sexta-feira, setembro 13

POLÍTICA - 18

Depois de ver a Quadratura do Círculo. É mil vezes valiosa a liberdade de expressão do pensamento, a imprensa livre, o exercício da escolha por este ou aquele canal de TV (mesmo que sejam só 4), por esta ou aquela rádio, por este ou aquele jornal (que leio, mas não compro!), por uma multidão de vozes que se expressam nas redes sociais (num aparente caos!); mil vezes valiosa é a discordância, as diferenças de opinião que se expõem à opinião dos outros; podermos concordar com todas as opiniões apenas só em parte de cada uma delas; ou discordar de todas em alguma das suas partes em debates entre interlocutores cultos e inteligentes; ou mesmo ouvir opiniões de cidadãos quando lhes dão a voz para se expressar e se expressam mal, ou menos bem, ou com dificuldade de se fazer explicar; para dizer que por entre o enunciado das dificuldades do país, da critica feroz aos erros dos políticos, de alguma eventual injustiça no seu julgamento público; entre nós há uma conquista que, salvo aleivosias pontuais, ninguém põe em causa: a liberdade de expressão do pensamento e a chamada liberdade de imprensa. Cuidemos delas, praticando-as!
        

terça-feira, setembro 10

SALVADOR ALLENDE

REQUIEM POR SALVADOR ALLENDE

Foi de súbito no outono juro solenemente que o foi
mas as árvores fora tinham de novo folhas recentes
primavera no chile primavera no mundo
Sinto-me vivo habito muito de pé numa casa
leio vagarosamente os jornais sei devagar que os leio
enfrento meu velho borges o muito meu destino sul-americano
Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo
o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na praia
talvez voz metafísica decerto voz de um privilegiado
ombro a ombro com gente analfabeta uma gente sensível e leal
mas que não pode ler e vive muito menos por o não saber
embora saiba olhar o mar sem o saber interpretar
acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
quando o irmão Miguel veio pequeninamente pela areia
e convulsivamente me falou da situação no chile
veio pela praia e punha nas palavras mãos de solidão
mãos conviventes com outras palavras mãos que palavra a palavra
erguem um poema no silêncio só circundante
Allende tinha uns óculos os óculos tinham-no
com eles via a vida com eles via os homens via homens
via problemas de homens e as coisas que via era coisas de homens
hoje apenas uns óculos sem nenhum olhar por detrás
Nos finais de setembro nos princípios de novembro
tu meu amigo que não posso nomear sem te denunciar
dar-me-ás talvez notícias tuas notícias meramente pessoais
já que projectos sociais projectos cívicos profissionais
ficariam decerto nas policiais desertas mãos dos generais
mãos que mataram mãos que assaltaram a casa de neruda
mãos limpas já do sangue despojadas já das alianças
que caridosamente deram que assim conseguiram
solucionar os prementes problemas do país
Ouvi falar também desse cargueiro playa larga
praia comprida mas praia deserta e não só da palavra
pois quanta praia tinha hoje só tem o sangue dos milhares das pessoas fuziladas
A onze de setembro nesta praia portuguesa só uns passos pela areia
algum poema terminado alienado algum termo conquistado
tão inefável como por exemplo o do tancazo
atribuído ao golpe orientado por pablo rodriguez
homem que vai modelando palavras ao ritmo martelado pelo ódio
na tentativa vã de destruir frases hoje históricas
do grande cavalheiro que decerto foi allende
e já antes de o dizer com a vida dizia que por exemplo
mais vale morrer de pé do que viver ajoelhado ou então
se as direitas me ajudam a ganhar ganharão as direitas
País amável calorosa entrada em santiago
e ver-me em frente desse homem sozinho relutante em recorrer às armas
e que depois de o ter visto e o ter ouvido
ao homem que for homem poderei chamar-lhe
seja qual for o nome salvador allende
Que nestas minhas minerais palavras de poeta
vibre um pouco o vigor da tua voz
bafejando de paz primeiro o bom povo do chile
depois o povo bom de todo o mundo
Que a ignomínia da história não demore em cobrir com o seu manto
os que têm a força mas não têm a razão
pois o nazi-fascismo não ganhou nem nunca ganhará
Mando-te uma ave preta rente à leve ondulação do mar
tu mandas-me do mar a ave branca do teu rosto
vento que vem do mar vento que vem do chile
Aqui neste dia de súbito cinzento
somente povoado pelo meu sofrimento
e pelo pensamento desse sofrimento
voo também vou também eu nesse lenço
que retiro do bolso aqui à beira-mar
e o meu lenço ao vento é uma ave avesíssima uma ave de paz
uma ave avezada a cada uma das derrotas existentes no mar
somente agora destruída trespassada pela bala que leva uma vida
ave que ao entoar seu canto profundíssimo afinal apenas diz
muito obrigada salvador allende
obrigada por essa tua vida de cabeça erguida
só agora tombada trespassada pela bala que leva uma vida
mas não pode levar de vencida a obra por allende começada
selada por essa promessa de lutar até ao fim até à hora de morrer
nesse importante posto onde te investiram a lei e o povo
Foi no ano de mil novecentos e setenta
ano em que eu fiquei a apodrecer no meu país
que uma coligação do tipo frente popular tomou
pela via legal conta do poder no Chile
legalidade sempre respeitada por ti allende
mas por fim desrespeitada pelos militares pelas direitas pela
cristã democracia partido bem pouco cristão e pouco democrático
falavas tu dizias a verdade
uma bala na boca nessa boca donde ainda pouco antes
saíam as palavras na verdade belas como balas
salvador allende guerrilheiro sem metralhadora e sem boina
de casaco e gravata para essas guerrilhas no parlamento
guerrilhas todas elas tão contrárias à guerra quão favoráveis à paz
essa palavra alada como ave ave não só de georges braque
mas de nós todos aves verticais aves a última estação
árvores desfolhadas num definitivo inverno
allende do cansaço dos problemas da preocupação constante em jogares limpo
com quem em vez de mãos utensílio de paz vinha com bombas em lugar das mãos
allende já há muito tempo sem uns olhos para olhares o mar
e sem poderes olhar as pedras preciosas de que fala
pablo neruda teu e meu poeta teu íntimo amigo
em las piedras del cielo esse livro puríssimo
e são pedras do céu mas mais do que do céu pedras da terra
Sol que te pões e nascerás no Chile
leva-me a um país que em criança conhecíamos apenas
dos sacos de serapilheira com o nome impresso de um nitrato
e não por dar o nome a uma pequena mas confusa praça de lisboa
nem por sair nas páginas diárias dos jornais
Do Chile chegou-me não há muito a amizade do hernán
que em Madrid conheci e não responde há muito às minhas cartas
e a de mais chilenos de olhos vagamente tristes sérios quase portugueses
e desse país mais comprido do globo veio-me também
o lápis-lazúli pedra não já de esperança pedra de amizade
Os camiões há muito já que não sulcavam as estradas do país
estradas bafejadas pela aragem enviada pelo mar por esse
oceano pacífico de um país ainda há pouco bem pacífico
O washington post falava já do golpe dias antes do golpe
ninguém delas mas elas encontravam-se ali mesmo
as autoridades militares as autoridades militares as autoridades americanas
vestiam mesmo as fardas do exército chileno
esses americanos gente do dinheiro e do veneno
de um veneno talvez chamado dinheiro
que terá pago em parte as modificações dos foguetes do tipo poseidon
montados já a bordo dos divinos submarinos nucleares americanos
assunto de política estrangeira americana
Hernán urrutia meu amigo austral
que em barajas vi olhar voltar
para mim a cabeça pela última vez
marcelo coddo professor em concepción
com quem que bem me lembro conversei sobre o poeta cardenal
e sobre a jovem poesia nicaraguense
e tantos outros que nem mesmo me terão deixado o nome
mas me deixaram alguma palavra a música da fala um certo sorriso
um certo olhar visível por detrás de uns óculos
talvez hoje quebrados por quem não considera
talvez suficiente o quebrar da vida na haste da vida
embora porventura tenha visto aquela sequência de fellini
e desconhece que afinal a vida reproduz a arte
Escrevo este poema no jornal com as notícias frescas
após ter evitado ver as caras de triunfo desses locutores luzidios da televisão
e mesmo ter ouvido a voz desse pedro moutinho
a voz das afluências ao nosso principal estádio o da cova da iria
e dos cortejos presidenciais e dessas tão espontâneas manifestações
voz afinal da cia e da itt e dos demais tentáculos
do imperialismo norte-americano
maneira americana de se estar no mundo
de estar no mundo arrebatando o pão dos homens do terceiro mundo
terceiro mundo ou melhor último mundo
que pagarão agora o preço da cabeça dos trabalhadores chilenos
que marcham mas decerto em vão na direcção
do centro de Santiago onde vingara
a rebelião dos marinheiros vindos de valparaiso
cabeça dos imensos deserdados deste mundo
Sabíamos decerto um pouco em que consistia
essa via chilena para o socialismo
e líamos talvez um livro acerca do programa da chamada unidade popular
e discursos de allende naquela cidade distante
embora houvesse muito mais notícias nos jornais
e a gente nos cafés falasse mais em futebol
livro por certo lido com a janela aberta sobre a noite de outono
sobre campos relvados de momento habitados pela escuridão
donde talvez se erguiam cantos pouco menos que religiosos
exaltadores de ideologias já e sem remédio ultrapassadas
Era uma vez um chileno chamado salvador allende que
fez um grande país de um país pequeno onde
talvez três anos nós houvéssemos depositado a esperança
quando fosse qual fosse a nossa nacionalidade
todos nós fomos um pouco chilenos
Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós
que um homem se detenha quando a história caminha
em frente sempre altiva e serena
como mulher de muito tempo sabedora
Posso dizer por certo como há já muitos anos
acerca dos milicianos espanhóis dizia neruda
allende não morreste estás de pé no trigo

Ruy Belo
In “Todos os Poemas – III” – “Toda a Terra” – I Parte “Areias de Portugal”
Assírio & Alvim – 2ª edição (Outubro de 2004)

Fotografia de Hélder Gonçalves

domingo, setembro 8

POLÍTICA - 17

O céu dos mundos, sob o qual se acolhem os povos, está mais toldado hoje do que ontem. Os donos do mundo não reparam nos tons escuros que pintam o céu, o seu ofício é encontrar os caminhos do tesouro. Não confundo tudo e todos. Nem estou já em idade de linhas vermelhas, esconjurações e ódios, sejam quais forem, que não suporto. Há em todas as civilizações, religiões e ideologias, agrupamentos, congregações ou partidos, pessoas de bem que encontram no interior de si próprias a força que as impulsiona a lutar para que cada vez mais gente ascenda ao estatuto cidadão de corpo inteiro.
 
Da cena internacional, onde se jogam os grandes desígnios estratégicos, quase sempre em busca do domínio das matérias-primas, a riqueza material, e das rotas que permitam fazê-las circular levando-as onde elas atingem o máximo preço, sem esquecer que para haver vendedor tem que existir cliente (porventura nós próprios!), até à pequena paróquia onde se disputam interesses em busca da posse do valado ou da caixa das esmolas, do casebre ou do encómio do "poderoso", há gente honrada, que luta por causas nas quais acredita, integrada numa multidão de instituições e imunes aos cantos de sereia do dinheiro fácil ou do populismo seja qual for a sua escola.
 
Esses cidadãos de parte inteira, cujas impurezas e imperfeições assumem como naturais, capazes de as reconhecer, para melhor as corrigir e que, apesar de toda a degradação da vida pública ainda ocupam relevantes posições de influência e de decisão, nos negócios (públicos, privados e sociais), na vida pessoal, associativa ou política não podem deixar de se manter vigilantes e activos, sem confundir o mal com a caramunha, olhando mais longe e presando os valores essenciais das nossas sociedades democráticas: Liberdade e Justiça! Paz e Fraternidade! Cooperação e Solidariedade!
 
Quanto mais na nossa sociedade a escassez se impuser  e manifestar, nas suas mais diversas e cruéis formas, mais importante se torna manter viva, e vibrante, a capacidade para dar voz aqueles que pugnam, com realismo, pelos princípios e valores que estão na raiz da nossa civilização e que tiveram o seu berço na Grécia Antiga. Nada renegar da natureza da qual , como humanos, nos devemos orgulhar de fazer parte:  "Pour les chrétiens comme pour les marxistes, il faut maîtriser la nature. Les Grecs sont d´avis qu´il vaut mieux lui obéir. » (Camus, in L´Homme révolté).   


quinta-feira, setembro 5

"Lamber a vida como um rebuçado..."

15 de Set. (1937)

(...)

“Lamber a vida como um rebuçado, formá-la, estimulá-la, enfim, como se procura a palavra, a imagem, a frase definitiva, aquele ou aquela que conclui, que detém, com quem partiremos e que de futuro fará a cor do nosso olhar.”

(...)

“Quanto a mim, sinto-me numa curva da minha vida, não devido àquilo que adquiri, mas àquilo que perdi. Sinto-me com forças extremas e profundas. É graças a elas que devo viver como desejo. Se hoje me encontro tão longe de tudo, é que não tenho outro desejo senão amar e admirar. Vida com rosto de lágrimas e de sol, vida sem o sal e a pedra quente, vida como a amo e a entendo, parece-me que ao acariciá-la, todas as minhas forças de desespero e de amor se conjugarão.”

(...)

“É como se recomeçasse a partida; nem mais feliz nem mais infeliz. Mas com a consciência das minhas forças, o desprezo pelas minhas vaidades, e esta febre, lúcida, que me preocupa em face do meu destino.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 1 (Maio de 1935/Setembro de 1937) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

quarta-feira, setembro 4

NÃO HÁ VIDA SEM DIÁLOGO ...

Não há vida sem diálogo. Mas o diálogo foi, hoje, na maior parte do mundo, substituído pela polémica. O século XX é o século da polémica e do insulto. Eles ocupam, entre as nações e os indivíduos, e mesmo ao nível das disciplinas outrora desinteressadas, o lugar que tradicionalmente cabia ao diálogo reflectido. Dia e noite, milhares de vozes, empenhadas, cada uma por seu lado, num tumultuoso monólogo, lançam sobre os povos uma torrente de palavras mistificadoras, de ataques, de defesas, de exaltações. Mas qual é o mecanismo da polémica? Consiste em considerar o adversário como inimigo, por conseguinte a simplificá-lo e a recusar vê-lo. Aquele que insulto, já não sei de que cor são os seus olhos, ou se acaso sorri, e como o faz. Tornados quase cegos por obra e graça da polémica, já não vivemos entre os homens, mas num mundo de sombras.” (…)


Albert Camus – alocução feita na sala Pleyel em Novembro de 1948, in Actualidades - Contexto 

POLÍTICA - 16

Hoje, no dia do aniversário de meu pai, uma daquelas poucas datas que nunca esqueço, porque ele me lembra sempre valores sem preço aos quais tudo tenho feito para me manter fiel, rufam os tambores da guerra. Antes que ela rebente quero dizer, em primeiro lugar, perante mim próprio, que me não resigno em aceitá-la. Podem as chancelarias todas em uníssono clamar pela sua justeza, podem todos os meios de comunicação colocar em frente dos olhos do mundo imagens horríveis das maiores atrocidades, podem os líderes que, como Obama, sempre apoiei, proclamar as suas certezas da crueldade dos outros, tudo pode ser dito, e redito, mas não aceito a guerra. Não se trata de ser contra toda e qualquer guerra, pois não sou pacifista, mas esta guerra depois das lições de outras guerras lançadas com os mesmos argumentos que vieram a revelar-se falsos, argumento que não pode nem deve ser banalizado, só pode gerar mais e mais guerra. A Síria tornou-se uma tragédia de guerra civil, a mais terrível das guerras, tiranos contra aspirantes a tiranos, disputa estratégica de potências – a guerra fria acabou, dizem eles – defesa de bases militares, de venda de armas, de abertura ou manutenção, de rotas para a passagem da energia de que o ocidente carece. Sigo à risca a declaração do Secretário-geral da ONU, hoje proferida, e que cito de cor: o lançamento de um ataque militar pelos USA à Síria só poderá ser legal se for em legítima defesa ou com mandato do conselho de segurança da ONU. Será pois um ação de guerra ilegal à luz do direito internacional. Todas as consequências que dela resultarem, e serão porventura muito graves para a paz mundial, são da responsabilidade de quem decidir premir o gatilho. Se for Obama com pena minha deixará de pertencer à minha galeria pessoal dos raros políticos no ativo cujas palavras mantêm a capacidade de comover e mobilizar a alma dos democratas e dos defensores da liberdade e da paz.    

domingo, setembro 1

Haja respeito pela história e pelos povos...

Escrevo diretamente na tela branca como se fora uma folha antiga, um material sem mácula, no qual em todos os tempos se escreveu  desde quando escrever era para poucos e todos escreviam bem exceto os que  sempre devem ter sido criticados por escreverem menos bem. O regresso de qualquer lugar que se visita é sempre um regresso ao lugar da partida o fim transitório da viagem e muitas vezes apetece a quem é capaz de escrever dar testemunho. Ao longo do tempo muitos o fizeram e as suas obras nalguns casos, poucos, são parte do património da humanidade e estou a pensar no Padre António Vieira e nos cronistas que descreveram com detalhe tantos acontecimentos que a história guarda e que alguns estudam e poucos divulgam, lembrei-me a despropósito do José Hermano Saraiva, pois que me lembre com mais ou menos rigor não existe nenhum programa regular de divulgação da história de Portugal nas nossas TVs e a nossa história é rica como poucas não só por ser longa mas porque todas as histórias das nações são ricas e as nações não  persistem sem que os povos se reconheçam nela ( a sua história) que é o mais forte antídoto para que os povos se não deixem dominar e sejam capazes de conviver com as diferenças aceitando-as e assim cultivando os valores da cidadania e da liberdade. Vem a propósito de ter vivido uma semana ao lado de uma das árvores identificadas como das mais antigas de Portugal - uma Oliveira com mais de 2 200 anos - que os fenícios trouxeram da Mesopotâmia e deixaram ali no lugar que hoje é conhecido por Pedras del Rei para que os vindouros dela se pudessem aproveitar para seu proveito e me levou a pensar que somos muito novos e ignorantes para julgar e punir os povos que habitam aqueles terras longínquas que hoje dão pelo nome de Iraque, Síria, Irão ... de onde nos trouxeram esta riqueza que ainda hoje nos oferece o pão de cada dia. Haja saúde, paz e prosperidade!
  

sexta-feira, agosto 30

JORGE DE SENA


Lisboa - 1971

O chofer de taxi queixava-se da vida.
Ganha 400$00 por semana, o patrão conta
que ele se arranje do a mais com as gorjetas.
Os amigos morrem de cancro,
de tédio, de páginas literárias,
vi um rapaz sem as duas pernas que perdeu
na guerra (e o ortopedista ria-se de que ele
só queria por enquanto “calçar” uma das
que, artificiais, lhe preparou tão róseas).
As pessoas esperam com raiva surda e muita paciência
o autocarro, aumento de ordenado, a chegada
do Paracleto, bolsas da sopa do convento.
Mas o chofer de taxi contou-me que
discutira com um asno e lhe dissera:
“ … V. que nesse tempo ainda andava a fugir
de colhão para colhão do seu pai
para ver se escapava a ser filho da puta …”
E é isto: andam de colhão em colhão
a ver se escapam – e muitos não escapam.
E os outros não escapam aos que não escaparam.

Lisboa, 5/8/1971

quarta-feira, agosto 28

A OLIVEIRA MAIS ANTIGA DE PORTUGAL

Em Pedras del Rei (Tavira, Algarve, Portugal) a poucos metros do sítio onde escrevo, neste dia da semana de férias que me concedo, em família, no silêncio abundante que, por vezes fere, repousa em sua pose majestática a árvore mais antiga de Portugal (ou talvez, ao que dizem os repositórios mais recentes acerca da matéria, a segunda mais antiga) uma OLIVEIRA com mais de 2200 anos (leram bem - dois mil e duzentos anos). Muito antes da fundação na nacionalidade esta já era uma terra fértil de grandes encantos, pois porque não o será hoje, e sempre, no futuro ...



segunda-feira, agosto 26

Praia do Barril (Tavira)

Por momentos, quando se percorre a velha estrada que serpenteia por alfarrobeiras e oliveiras (algumas delas milenares) e que nos leva até Pedras del Rei, parece que somos devolvidos à ideia de Algarve como segredo mais bem guardado do nosso litoral. O contraste com o Algarve dos nossos dias é muito marcado. O aldeamento de Pedras del Rei – um dos primeiros da região – preserva um arejamento visual, com casas devidamente espaçadas, formando uma combinação agradável entre domínio público e privado. Por este Algarve, as construções mantêm uma integração perfeita na paisagem, e isso não ocorre à custa da vivência familiar, nem através da promoção de condomínios exclusivos. Não podemos deixar de imaginar o que teria sido o desenvolvimento sustentado e regrado do turismo se este exemplo tivesse sido replicado.

Para se alcançar a Praia do Barril é preciso tomar o pitoresco comboio que segue por cima do sapal durante um quilómetro, através de uma via única – que antes servia a armação de pesca do atum e tem agora como fim único transportar banhistas. No verão, o comboio é uma atração turística, mas está, sobretudo, ao serviço das famílias regulares, que ano após ano se voltam a encontrar nas pequenas carruagens do trem, para logo se dispersarem ao longo do extenso areal. O comboio é uma autêntica festa colorida, assente na combinação das vestes garridas dos veraneantes com o vermelho da automotora e o verde da ria. Esta mistura ganha um tom próprio quando a ela se juntam o cheiro incomparável do óleo diesel queimado e o som do motor do engenho.
Depois chega-se a uma praia que aparenta ser infinita: a poente o areal perde-se até à praia do Homem Nu; a nascente, até à Terra Estreita; e por fim até à Ilha de Tavira. As famílias habituais têm lugar cativo nos toldos junto do “jardim das âncoras”, uma perfeita “instalação artística” do que ficou da armação de pesca do atum que encerrou em meados dos anos sessenta, constituindo agora um cenário verdadeiramente curioso e emblemático desta praia. A longa extensão dos areais convida a grandes passeios na maré vazia até que as pegadas humanas se percam e abram espaço ao rasto das numerosas aves aquáticas que habitam o Parque Natural da Ria Formosa. (…)

In Tanto Mar, de Pedro Adão e Silva e João Catarino

[Último texto do último capítulo que se intitula: “Dez praias onde não pode deixar de mergulhar antes de morrer”. Não me dou ao trabalho de o transcrever, quase na íntegra, só por ser frequentador habitual do espaço descrito, mas também por ter sido esta a praia que primeiro frequentei ainda na barriga de minha mãe. Esta - assim como outras praias de Tavira a Vila Real de Santo António - era, uma vez por ano, onde a gente do campo visitava o mar na celebração do fim das colheitas. O languido mar azul dava aos pés descalços dos camponeses, por um dia, o sabor a sal, a outra face da frescura dos frutos – secos e verdes – que a terra quente gerava ano após ano.]

domingo, agosto 25

ALBANO MARTINS



Frutos

Quando a amada oferece
o seu corpo, ela sabe
que dos frutos apenas
se colhe o sabor.
É então
que os dedos
separam as películas,
que a lâmina desce e a água
e o fogo se misturam.
E é então que a vida
e a morte convivem
sob o mesmo tecto.

sábado, agosto 24

MANUEL BANDEIRA

Lua Nova

Meu novo quarto
Virado para o nascente:
Meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.
Depois de dez anos de pátio
Volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mônstruo incruento das madrugadas.
Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
- Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.
Não pensem que estou aguardando a lua cheia
- Esse sol da demência
Vaga e noctâmbula.
O que eu mais quero,
O de que preciso
É de lua nova.

Manuel Bandeira

sexta-feira, agosto 23

VITORINO NEMÉSIO

NOMEIO O MUNDO
 
Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.

Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso.

14.9.59

Vitorino Nemésio

terça-feira, agosto 20

Federico García Lorca

Romance Sonambulo

Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar
y el caballo en la montaña.
Con la sombra en la cintura
ella sueña en su baranda,
verde carne, pelo verde,
con ojos de fría plata.
Verde que te quiero verde.
Bajo la luna gitana,
las cosas la están mirando
y ella no puede mirarlas.

Verde que te quiero verde.
Grandes estrellas de escarcha,
vienen con el pez de sombra
que abre el camino del alba.
La higuera frota su viento
con la lija de sus ramas,
y el monte, gato garduño,
eriza sus pitas agrias.
¿Pero quién vendrá? ¿Y por dónde?
Ella sigue en su baranda,
verde carne, pelo verde,
soñando en la mar amarga.

-Compadre, quiero cambiar
mi caballo por su casa,
mi montura por su espejo,
mi cuchillo por su manta.
Compadre, vengo sangrando,
desde los puertos de Cabra.
-Si yo pudiera, mocito,
este trato se cerraba.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
-Compadre, quiero morir,
decentemente en mi cama.
De acero, si.puede ser,
con las sábanas de holanda.
¿No ves la herida que tengo
desde el pecho a la garganta?
-Trescientas rosas morenas
lleva tu pechera blanca.
Tu sangre rezuma y huele
alrededor de tu faja.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
-Dejadme subir al menos
hasta las altas barandas,
dejadme subir!, dejadme
hasta las verdes barandas.
Barandales de la luna
por donde retumba el agua.

Ya suben los doscompadres
hacia las altas barandas.
Dejando un rastro de sangre.
Dejando un rastro de lágrimas.
Temblaban en los tejados
farolillos de hojalata.
Mil panderos de cristal
herían la madrugada.

Verde que te quiero verde,
verde viento, verdes ramas.
Los dos compadres subieron.
El largo viento dejaba
en la boca un raro gusto
de hiel, de menta y de albahaca.
-¡Compadre! ¿Dónde está, dime?
¿Dónde está tu niña amarga?
¡Cuántas veces te esperó!
¡Cuántas veces te esperara,
cara fresca, negro pelo,
en esta verde baranda!

Sobre el rostro del aljibe
se mecía la gitana.
Verde carne, pelo verde,
con ojos de fría plata.
Un carámbano de luna
la sostiene sobre el agua.
La noche se puso íntima
como una pequeña plaza.
Guardias civiles borrachos
en la puerta golpeaban.
Verde que te quiero verde,
verde viento, verdes ramas.
El barco sobre la mar.
Y el caballo en la montaña.

Federico García Lorca

(Há uma magnífica tradução em português
deste poema de autoria de
Eugénio de Andrade em "Trinta
e Seis Poemas e Uma Aleluia Erótica",
Editorial Inova, 1968)

BUENOS AIRES - ARGENTINA

Pero yo estoy de pie, de frente al enemigo,
la vida, y no temo su arrebato fatal

porque tengo en la mano siempre pronto un puñal.

Alfonsina Storni

sábado, agosto 17

POLÍTICA - 15

Os acontecimentos trágicos do Egipto suscitam a velha questão da liberdade. Nestes momentos face às circunstâncias do tempo que é o nosso, sem meias palavras, é preciso proclamar, além das conveniências políticas do momento, a defesa da liberdade e a condenação da tirania. Mesmo que os argumentos do caminho que conduz à tirania sejam  "embrulhados" em palavras da defesa de uma liberdade futura. Os povos do Ocidente deviam envergonhar-se da tibieza dos seus politicas que esgotam a condenação da violência, e a negação da liberdade, em pura retórica balofa. 

quinta-feira, agosto 15

" É TARDE, MUITO TARDE DA NOITE ..."

É tarde, muito tarde da noite,
trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente,
voltei, ouço música, estou terrivelmente cansado.
Exactamente terrivelmente com a sua banalidade
é o que pode dar a medida do meu cansaço.
Como estou cansado. De ter trabalhado muito,
ter feito um grande esforço para depois
interessar-me por outras pessoas
quando estou cansado demais para me interessarem as pessoas.
E é tarde, devia ter-me deitado mais cedo,
há muito que devera estar a dormir.
Mas estou acordado com o meu cansaço
e a ouvir música. Desfeito de cansaço,
incapaz de pensar, incapaz de olhar,
totalmente incapaz até de repousar à força de
cansaço. Um cansaço terrível
da vida, das pessoas, de mim, de tudo.
E fumo cigarro após cigarro no desespero
de estar tão cansado. E ouço música
(por sinal a sonata para violino e piano
de César Franck, e depois os Wesendonck Lieder)
num puro cansaço de dissolver-me
como Brunhilda ou como Isolda
no que não aceitarei nunca,
l' amor che muove il sole e l' altre stelle.
Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado,
e o outro que não ama, apenas queima e passa , e de cuja
dissolução no espaço e no tempo em que vivo
estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas
que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno.

Eu estou cansado de não me dissolver
continuamente em cada instante da vida,
ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo.
Qu' ai-je à faire de l' eternel? I live here.
Non abbiamo confusion. E aqui é que
morrerei danado de cansaço, como hoje estou
tão terrivelmente cansado.

Jorge de Sena

Dez. 22/70

In “Visão Perpétua” [1982]

quarta-feira, agosto 14

POLÍTICA - 14

Foram tornados públicos indicadores que confirmam indícios de recuperação da economia em Portugal. Nos países com as economias mais representativas da UE (Alemanha e França) o movimento vai no mesmo sentido. Ou ao contrário em Portugal a recuperação segue a dos países centrais da UE (e também dos USA). Se estes indícios se consolidam se verá mais adiante. Quero crer que sim pois há quem estude a matéria (fora da luta partidária) e confere a tendência. Face a estes indícios há duas linhas de opinião que a meu ver devem ser combatidas: 1ª a que desliga a política da economia seja em que sentido for, ou seja, os que tendem a defender que qualquer evolução positiva da economia nada tem a ver com as politicas associadas; em duas palavras é perigoso para a democracia não valorizar a politica e "apagar" os partidos das boas notícias da frente económica; 2ª a tendência das oposições para seguir uma ideia feita qual seja a de que o poder não se conquista mas nos cai no regaço pelos erros e inépcia dos adversários que ocupam o lugar do governo ou, pior, a tendência dos partidos de protesto que diabolizam o lugar do governo. Mais vale apreciar os resultados da economia, em cada momento, como um resultado de um conjunto de movimentos para os quais todos contribuem e dos quais, seja qual for o sinal que emanam, todos são responsáveis.

terça-feira, agosto 13

Jan Dismas Zelenka

LUIS DE CAMÕES

Oh! Como se me alonga de ano em ano
A peregrinação cansada minha!
Como se encurta e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!
Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
Perde-se-me um remédio que inda tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.
Corro após este bem que não se alcança;
No meio do caminho me falece;
Mil vezes caio e perco a confiança.
Quando ele foge, eu tardo; e na tardança,
Se os olhos ergo, a ver se inda parece
Da vista se me perde e da esperança.

Luís de Camões

Sonetos - Edição de Lobo Soropita, de 1595
Lírica - Círculo de Leitores