Sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberto em relação a todos pela excelente razão que me considerava sem igual. Julguei-me sempre mais inteligente do que ninguém, disse-lhe eu, mas também mais sensível e mais destro, atirador de escol, volante inigualável, e melhor amante. (…) Não me reconhecia senão superioridades, o que explicava a minha benevolência e a minha serenidade. Quando me ocupava de outrem, era pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia a meu favor: eu subia um degrau no amor a mim mesmo.
Com algumas outras verdades, descobri a pouco e pouco estas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, nem com grande nitidez. Tive, antes de mais, de recuperar a memória. (…) Até ali, tinha sido sempre ajudado por uma espantosa faculdade de esquecimento. Esquecia tudo e em primeiro lugar as minhas resoluções. No fundo, nada contava. Guerra, suicídio, amor, miséria, prestava-lhes atenção, é certo, quando as circunstâncias a isso me obrigavam, mas de uma maneira cortês e superficial.
(…) Eu não era lá de muito bom estofo para perdoar as ofensas, mas acabava sempre por esquecê-las. E, se alguém se julgasse detestado por mim, não se livrava de se ver saudado com um largo sorriso. Consoante a sua natureza, admirava então a minha grandeza de alma ou desdenhava a minha baixeza, sem pensar que a minha razão era mais simples: eu tinha esquecido até o seu nome.
Albert Camus, in A Queda
Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,
Editado por Eduardo Graça
quinta-feira, outubro 31
terça-feira, outubro 29
segunda-feira, outubro 28
ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (20)
Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.
É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.
É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!
É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.
É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!
Albert Camus, in A Queda
domingo, outubro 27
ANIVERSÁRIO
No dia de 23º aniversário do meu filho Manuel recoloco uma fotografia de quando eu próprio teria a idade que ele tem hoje. Os traços mantêm-se, no essencial, e trespassam as gerações. Ele vai começar a trabalhar, por opção própria, num tempo em que são escassas as oportunidades de trabalho grassando o desemprego jovem. Buscou esse caminho, sem ajudas nem encómios, e todos os esforços e sacrifícios valem a pena na construção de um futuro no qual o trabalho será uma das experiências mais importantes. É uma coincidência interessante e o meu mais profundo desejo é que seja feliz.
[A fotografia foi obtida aquando de uma representação da peça "Histórias para serem contadas" do argentino Osvaldo Dragun.]
sábado, outubro 26
ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (19)
É verdade, o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média chamavam o «desconforto»? Em geral, esqueciam-nos aí para o resto da vida. Esta cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficientemente alta para se poder estar de pé, nem suficientemente larga para se poder estar deitado. Tinha-se de adoptar o género tolhido, viver em diagonal; o sono era uma queda, a vigília um acocoramento. Meu caro, havia génio, e eu peso as minhas palavras, neste achado tão simples. Todos os dias, pelo imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, o condenado sabia que estava culpado e que a inocência consiste em nos espreguiçarmos gostosamente. Pode imaginar nesta cela um frequentador dos cimos e das cobertas dos navios? O quê? Podia-se viver nesta cela e ser-se inocente? Improvável, altamente improvável! Ou então o meu raciocínio caía pela raiz. Que a inocência seja forçada a viver corcunda, recuso-me a considerar por um único segundo esta hipótese. De resto, nós não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos. Cada homem atesta o crime de todos os outros, eis a minha fé e a minha esperança.
Albert Camus, in A Queda
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sexta-feira, outubro 25
LIBERDADE - uma vez mais
Vivemos no interior de uma espécie de grande intervalo entre um passado/presente, marcado pelo mais longo período de paz na Europa, e um futuro pleno de incógnitas. Podemos-nos acomodar, cada um à sua maneira, na espera paciência que surjam soluções que tudo mudem menos o que não interessa a cada um de nós que mude. Mas as grandes mudanças, uma das quais parece crescer debaixo de nossos pés, não se compadecem com o recato das omissões. Uma das escolhas centrais que cada um de nós será chamado a fazer, como sempre acontece, é entre a liberdade e a tirania. E mais do que uma questão filosófica, que se pode e deve debater, a questão da liberdade é uma questão da prática quotidiana. Multiplicam-se os sinais de alarme que ecoam das notícias e se sucedem a cada passo das nossas vidas. Cada um, e todos, cuidemos antes de mais de não deixar passar em silêncio, e sem denúncia, mesmo nos mais pequenos círculos de amigos, todos os sinais que prenunciem limitações à liberdade. E tantos são eles!
quarta-feira, outubro 23
ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (18)
« … Acontece-me, por vezes, ao voltar de uma dessas curtas tréguas que nos deixa a luta comum, pensar em todos os recantos da Europa que conheço bem. É uma terra magnífica, feita de sacrifícios e de história. Revejo as peregrinações que fiz com todos os homens do Ocidente. As rosas nos claustros de Florença, as tulipas douradas de Cracóvia, o Hradschin com os seus paços mortos, as estátuas contorcidas da ponte Karl sobre Ultava, os delicados jardins de Salzburgo. Todas essas flores, essas pedras, essas colinas e essas paisagens onde o tempo dos homens e o tempo da natureza confundiram velhas árvores e monumentos! A minha memória fundiu essas imagens sobrepostas para delas formar um rosto único: o da minha pátria maior. Algo me oprime quando penso, então, que sobre esse rosto enérgico e atormentado paira, desde alguns anos, a vossa sombra. E no entanto, há alguns desses lugares que você visitou comigo. Eu não imaginava, nessa altura, que fosse um dia necessário defendê-los contra os vossos. E agora ainda, em certos momentos de raiva e desespero, lamento que as rosas possam ainda crescer no claustro de São Marcos, os pombos lançar-se em bandos da catedral de Salzburgo e os gerânios vermelhos germinarem incessantemente nos pequenos cemitérios da Silésia.
Mas, noutros momentos, e são esses os verdadeiros, sinto-me feliz que assim seja. Porque todas as paisagens, todas as flores e todos os trabalhos, a mais antiga das terras, vos demonstram, em cada Primavera, que há coisas que não podereis abafar no sangue. […] Sei assim que tudo na Europa, a paisagem e a alma, vos rejeitam serenamente, sem ódios desordenados, mas com a força calma das vitórias. As armas de que dispõe o espírito europeu contra as vossas são as mesmas que nesta terra sempre renascente fazem crescer as searas e as corolas. O combate em que nos empenhamos possui a certeza da vitória, porque é teimoso como a Primavera. … »
Albert Camus, Cartas a um Amigo Alemão
Mas, noutros momentos, e são esses os verdadeiros, sinto-me feliz que assim seja. Porque todas as paisagens, todas as flores e todos os trabalhos, a mais antiga das terras, vos demonstram, em cada Primavera, que há coisas que não podereis abafar no sangue. […] Sei assim que tudo na Europa, a paisagem e a alma, vos rejeitam serenamente, sem ódios desordenados, mas com a força calma das vitórias. As armas de que dispõe o espírito europeu contra as vossas são as mesmas que nesta terra sempre renascente fazem crescer as searas e as corolas. O combate em que nos empenhamos possui a certeza da vitória, porque é teimoso como a Primavera. … »
Albert Camus, Cartas a um Amigo Alemão
DOURO DE MIE ALMA
Ah! riu de ls mius amores!
Guardian de las streilhas.
Quanto gusto de ti
I de ls tous ancantos!
Que buòno vê
Ber las ailas a bolar.
Ls paixaricos a cantar.
Las fáias a assomar …
Oubir, scuitar …
Ls cachones a fungar.
Niébros i carrascos a silbar.
Pastores sues fraitas a tocar
L’auga a caminar
Sien parar …
Pa l mar eimenso …
A chorar …
Ah! Douro de mie alma!
Tu tenes, boç.
Sós fuônte de bida.
D’einergie i riqueza.
L sangre de la tiêrra.
Como tu.
Nun hai eigual.
Sós la lhuç de Miranda.
Lhuç de Pertual!
Domingos Raposo
(Em língua mirandesa.)
terça-feira, outubro 22
ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (17)
Je comprends ici ce qu´on appelle gloire: le droit d´aimer sans mesure. Il n´y a qu´un seul amour dans ce monde. Étreindre un corps de femme, c´est aussi retenir contre soi cette joie étrange qui descend du ciel vers la mer.
Albert Camus, in “Noces à Tipasa”
Na fotografia María Casares, atriz, uma grande paixão da sua vida.
Albert Camus, in “Noces à Tipasa”
Na fotografia María Casares, atriz, uma grande paixão da sua vida.
segunda-feira, outubro 21
PABLO NERUDA
"E numa certa manhã tudo ardia,
Chacais que seriam alvo de desprezo de outros chacais,
Face a face com vocês vi o sangue
Generais
E vocês me perguntarão:
Venham e vejam o sangue nas ruas,
Pablo Neruda
(Excerto do poema “Explico Algunas cosas” de Pablo Neruda, citado por Harold Pinter na Conferência de atribuição do Prémio Nobel da Literatura.)
---------------------------------------------
Explico algunas cosas
Preguntaréis: ¿Y dónde están las lilas?
Os voy a contar todo lo que me pasa.
Raúl, ¿te acuerdas?
Todo
Y una mañana todo estaba ardiendo
¡Chacales que el chacal rechazaría,
¡Frente a vosotros he visto la sangre
Generales
Preguntaréis: ¿por qué su poesía
¡Venid a ver la sangre por las calles,
Pablo Neruda
numa manhã o fogo
saltava da terra
devorando os seres,
e ardia,
havia pólvora,
e sangue.
Bandidos com aviões e mouros,
bandidos com anéis nos dedos e duquesas,
bandidos com frades negros e suas bendições
vinham pelo céu matar crianças,
e o sangue delas escorria pelas ruas
sem ruído algum, corria como sangue de criança.
Chacais que seriam alvo de desprezo de outros chacais,
pedras que o cardo seco morderia
e cuspiria, víboras que as próprias víboras abominariam!
Face a face com vocês vi o sangue
da Espanha erguer-se
para afogá-los em uma onda
de orgulho e de facas!
Generais
traidores:
vejam minha casa morta,
vejam a Espanha alquebrada:
de todas as casas sai um metal
que arde,
em vez de flores,
mas de cada oco da Espanha
a Espanha emerge
e de cada criança morta sai um rifle
com olhos,
e de cada crime nascem balas
que um dia encontrarão o caminho
do coração de vocês.
E vocês me perguntarão:
por que os poemas dele
não falam de sonhos, e de folhas
e dos grandes vulcões de sua terra natal.
Venham e vejam o sangue nas ruas,
venham e vejamo sangue nas ruas,
venham e vejam o sangue nas ruas!"
Pablo Neruda
(Excerto do poema “Explico Algunas cosas” de Pablo Neruda, citado por Harold Pinter na Conferência de atribuição do Prémio Nobel da Literatura.)
---------------------------------------------
Explico algunas cosas
Preguntaréis: ¿Y dónde están las lilas?
¿Y la metafísica cubierta de amapolas?
¿Y la lluvia que a menudo golpeaba
sus palabras llenándolas
de agujeros y pájaros?
Os voy a contar todo lo que me pasa.
Yo vivía en un barrio
de Madrid, con campanas,
con relojes, con árboles.
Desde allí se veía
el rostro seco de Castilla
como un océano de cuero.
Mi casa era llamada
la casa de las flores, porque por todas partes
estallaban geranios: era
una bella casa
con perros y chiquillos.
Raúl, ¿te acuerdas?
¿Te acuerdas, Rafael?
Federico, ¿te acuerdas
debajo de la tierra,
te acuerdas de mi casa con balcones en donde
la luz de junio ahogaba flores en tu boca?
¡Hermano, hermano!
Todo
eran grandes voces, sal de mercaderías,
aglomeraciones de pan palpitante,
mercados de mi barrio de Argüelles con su estatua
como un tintero pálido entre las merluzas:
el aceite llegaba a las cucharas,
un profundo latido
de pies y manos llenaba las calles,
metros, litros, esencia
aguda de la vida,
pescados hacinados,
contextura de techos con sol frío en el cual
la flecha se fatiga,
delirante marfil fino de las patatas,
tomates repetidos hasta el mar.
Y una mañana todo estaba ardiendo
y una mañana las hogueras
salían de la tierra
devorando seres,
y desde entonces fuego,
pólvora desde entonces, y desde entonces
sangre.
Bandidos con aviones y con moros,
bandidos con sortijas y duquesas,
bandidos con frailes negros bendiciendo
venían por el cielo a matar niños,
y por las calles la sangre de los niños
corría simplemente, como sangre de niños.
¡Chacales que el chacal rechazaría,
piedras que el cardo seco mordería escupiendo,
víboras que las víboras odiarían!
¡Frente a vosotros he visto la sangre
de España levantarse
para ahogaros en una sola ola
de orgullo y de cuchillos!
Generales
traidores:
mirad mi casa muerta,
mirad España rota:
pero de cada casa muerta sale metal ardiendo
en vez de flores,
pero de cada hueco de España
sale España,
pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos,
pero de cada crimen nacen balas
que os hallarán un día el sitio
del corazón.
Preguntaréis: ¿por qué su poesía
no nos habla del sueño, de las hojas,
de los grandes volcanes de su país natal?
¡Venid a ver la sangre por las calles,
venid a verla sangre por las calles,
venid a ver la sangre por las calles!
Pablo Neruda
domingo, outubro 20
ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (16)
Albert Camus era um apaixonado pelo futebol e só não foi praticante “a sério” por razões de saúde. Era guarda redes, ao que dizem, dos bons e a escolha do lugar tem uma comezinha razão de natureza económica. É que lhe permitia gastar menos as solas das botas que a avó inspeccionava, minuciosamente, da cada vez que chegava a casa.
C'est le football qui lui a laissé les meilleurs souvenirs. Il jouait comme gardien de but dans la cour du lycée, et aussi le dimanche dans l'équipe junior du RUA, le Racing Universitaire Algérois. Certes, il n'a jamais joué dans la grande équipe première du RUA, celles des frères Couard et de Faglin. Mais il a écrit sur le foot des pages savoureuses. Il a d'abord joué un an à l'Association Sportive de Montpensier à cause d'un " ami velu " qui avait voulu suivre une fille qui dansait mal. Alors Albert s'est inscrit au Racing Universitaire puisqu'on y jouait " scientifiquement ". Il a raconté des matches mémorables contre l'O.H.D., le club d'Hussein-Dey, où les avants essayaient de l'impressionner en lui montrant le cimetière tout proche; et contre Boufarik, où il avait un avant surnommé Pastèque qui le chargeait furieusement. " Le football, a dit Gabriel Conesa, c'était notre religion ". Et Camus d'ajouter : " Ce que je sais de plus sûr sur la morale des hommes, c'est au sport que je le dois, c'est au RUA que je l'ai appris ". Et encore dans " La Chute " : " Avec le théâtre, le stade est le seul endroit au monde où je me sens innocent ".
C'est le football qui lui a laissé les meilleurs souvenirs. Il jouait comme gardien de but dans la cour du lycée, et aussi le dimanche dans l'équipe junior du RUA, le Racing Universitaire Algérois. Certes, il n'a jamais joué dans la grande équipe première du RUA, celles des frères Couard et de Faglin. Mais il a écrit sur le foot des pages savoureuses. Il a d'abord joué un an à l'Association Sportive de Montpensier à cause d'un " ami velu " qui avait voulu suivre une fille qui dansait mal. Alors Albert s'est inscrit au Racing Universitaire puisqu'on y jouait " scientifiquement ". Il a raconté des matches mémorables contre l'O.H.D., le club d'Hussein-Dey, où les avants essayaient de l'impressionner en lui montrant le cimetière tout proche; et contre Boufarik, où il avait un avant surnommé Pastèque qui le chargeait furieusement. " Le football, a dit Gabriel Conesa, c'était notre religion ". Et Camus d'ajouter : " Ce que je sais de plus sûr sur la morale des hommes, c'est au sport que je le dois, c'est au RUA que je l'ai appris ". Et encore dans " La Chute " : " Avec le théâtre, le stade est le seul endroit au monde où je me sens innocent ".
sábado, outubro 19
VINICIUS DE MORAIS - DIA DO CENTENÁRIO
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Vinicius de Morais
POUPANÇA
Eu nasci no tempo da escassez, sou um “baby boomer”, ou seja, nascido no período imediatamente posterior à 2ª Grande Guerra.
Os meus pais eram camponeses remediados que "emigraram" para a cidade, logo após o casamento, em busca de uma vida melhor. O meu pai enveredou pelo comércio e no tempo da guerra acumulou riqueza que, à sua escala, permitiu que a família alcançasse um padrão de vida próprio da “classe média” da época.
Apercebi-me da existência do dinheiro por ver o meu pai fazer as contas da receita do dia. Eram muitas moedas que separava e juntava fazendo rolos em papel com quantias certas, escriturando, ao mesmo tempo, as importâncias que somava à mão.
Os rolos eram criteriosamente organizados e, depois de separada uma parte para as despesas da casa, depositados no Banco. Até à alta adolescência não me cabia qualquer parte desse bolo. Não havia mesada.
Os anos 40/50 do século passado foram uma época de uma espécie de “aforro forçado” e aprendi que o dinheiro era um bem sagrado e raro, destinado mais à poupança que ao consumo. Somente na alta adolescência, já em outra fase dos negócios da família, me foi permitido o acesso ao dinheiro. Acesso livre e sem restrições.
Curiosamente sempre me deram, em família, o privilégio desse acesso sem necessidade de qualquer controle, já que havia um contrato não escrito fundado na confiança. Nunca ninguém me ralhou por gastar de mais, nem se condoeu por gastar de menos.
O aforro assumiu, como contraparte à moderação do consumo por opção própria, a face mais importante da minha educação financeira.
Uma das questões centrais que se colocam às organizações de todas as naturezas, mesmo as que lidam com atividades do chamado não mercado (entre as quais as organizações que atuam na área social), é a autossustentabilidade.
Ainda antes da questão da poupança, mas em interligação com ela, surge a necessidade de cuidar de prover de forma criteriosa à cobertura dos encargos e dos riscos de toda e qualquer atividade ou negócio. Assume, de novo, uma importância central a questão do crédito, pela escassez e preço do mesmo, devolvendo à agenda dos gestores questões antigas, e que alguns julgavam obsoletas, como a do valor do capital próprio, a capacidade de gerar excedentes, ou lucros, para afetar a reservas, a solvabilidade, a confiança como valor de mercado, a solidariedade como valor humano do que alguns começam a apelidar de valores da economia social de mercado.
Os valores e princípios da economia social solidária, entre os quais avultam os da cooperação e da solidariedade, têm ganho “direito de cidade”, assomam nos discursos e preocupações dos economistas de referência, explodem em notoriedade com as intervenções públicas do Papa Francisco (de leitura obrigatória!), relativizando o valor do dinheiro e resgatando o valor do Homem.
Neste contexto de mudança, de contornos ainda mal definidos, a escassez associada à valorização do fator trabalho gera, como todos os especialistas sabem, uma revalorização da poupança associada à necessidade de cuidar cada vez com mais cuidado e atenção da autossustentabilidade.
Não sou capaz de dar conselhos de poupança mas tão-somente de sugerir um investimento mais forte, duradouro e estruturado na educação para um consumo criterioso e moderado, não só por imposição de critérios políticos de austeridade macro, com profundas implicações micro, mas, mais importante, por imperativos de uma filosofia de vida em sociedade orientada no combate ao desperdício e à plena utilização dos recursos disponíveis.
[Um testemunho para a revista digital do Montepio acerca do tema poupança no qual introduzo uma pequena correção pois podia dar a ideia que os meus pais emigraram para o estrangeiro e o que queria dizer é que "emigraram" para a cidade.]
Os meus pais eram camponeses remediados que "emigraram" para a cidade, logo após o casamento, em busca de uma vida melhor. O meu pai enveredou pelo comércio e no tempo da guerra acumulou riqueza que, à sua escala, permitiu que a família alcançasse um padrão de vida próprio da “classe média” da época.
Apercebi-me da existência do dinheiro por ver o meu pai fazer as contas da receita do dia. Eram muitas moedas que separava e juntava fazendo rolos em papel com quantias certas, escriturando, ao mesmo tempo, as importâncias que somava à mão.
Os rolos eram criteriosamente organizados e, depois de separada uma parte para as despesas da casa, depositados no Banco. Até à alta adolescência não me cabia qualquer parte desse bolo. Não havia mesada.
Os anos 40/50 do século passado foram uma época de uma espécie de “aforro forçado” e aprendi que o dinheiro era um bem sagrado e raro, destinado mais à poupança que ao consumo. Somente na alta adolescência, já em outra fase dos negócios da família, me foi permitido o acesso ao dinheiro. Acesso livre e sem restrições.
Curiosamente sempre me deram, em família, o privilégio desse acesso sem necessidade de qualquer controle, já que havia um contrato não escrito fundado na confiança. Nunca ninguém me ralhou por gastar de mais, nem se condoeu por gastar de menos.
O aforro assumiu, como contraparte à moderação do consumo por opção própria, a face mais importante da minha educação financeira.
Uma das questões centrais que se colocam às organizações de todas as naturezas, mesmo as que lidam com atividades do chamado não mercado (entre as quais as organizações que atuam na área social), é a autossustentabilidade.
Ainda antes da questão da poupança, mas em interligação com ela, surge a necessidade de cuidar de prover de forma criteriosa à cobertura dos encargos e dos riscos de toda e qualquer atividade ou negócio. Assume, de novo, uma importância central a questão do crédito, pela escassez e preço do mesmo, devolvendo à agenda dos gestores questões antigas, e que alguns julgavam obsoletas, como a do valor do capital próprio, a capacidade de gerar excedentes, ou lucros, para afetar a reservas, a solvabilidade, a confiança como valor de mercado, a solidariedade como valor humano do que alguns começam a apelidar de valores da economia social de mercado.
Os valores e princípios da economia social solidária, entre os quais avultam os da cooperação e da solidariedade, têm ganho “direito de cidade”, assomam nos discursos e preocupações dos economistas de referência, explodem em notoriedade com as intervenções públicas do Papa Francisco (de leitura obrigatória!), relativizando o valor do dinheiro e resgatando o valor do Homem.
Neste contexto de mudança, de contornos ainda mal definidos, a escassez associada à valorização do fator trabalho gera, como todos os especialistas sabem, uma revalorização da poupança associada à necessidade de cuidar cada vez com mais cuidado e atenção da autossustentabilidade.
Não sou capaz de dar conselhos de poupança mas tão-somente de sugerir um investimento mais forte, duradouro e estruturado na educação para um consumo criterioso e moderado, não só por imposição de critérios políticos de austeridade macro, com profundas implicações micro, mas, mais importante, por imperativos de uma filosofia de vida em sociedade orientada no combate ao desperdício e à plena utilização dos recursos disponíveis.
[Um testemunho para a revista digital do Montepio acerca do tema poupança no qual introduzo uma pequena correção pois podia dar a ideia que os meus pais emigraram para o estrangeiro e o que queria dizer é que "emigraram" para a cidade.]
quinta-feira, outubro 17
ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (15)
Calígula. O gládio e o punhal.
“Creio que não me compreenderam bem anteontem quando ataquei o sacrificador com o maço com que ele ia matar a bezerra. No entanto era muito simples. Por uma vez, quis alterar a ordem das coisas – para ver, em suma. O que vi, é que nada mudou. Um pouco de espanto e de pavor nos espectadores. Quanto ao resto, o sol pôs-se à mesma hora. Concluí que era indiferente alterar a ordem das coisas.”
Mas por que motivo um dia o sol não nascerá a oeste?
*
Id. (Ptolémée). Mandei-o matar porque não havia razão para que ele fizesse um casaco mais belo que o meu. De facto não havia razão. Claro que também não havia razão para que o meu casaco fosse o mais belo. Mas ele não estava consciente disso e, visto que eu era o único a ver claro, é normal que obtivesse vantagens.
*
Dom Quixote e La Pallice.
La Pallice. – Um quarto de hora antes da minha morte, ainda estava com vida. Isso bastou para a minha glória. Mas essa glória é usurpada. A minha verdadeira filosofia é que um quarto de hora após a minha morte, já não estarei com vida.
Dom Quixote. – Sim. Combati moinhos de vento. Pois é profundamente indiferente combater moinhos de vento ou gigantes. A tal ponto indiferente que é fácil confundi-los. Tenho uma metafísica míope.
In Cadernos (Caderno nº 3 – Abril 1939/Fevereiro 1942) - Albert Camus – Edições Livros do Brasil
CARLOS DE OLIVEIRA
"Dêem-me a terra, mesmo poluída."
“Lá em baixo, onde as avenidas desaguam no rio (afluentes de alcatrão em pedra), os esgotos, o lixo pela água dentro. Mais adiante cemitérios de comboios, a ferrugem cor de chocolate espesso e uma tímida erva selvagem nos reiles carcomidos. O hidrovião, de súbito, poisado a meio da estrada marginal, com gaivotas sobre as asas desmanteladas. Outros dois suspensos nas breves rampas de lançamento, enquanto a aragem fluvial lhes desenha manchas de óxido na fuselagem, esquecidos à beira do cais cheio de lodo, limos, detritos encrostados na alvenaria, e apesar disso a água dum azul claríssimo. Por enquanto. Depois o extenso gradeamento do parque militar. Mais detritos. A manhã desolada. Centenas de viaturas podres, jipes, tanques, milhares de pneus abandonados, pirâmides negras de borracha, e (ao voltarmos) milhões de estrelas no firmamento. Dêem-me a terra, mesmo poluída. Este carbono pulmonar, onde contudo adeja ainda a nossa ração de oxigénio. Toda a tarde o calor turvo no horizonte, que nos lembrava o halo silencioso de um incêndio. Árvores em fogo. Três nuvens rectilíneas de céu a céu, três traços de fumo deixados pelos jactos de uma patrulha. Urbanização nas alturas. Como é que a tua beleza, Gelnaa, há-de sobreviver sem uma máscara antigás?”
Carlos de Oliveira, In “O Aprendiz de Feiticeiro”. (Um ecologista "avant la lettre").
Carlos de Oliveira, In “O Aprendiz de Feiticeiro”. (Um ecologista "avant la lettre").
terça-feira, outubro 15
ALBERT CAMUS (CENTENÁRIO) - 14
Não se pode dizer que já não há piedade, não, deuses do céu, nós não cessámos de falar nela. Simplesmente, já não se absolve ninguém. Sobre a inocência morta pululam os juízes, os juízes de todas as raças, os de Cristo e os do Anticristo, que são, aliás, os mesmos, reconciliados no «desconforto».
Aquele que adere a uma lei não teme o julgamento que o reinstala numa ordem em que crê. Mas o maior dos tormentos humanos é ser julgado sem lei. Nós vivemos, porém, neste tormento.
Uma pessoa das minhas relações dividia os seres em três categorias: os que preferem não ter nada que esconder a serem obrigados a mentir, os que preferem mentir a não ter nada que esconder e, finalmente, os que amam ao mesmo tempo a mentira e o segredo. Deixo à sua escolha o compartimento que me convém.
Que importa, no fim de contas? As mentiras não conduzem finalmente à via da verdade? E as minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tenderão todas para o mesmo fim, não terão o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas se, nos dois casos, são significativas do que fui e do que sou?
GOSTO
Gosto que me tomes
me abras
me invadas
Me voltes e tornes
me envolvas
e faças
Gosto que me entornes
me abraces
me lavres
Me beijes e bebas
me enlaces
e largues
Gosto que me voltes
me pegues
me mates
Me dês um nó
cego
e depois me desates
me abras
me invadas
Me voltes e tornes
me envolvas
e faças
Gosto que me entornes
me abraces
me lavres
Me beijes e bebas
me enlaces
e largues
Gosto que me voltes
me pegues
me mates
Me dês um nó
cego
e depois me desates
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