(...)
“Um
dia, quando, arquejante da rua e das escadas, cheguei à varanda, o Papagaio
Verde estava inerte no canto da gaiola, com o bico pousado no chão. Peguei-lhe,
aspergi-o com água, sacudi-o, com a mão auscultei-o longamente. Não morrera
ainda. Levei-o para a sala, deitei-o nas almofadas, puxei a cadeira para junto
do piano, e, enquanto com os dedos da mão esquerda lhe apertava a pata, toquei
só com a direita a música de que ele gostava mais. As lágrimas embaciavam-me as
teclas, não me deixavam ver distintamente. Senti que os dedos dele apertavam os
meus. Ajoelhei-me junto da cadeira, debruçado sobre ele, e as unhas dele
cravaram-se-me no dedo. Mexeu a cabeça, abriu para mim um olho espantado,
resmoneou ciciadas algumas sílabas soltas. Depois, ficou imóvel, só com o peito
alteando-se numa respiração irregular e funda. Então abriu descaidamente as
asas e tentou voltar-se. Ajudei-o, e estendeu o bico para mim. Amparei-o
pousado no braço da cadeira, onde as patas não tinham força de agarrar-se. Quis
endireitar-se, não pôde, nem mesmo apoiado nas minhas mãos. Voltei a deitá-lo
nas almofadas, apertou-me com força o dedo na sua pata, e disse numa voz clara
e nítida, dos seus bons tempos de chamar os vendedores que passavam na rua: -
Filhos da puta! – Eu afaguei-o suavemente, chorando, e senti que a pata
esmorecia no meu dedo. Foi a primeira pessoa que eu vi morrer.”
Jorge de Sena
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