segunda-feira, novembro 19

A LIBERDADE

Citação 3


"É sempre um grande crime destruir a liberdade de um povo sob o pretexto de que ele a utiliza mal"

Tocqueville
 
[Poste de 30 de dezembro de 2003 - a caminho de completar 9 anos, neste blogue, sempre presente o tema da liberdade.]

domingo, novembro 18

OS PRIMEIROS POSTES EM VÉSPERAS DO NONO ANIVERSÁRIO

Fim do ano 2003


Como sempre, nos últimos anos, à vista do mar nas proximidades do ponto mais ocidental da Europa. O oceano atlântico, em toda a sua plenitude, à nossa vista. O cheiro intenso a maresia. O mar nestas costas é forte quando batido pelo vento. Não havemos de olhar demasiado para trás. Faltam alguns amigos mas juntaram-se outros novos. A vida é feita de mudança. E a olhar o futuro o mundo avança. Eduardo Lourenço fala numa entrevista recente que os portugueses se preocupam mais com parecer bem e menos com fazer obra. Têm medo de tomar posição. Arriscar nas empreitadas do progresso. Esperam que a obra surja feita. As palavras são minhas. Não tenho a entrevista na minha frente. Lourenço não diz, mas digo eu, que fazer obra para os portugueses é algo estranho e potencialmente perigoso. Pode por em causa o equilíbrio necessário ao triunfo do espírito conservador. Esta filosofia de vida está devidamente documentada pela nossa história ? salvo em raros períodos ? e pela pena dos nossos maiores: Camões (Luís), Pessoa (Fernando), Sena (Jorge de) ? Os governos querem-se modestos nos grandes desígnios e sem vistas largas não vá o engrandecimento do País ferir as cordatas relações de poder com as grandes famílias instaladas e fazer perigar as dependências face aos interesses estrangeiros. Dizem os tecnocratas, mais cultos, que falta músculo ao capital e massa crítica à inteligência. Dito do ponto de vista do humanismo o que falta, em regra, é decência aos dirigentes, civismo, educação e cultura ao povo. Certamente se encontrarão formas originais e renovadas de trilhar, no futuro, um novo caminho de progresso. Mas este simples blog confirma, como tantas outras formas de expressão, em finais de 2003, um princípio que convém preservar, a todo o custo, que Camus sintetizou numa frase que nunca mais esqueci:
?Finalmente, escolho a liberdade. Pois que, mesmo se a justiça não for realizada, a liberdade preserva o poder de protesto contra a injustiça e salva a comunidade.
 
[A um mês de fazer nove anos de vida, com atividade ininterrupta, revisito alguns dos postes mais antigos deste blogue e, mais próximo de 19 de dezembro, colocarei também os mais visitados.]

Arabella Steinbacher

quarta-feira, novembro 7

Cecilia Bartoli


ALBERT CAMUS - 99º ANIVERSÁRIO


Havia uma porta embutida na parte argamassa na qual se podia ler: “Cantina agrícola Mme. Jacques.” Filtrava-se luz pela frincha inferior. O homem imobilizou o cavalo junto dela e, sem descer, bateu. Acto contínuo, uma voz sonora e decidida inquiriu: “Quem é?” “Sou o novo gerente da propriedade do Santo Apóstolo. A minha mulher vai dar à luz. Preciso de ajuda.” Ninguém respondeu. Passado um momento, foram levantados ferrolhos e a porta entreabriu-se. Descortinou-se a cabeça negra e ondulada de uma europeia de faces cheias e nariz um pouco abaulado acima dos lábios grossos. “Chamo-me Henri Carmery. Pode ir junto de minha mulher? Tenho de chamar o médico.” (…) O médico olhou-o com curiosidade. “Não tenha medo, que tudo há-de correr bem.” Cormery volveu para ele os olhos claros, fitou-o calmamente e declarou com uma ponta de cordialidade: “Não tenho medo. Estou habituado aos golpes duros do destino.” (…) A chuva tombava com mais intensidade no telhado antigo e velho. o médico procedeu a um exame sob os cobertores. Em seguida, endireitou-se e pareceu sacudir algo na sua frente. Soou um pequeno grito. “É um rapaz”, anunciou. “E bem constituído.” “Começa bem”, disse a dona da cantina. “Com uma mudança de casa.” A mulher árabe riu no canto e bateu as palmas duas vezes.

Albert Camus, in O Primeiro Homem 

segunda-feira, novembro 5

ALBERT CAMUS - NAS VÉSPERAS DO 99º ANIVERSÁRIO DO SEU NASCIMENTO


“São raros aqueles que continuam a ser pródigos depois de terem adquirido os seus meios. Esses são os reis da vida, que se devem saudar com discrição.”
(…)
“ – a miséria é uma fortaleza sem ponte levadiça.”
(…)
“De resto, como fazer compreender que uma criança pobre pode por vezes ter vergonha sem nunca invejar coisa alguma?”
(…)
“E, à noite, deitado, morto de cansaço, no silêncio do quarto onde a mãe dormia levemente, ainda ouvia uivar dentro dele o tumulto e furor do vento que amaria ao longo de toda a vida.”
(…)
“ … a criança morrera naquele adolescente magro e vigoroso, de cabelos revoltos e olhar arrebatado, que trabalhara todo o Verão para levar um salário para casa e acabava de ser nomeado guarda-redes titular da equipa do liceu e, três dias antes, saboreara pela primeira vez, quase desfalecido, o contacto com a boca de uma jovem.”

Albert Camus, in O Primeiro Homem

[Depois de amanhã, 7 de novembro, faz 99 anos que nasceu Camus. Está prestes a iniciar-se o ano do centenário do seu nascimento. Espero que, em Portugal, alguma coisa aconteça. A ver. ]      

domingo, novembro 4

A MINHA TURMA DO 1º ANO

 

                                                                                            

Tenho na minha frente a fotografia da turma que frequentei nesse 1º ano em cujo verso a minha mãe escreveu: "Recordação do 1º ano – Faro – 10-4-1959".
 
Naquela fotografia dos professores que ilustra uma crónica de Lina Vedes pareceu-me, a um primeiro olhar, reconhecer onze (11) professoras e professores que me calharam em sorte. O tempo é traiçoeiro e a legenda, colocada posteriormente, permitiu-me identificar mais professores do que aqueles 11 que, no primeiro relance, tinha reconhecido.
 
O envio da fotografia da minha turma do 1º ano, adornada com uma surpreendente legenda, que mão cuidada se deu ao trabalho de fixar, permitiu-me mergulhar na memória de um convívio distante e reconhecer muitos rostos que nunca mais vi.
 
Na verdade entrei para o 1º ano do Liceu de Faro no ano lectivo de 1958/59. Um ano recheado de muitos, e significativos, acontecimentos políticos dos quais destaco, por curiosidade, as eleições presidenciais, às quais se candidatou Humberto Delgado (1958), e a chamada “Revolta da Sé” (1959).
 
Hoje sou capaz de associar o meu quotidiano juvenil, as ambiências familiares e escolares, com os acontecimentos de um tempo político, do qual guardo viva recordação, e que marcam, com nitidez, os antecedentes de um percurso pessoal que só a memória pode revelar de forma tão coerente e fiel.
 
Vejo os meus professores de liceu, entre os finais da década de 50 e inícios de 60, como uma mistura de conservadorismo pardo e de progressismo ilustrado encontrando-se gente de ambos os campos entre os "novos" e os "velhos" professores. A certa altura, no início dos anos 60, no Liceu de Faro, esquecendo os pardos, juntaram-se, por exemplo, no campo do progressismo ilustrado, os “velhos” Neves Júnior e Joaquim Magalhães, com os “novos” Gastão Cruz e Luísa Neto Jorge.
 
Já entre os alunos, além das marcas próprias da juventude de todas as épocas, é mais difícil vislumbrar, ou adivinhar, o resultado, nas suas vidas, da mistura das influências de mestres e funcionários, ilustrados ou pardos. O que é certo é que os jovens estudantes retratados ostentam uma pose compenetrada e, não lhes sendo permitido o convívio com as meninas, era-lhes imposta a “autoridade professoral” através de duas mulheres/professoras.
 
A fotografia foi tirada no Ginásio, onde todas eram tiradas, e no meio do grupo lá estão a Prof. ª Isabel Madruga e a Prof. ª Maria José Santos, a primeira das quais, por boas razões, nunca esquecerei. No Natal de 2007 ofereci uma cópia desta fotografia ao meu amigo Bexiga (António) e era bem capaz de mandar fazer tantas cópias quantos os personagens retratados, fazendo renascer em cada um de nós a memória de um tempo feliz.
 
[Republicação.]

segunda-feira, outubro 29

“Homenagem ao Papagaio Verde e outros contos de Jorge de Sena”


(...)
“Um dia, quando, arquejante da rua e das escadas, cheguei à varanda, o Papagaio Verde estava inerte no canto da gaiola, com o bico pousado no chão. Peguei-lhe, aspergi-o com água, sacudi-o, com a mão auscultei-o longamente. Não morrera ainda. Levei-o para a sala, deitei-o nas almofadas, puxei a cadeira para junto do piano, e, enquanto com os dedos da mão esquerda lhe apertava a pata, toquei só com a direita a música de que ele gostava mais. As lágrimas embaciavam-me as teclas, não me deixavam ver distintamente. Senti que os dedos dele apertavam os meus. Ajoelhei-me junto da cadeira, debruçado sobre ele, e as unhas dele cravaram-se-me no dedo. Mexeu a cabeça, abriu para mim um olho espantado, resmoneou ciciadas algumas sílabas soltas. Depois, ficou imóvel, só com o peito alteando-se numa respiração irregular e funda. Então abriu descaidamente as asas e tentou voltar-se. Ajudei-o, e estendeu o bico para mim. Amparei-o pousado no braço da cadeira, onde as patas não tinham força de agarrar-se. Quis endireitar-se, não pôde, nem mesmo apoiado nas minhas mãos. Voltei a deitá-lo nas almofadas, apertou-me com força o dedo na sua pata, e disse numa voz clara e nítida, dos seus bons tempos de chamar os vendedores que passavam na rua: - Filhos da puta! – Eu afaguei-o suavemente, chorando, e senti que a pata esmorecia no meu dedo. Foi a primeira pessoa que eu vi morrer.”

Jorge de Sena

domingo, outubro 28

Em homenagem a minha mãe


Em homenagem a minha mãe pelo 11º aniversário de sua morte. 

Era o tempo da natureza esplendorosa, a seiva assomando por todos os poros da vida. A terra e o mar beijavam-se num longo beijo sem fim sob o céu azul. A terra dava frutos que me pareciam divindades na perfeição da sua casca. As melancias fascinavam-me pela sua grandeza esférica e pela névoa dos seus açúcares. Era o vermelho do prazer contra o sangue, vermelho da dor. [20/1/2008]