecidos por “trapalhadas”. Mas, certamente, o PR terá outras informações que lhe permitiram assumir os riscos políticos da sua decisão.

A maioria daqueles que assumiram funções de gestão na administração pública, a todos os níveis, compreende as razões do PR. A partir de certo momento o que parecia é que só o PR as não compreendia.

A injustiça pode resultar, por uma vez, de um julgamento involuntariamente errado. A liberdade pode ser, por uma vez, ingenuamente posta em causa. Mas as injustiças reiteradas e indiscriminadas e as limitações à liberdade, assumidas como programa de governo (embora não escrito), são sinais perigosos para a democracia que não é uma conquista definitiva para todo o tempo e em qualquer circunstância.

Para salvaguardar a democracia, em última instância, é que existe no nosso sistema político a instituição Presidente da República. Que não é a “Rainha de Inglaterra” ou o “Notário da República”.

Os que hoje são governo e atacam o PR desta forma desbragada já desistiram de ser governo amanhã. Estão a caminhar para um beco sem saída. Porque, além do mais, o PR vai ser o mesmo, durante quase um ano, após as eleições gerais de 6 ou 13 de Fevereiro próximo.

E depois dele outro virá, por eleição directa, que não será, certamente, da simpatia da actual liderança do PSD e PP.

segunda-feira, dezembro 6

O poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis (o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo


(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)


O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O´Neill

(In Abandono Vigiado - 1960)

António Vitorino

Acabei de ver a sua entrevista na SIC – Notícias. O que me interessa sublinhar é que ele abordou algumas questões essenciais para a construção de um programa político vencedor sem cedências à demagogia e ao populismo.

Algumas dessas questões são mesmo quase sempre esquecidas ou pouco valorizadas. A questão demográfica e o envelhecimento acelerado da população em Portugal, na Europa e no Mundo; a imigração e as complexas questões que a inevitabilidade do seu crescimento colocam às nossas sociedades; a relação entre o exercício da função política (ou outra qualquer) e a apetência e gosto individual do cidadão no seu desempenho.

Enfim uma prestação superior de alguém que se disponibiliza para participar num projecto colectivo afirmando a sua individualidade.

Assim o PS seja capaz de congregar as energias, a experiência e o saber daqueles que seriamente, com gosto e prazer, se disponibilizem para construir um projecto de governo realista, mobilizador e de esperança para Portugal.

A postura, as palavras e as ideias de António Vitorino são um bom sinal.

domingo, dezembro 5

Panfletos no Chão da Gare

Os tempos de liberdade que vivemos são uma conquista da luta daqueles que nunca aceitaram a tirania. É um lugar comum. Uma tirada antiga, porventura obsoleta. Mas no longo tempo da ditadura havia que lutar pela liberdade. Realizar as tarefas mais comezinhas como elaborar, imprimir e distribuir panfletos.

Em todas as lutas se redigem, imprimem e distribuem panfletos. As tecnologias mudam mas a essência da tarefa é sempre a mesma: passar uma mensagem. Normalmente apelar à revolta, à contestação, à desobediência. O contrário da subserviência e do medo.

Nestas caminhadas pela acção subversiva no combate à ditadura cumpriu-me um dia entregar uma remessa de panfletos contra a guerra colonial ao José Galamba que me esperava numa cervejaria na avenida do Uruguai, perto de minha casa, onde costumava ir o Carlos Paredes.

Fiz o percurso até Benfica de Metro. Ao sair da carruagem, nesta estação, o saco rebentou e os panfletos inundaram o chão da gare à vista de toda a gente. Calmamente, mas com o coração a saltar, recolhi-os de novo para dentro do que restava do saco. Toda a gente se fingiu distraída e ninguém deu especial atenção ao acidente.

Duas extraordinárias coincidências: se me não falha a memória ia acompanhado pelo José Catela, neto de um célebre inspector da polícia política, e muito perto da saída da estação do Metro funcionava a “Escola” da polícia que sempre ficou conhecida por PIDE.

Há dias de sorte.

Absorto - 1º Aniversário (10 de 17)

Nada se perde, tudo se transforma...

O JPN no respirar o mesmo ar lembra, a propósito do meu artigo “Há silêncios que não podem ser eternos”, um episódio, muito interessante, passado antes com um jornalista do Independente.

Esse episódio merece ser conhecido pois, como diz o povo, “isto anda tudo ligado”.

sábado, dezembro 4

Outro Testamento

Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.

Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.

Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.

Quando eu morrer...
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me – só horizonte – para o mar.

Vitorino Nemésio

(Na sequencia de ter acabado de ver na RTP – Memória uma daquelas “charlas” extraordinárias de Nemésio realizada em 1975. Para além, claro, de Vitorino Nemésio ser um grande poeta português esquecido e este, para mim, um poema de primeira água. Um tudo nada longo para um blog mas, que querem, a crise política, deu-me para isto…)


Uma Brincadeira

O que o primeiro-ministro disse ontem na Póvoa a propósito do PR faz parecer todas as críticas que lhe foram feitas, a partir de 9 de Julho, pela esquerda uma brincadeira de crianças.

O primeiro-ministro – não se sabe se nessa qualidade se na de líder do PSD – chamou mentiroso ao PR. Com as letras todas. Não vale a pena dourar a pílula.

Por este caminho não se sabe como pode o país aguentar 3 meses com este primeiro-ministro à frente de um governo em funções plenas e não em funções de gestão. Com o seu orçamento aprovado e tudo.

Em campanha eleitoral permanente, como gosta, o PM vai misturar, em cada minuto, todas as funções. Como nunca se viu. Vai ser um festival de mentiras, insultos e indignidades.

sexta-feira, dezembro 3

Um fartar-vilanagem

“O primeiro-ministro garantiu hoje que o Orçamento de Estado para 2005 será aprovado na próxima semana, mas criticou a decisão "sem precedentes" de Jorge Sampaio ter anunciado a dissolução do Parlamento sem explicar os motivos.”
(Lusa)

Santana Lopes vai passar o tempo a atacar o PR. A direita vai juntar no mesmo saco PR, PS, os empresários e todas as forças “irresponsáveis”.

Já se percebeu como “uma parte da campanha de Santana Lopes será feita: o governo caiu porque os grandes interesses económicos não queriam o OE, as suas medidas de combate á fraude fiscal, e de imposição de impostos à banca. É hábil, apela ao populismo, e aos amadores das teorias da conspiração, mas não é verdade.”

Por outro lado alguém tem de acautelar os perigos reais de 3 meses de “governo de gestão” com Santana Lopes e Paulo Portas em campanha eleitoral.

Como afirma Miguel Sousa Tavares a rematar o seu artigo “Escrito nas Estrelas”, no Público de hoje, “Ao menos uma coisa Jorge Sampaio tem obrigação de fazer: não deixar que estes dois ou três meses de governo de gestão (até nisto, na inacreditável demora para demitir um governo, convocar eleições e nomear outro, não aprendemos nada com o passado) se transformem num fartar-vilanagem …” (link não disponível)

(Notas acerca das eleições antecipadas – 3)

Há silêncios que não podem ser eternos

"O facto que hoje evoco passou-se há dois anos. Merece ser recordado pois, entretanto, ganhou uma inusitada actualidade.

No dia 12 de Dezembro de 2002, cedo de manhã, fui acordado por um telefonema da Rádio Renascença, que me pedia um comentário às notícias que, nessa madrugada, circulavam acerca de “irregularidades” no INATEL a cuja direcção presidia."

Este texto é um extrato de um artigo publicado hoje no "Semanário Económico" que pode ser lido na sua versão integral no IR AO FUNDO E VOLTAR

Absorto - 1º Aniversário (9 de 17)



A Escola

“A escola é o único lugar do mundo onde aqueles que sabem as respostas é que fazem as perguntas” (Philippe Meirieu)

quinta-feira, dezembro 2

Uma Sala Vazia

O teatro foi uma escola para mim. Desde o liceu até ao teatro amador vivi uma experiência intensa fazendo teatro. No GTCCA (“Grupo de Teatro do Círculo Cultural do Algarve”), dirigido pelo Dr. Emílio Campos Coroa, encenaram-se os clássicos e fizeram-se representações e digressões sem conta.

Em salas pequenas e grandes, modestas e grandiosas, em ruas e praças, em barcos ancorados (“O Lugre”) e praias douradas (Albufeira), de dia e de noite. Uma loucura. A acção da família Campos Coroa na promoção do teatro foi, e é, uma gesta heróica. O exagero está na realidade e não na fantasia do teatro.

Representamos a “Trilogia das Barcas”, de Gil Vicente, versão integral, vezes sem conta. Desempenhava, nessa trilogia, três papéis, um em cada acto: o “Procurador”, no primeiro, o “Tafúl” (cena final do segundo acto) e o “Cardeal”, no terceiro. O dispêndio de energias era fenomenal e as cabeleiras nunca me cabiam na cabeça. O meu desempenho era somente razoável para um actor autodidacta, sem escola, nem formação específica.

Mas os espectáculos eram uma festa tensa e exigente. O espectáculo de Portimão (ou de Lagos?) ficou-me vincado na memória por uma razão oposta à maioria dos outros. Antes do início, perto da hora marcada, a sala apresentava-se deserta. Não sei já, ao certo, mas sentavam-se na plateia um ou dois espectadores. Tinha falhado, certamente, a divulgação.

O Dr. Emílio Campos Coroa (enfurecido!) reuniu a “companhia” nos bastidores e fez uma prédica que nunca mais esqueci. A sua mensagem era cristalina: o espectáculo realiza-se, de qualquer maneira, como se estivéssemos perante uma sala cheia. Com a mesma energia e dedicação, sem falhas nem hesitações.

Fez-se. Correu bem. Reforcei a convicção de que os compromissos são para respeitar mesmo na adversidade. Obrigado doutor.
Absorto - 1º Aniversário (8 de 17)

Lisbon Revisited (1923)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço.
Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Álvaro de Campos

(Publiquei antes um extracto de "Lisbon Revisited (1926)". Mais tarde o publicarei, de novo, na sua versão integral. A crise política de-me para isto...).

Orçamento de Estado - 2005

É um facto extraordinário que se pretenda impor ao PR a garantia antecipada de promulgação do OE. Então alguma vez seria possível garantir a aprovação daquilo que se não conhece?

Além do mais é uma chantagem intolerável visando o PR que é um órgão de soberania. Concordo com Vital Moreira que, no Causa Nossa, defende, com argumentos coerentes, a não aprovação, nestas circunstâncias, do OE.

"Sampaio recusa aprovar OE´2005 por antecipação

Apesar das exigências da coligação governamental para que diga antecipadamente se vai ou não aprovar o Orçamento de Estado para 2005 (OE`2005), o Presidente da República, Jorge Sampaio, recusa-se a avançar para uma aprovação antecipada do documento, frisando que «o Presidente não trabalha com cenários»."

(Notas acerca das Eleições Antecipadas - 2)

quarta-feira, dezembro 1

Fernando Pessoa (dois poemas)

Eu amo tudo o que foi

Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

Fernando Pessoa, 1931.


Eu tenho idéias e razões

Eu tenho idéias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações.

Fernando Pessoa, 1932

(A crise política deu-me para isto...)

A Grandeza

Desculpem a inconveniência. Na nossa sociedade há pessoas boas e competentes. Mas a necrologia política está cheia de cruzes anunciando o seu falecimento. Uma pequena parte delas é, por vezes lembrada, para um “adeus, até sempre”.

É esse um pouco o sentido do artigo de Cavaco Silva. O seu regresso à política partidária é improvável. Mesmo a sua candidatura presidencial é uma incógnita. “O sistema”, como diria o Dias da Cunha, está a funcionar. Para desmontar “o sistema”, desculpem a frontalidade, será porventura necessária uma revolução.

É horrível pensar nestes termos pois eu sei que a democracia representativa contém, em si mesma, a “capacidade para se regenerar”. Contém? Todos os debates, em curso, são tão “com água lisa, por favor”. Sempre os mesmos “pesos pesados”.

Mas a democracia representativa não poderá inventar uma revolução de novo tipo? Basta assegurar que a maioria dos governantes não sejam profissionais da política. Quero dizer os políticos têm que ser obrigados a aproximar-se da vida real. Não nas voltas das campanhas aos beijos e abraços com o povo.

A democracia representativa tem que se reformar a sério. É difícil? Utópico? Basta minguar o peso do estado sem lançar às urtigas as suas responsabilidades. É a produtividade? Pois é. Basta refundar o conceito de serviço público. O facto do cidadão estar ao serviço da comunidade ser mais do que uma nova pena para os crimes leves. Passar a ser uma “grande coisa” e não uma atitude de “totós”.

Os valores senhores, os valores! Não esses, os que se escondem na arca, ou se desvalorizam na banca. Os outros. Os intangíveis! Os não mercantis! Não faz mal nenhum haver eleições anuais até se descobrir uma nova fórmula de devolver à política a sua grandeza.

GRANDEZA. O contrário de sacanice. De sabujice. De aldrabice. De cobardia. É o que me apraz comentar neste primeiro dia depois do PR ter ressuscitado.

(Notas acerca das Eleições Antecipadas - 1)

No Parapeito

Não fui ao lançamento do livro da Rita. Estava doente. Mas foram a Guida e o Manuel. Sei como ela escreve bem. Já o li.

Identifico muitas personagens reais e algumas situações. Bonitos textos. A Rita escreve bem. Desde sempre.

“No Parapeito”, Rita Ferro Rodrigues, Edições Quasi, prefácio de Jorge Reis-Sá.