Fui buscar ao
Jumento o artigo no qual Rui Tavares, no Público, evoca a “
Matança da Pascoela”, de 1506. É terrível o confronto com esta evocação, por ela própria, e por nos fazer lembrar a tragédia do esquecimento que marca a nossa história. Como havemos de nos revoltar, por exemplo, contra os atrasos da justiça nos nossos dias? 5 anos? 10 anos? Para decidir acerca de um processo? Pois se o processo do assassinato de Humberto Delgado só agora foi (mal) encerrado com a justiça na espera de saber se um esbirro da PIDE é morto ou vivo? Se só agora se traz à memória da comunidade,
sem preconceitos nem vinganças, passados tantos séculos (séculos!), o massacre de 1506?
«Ontem não se corrigiu uma injustiça. Mas fez-se uma coisa bela e digna na cidade. Foram lembrados os lisboetas assassinados por outros lisboetas no massacre de 1506, também conhecido por Matança da Pascoela, por ter ocorrido naquele ano nessa data do calendário litúrgico. Os primeiros destes lisboetas eram tidos por judeus, e os outros tinham-se na conta de bons cristãos. O número de vítimas é incerto, mas pode ter ido até quatro milhares. Foi o pior momento da história da Lisboa portuguesa (talvez apenas superado pela própria conquista da cidade, quando os cruzados passaram a fio de espada muçulmanos, judeus e cristãos que viviam dentro da cerca moura).
Durante séculos, a matança de 1506 foi esquecida, apesar de ter sido cruamente relatada pelos cronistas da época. Mas foi enterrada sob as camadas de vergonha, indiferença e mentira que compõem o mito português dos brandos costumes. De tal forma que, de cada vez que alguém referia a matança de 1506, quase era preciso voltar aos livros e documentos para confirmar que, sim, tinha ocorrido.
A partir de ontem, será mais difícil fingir que não aconteceu. Foi inaugurado no Largo de São Domingos o monumento evocativo da matança de 1506. Ao invés de ocultar, a cidade mostra, dá a ver, o lado mau do seu passado. E isso é uma coisa corajosa.
Um acto corajoso de todos os intervenientes. Da Câmara Municipal de Lisboa, através do presidente da Câmara, António Costa, e do vereador Sá Fernandes, que tinha proposto este monumento nos quinhentos anos do massacre, em 2006, sem sucesso junto da vereação anterior. Um acto corajoso do cardeal-patriarca de Lisboa, José Policarpo, cujas palavras de perdão público ficam agora ali gravadas: "A Igreja Católica reconhece profundamente manchada a sua memória" pelo massacre. Um acto corajoso da Comunidade Israelita de Lisboa, a quem só séculos depois foi permitido voltar a ter presença pública no nosso país, e que agora pede: "Ó terra, não ocultes o meu sangue e não sufoques o meu clamor!", usando palavras do livro de Job. Não ocultes o sangue: um pedido à terra daqueles que morreram que temos obrigação de honrar.
Seria mais cómodo continuar a esquecer. Se não fosse tão cómodo, não teríamos esquecido durante mais de quinhentos anos. Seria cómodo dizer que um monumento não muda nada. Seria cómodo dizer que é "só" simbolismo ou politicamente correcto, e passar ao lado deste dever.
Lembrar em conjunto ("comemorar") a matança de 1506 é incómodo mas faz de nós melhores cidadãos. Em primeiro lugar, porque nos lembra das coisas terríveis que nós humanos somos capazes de fazer, e assim serve de aviso para que não voltem a ocorrer. Em segundo lugar, porque ficamos a conhecer melhor o lugar onde vivemos, e isso nos ajuda a entendê-lo e melhorá-lo. E em terceiro lugar, porque os nossos antepassados nos passaram isto: corre misturada nas veias de muitos lisboetas a memória genética dos lisboetas de 1506, do lado das vítimas e dos assassinos. E quanto àqueles que não descendem desses lisboetas antigos: são hoje novos lisboetas a quem devemos hospitalidade, se aprendermos com os nossos erros.»
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