sexta-feira, maio 2

APENAS ISSO - 25 de abril - 40 anos, 81




Fotografia de Hélder Gonçalves


Dai-me ainda outro verão,
um verão do sul, redondo
lento maduro; um verão
de rolas frementes de cio,
de porosa alegria, de luz varrida
pela cal; dai-me
mais um verão rente à sombra
do pátio onde um rumor
cativo do poço sobe aos ramos;
um verão
limpo como o céu da boca;
mais dentro, mais fundo.



Ou por fim o silêncio.
Caindo a prumo.




Foz do Douro, 8/1/99

quinta-feira, maio 1

BREVE OLÊNCIA - 25 de abril - 40 anos, 80


Fotografia de Hélder Gonçalves

Estão cerrados todos os jardins,
onde asas voaram e se romperam as pedras.
Como esquecer as estrelas pousadas no verão
e a ciência exacta das flores claras de ar?
Estão cerrados todos os jardins,
queimados da fome, escarlates de treva.
Que tempo esvoaça, lacuna ou máscara,
pelo lento longo suor das noites?
Estão cerrados todos os jardins,
hoje ervas sem pálpebras, gritos sem boca.
Cativeiros de estátuas, deixaram que o tempo
durasse muito tempo, em campo entardecido.
Estão cerrados todos os jardins,
Em palavras vendidas que esconderam o mundo.
Os olhos ruídos soam a sombra
nos risos sem riso, nos corações calados.
Estão cerrados todos os jardins.
A pele cresce, digerimos o vazio.
As palavras articulam-se de ossos.
Mudada em terra, toda água morrerá.
Estão cerrados todos os jardins
e seus lazeres felinos, seus salmos de pé.
É a hora surda de cicatrizes sem beijos,
de muros soterrados e pulsos incolores.
Estão cerrados todos os jardins
e vão nascendo dólmenes e corujas de ouro.
Porque se agita ainda a cauda dos peixes,
buscando fogos extintos no termo dos rios?
Estão cerrados todos os jardins.
A nada a alma se assemelha.
O mar perdeu-se contra as paredes.
Vivemos do que não pudemos viver.
Estão cerrados todos os jardins,
são antigas as novidades do mundo,
obedecemos a ordens, a norte do futuro.
Mas ainda estamos nus. E respiraremos.

Orlando Neves

quarta-feira, abril 30

terça-feira, abril 29

DEPOIS - 25 de abril - 40 anos, 78



Fotografia de Hélder Gonçalves

Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração,
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.

Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas
e de poços e de portas entreabertas
e sonham no escuro
as coisas acabadas.

Manuel António Pina

segunda-feira, abril 28

ANIVERSÁRIO

        

                                         ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.]
 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
 
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
 
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),]
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!]
 
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...]
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,]
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –,]
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
 
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
 
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

15 de Outubro de 1929

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

domingo, abril 27

DA VOZ DAS COISAS - 25 de abril - 40 anos, 77

Fotografia de Hélder Gonçalves

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

Fiama Hasse Pais Brandão
.

sexta-feira, abril 25

O POETA - 25 de abril - 40 anos, 76



Fotografia de Hélder Gonçalves

Trabalha agora na importação e exportação. Importa
metáforas, exporta alegorias. Podia ser um trabalhador por conta própria,
um desses que preenche cadernos de folha azul com números
de deve e haver. De facto, o que deve são palavras; e o que tem
é esse vazio de frases que lhe acontece quando se encosta
ao vidro, no inverno, e a chuva cai do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol e exportar as nuvens. Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas, de certo modo, a sua
prática confunde-se com a de um escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que passa a caminho da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu; e fixa, na dureza da noite,
o bater de asas, o azul, a sábia interrupção da morte.

FOI BONITA A FESTA, PÁ

quinta-feira, abril 24

sem título - 25 de abril - 40 anos, 75




Fotografia de Hélder Gonçalves


No verão, por vezes, o vento Leste invade
a urbe. O vento da meseta – que o povo
diz não trazer nada de bom -, seca tudo
na sua frente. Também a cidade
está cheia de pessoas que secam tudo
na sua frente. Só conhecem pássaros
em gaiolas, árvores em toros
para crepitarem nas lareiras. O vento
cai, os insectos que arrastou
adubam os canteiros. As pessoas
duram todo o ano, estão sempre
vigilantes nas suas teias. De quem
falo – perguntas –. Ignoro! Abri
o computador a pensar num poema
e o texto foi invadido por um vento
cálido que não sei
para onde se dirige. Esperarei
Setembro, outra atmosfera, poderei
sair de casa, ir até ao correio,
escrever mensagens em que as aves
chilreiem, façam ninhos primaveris,
e pensar a cidade como se eu fosse
um forasteiro, com olhos de espanto:
carregar a memória com o crepúsculo,
coleccionar metáforas para,
no regresso, depositar
sob o teu olhar, avançar a mão
para a floresta, galopar intra-muros,
ouvir depois o boletim meteorológico
para saber onde iremos amanhã.


quarta-feira, abril 23

Sem título - 25 de abril - 40 anos, 74



Fotografia de Hélder Gonçalves

   Para que nasças no mês anterior
Para que nasças muito antes de chegares

Para que amanheças já aberta e recortada
No tempo anterior à tua vinda
Para que amanheças
Ó rosa anterior

Para que venhas
Mesmo antes de seres compreendida. Ainda
Antes da terra te poder gerar. Ó rosa
Já florida


segunda-feira, abril 21

POEMA EM SALDO Nº 25 - 25 de abril - 40 anos, 73


Fotografia de Hélder Gonçalves

Uma data que regressa sempre
transparente à cabeça
um sino pendular nas cavernas do corpo
e então escrevê-lo é abrir as potências
do sangue, dos pés até à raiz
dos cabelos, deixar crescer
a vida circular dos dias
pelo silêncio poderoso
se fundamenta um olhar
um sonho uma estátua invisível
dentro da memória
ordena-se o esquecimento
mantendo sempre a respiração do Mundo
entre muitos e muitos horizontes.

José Alberto Mar

Gaia, 1999

domingo, abril 20

OS AMANTES OBSCUROS - 25 de abril - 40 anos, 72

Fotografia de Hélder Gonçalves

Nossos sentidos juntos fazem chama:
e as fantasias nossas vão soltar
os desejos desertos de quem ama
e em verso ou coração se quis tornar.

Nossos sentidos são matéria prima
de um canto que é mais leve do que o ar;
o mundo todo não nos adivinha:
somos sombra sem luz, sequer luar.

Que o corpo quebre a noite desolada,
que o corvo ceda a voz à escuridão:
mil luzes são o nome da amada;
quem se perdeu no verso é sem perdão.

sábado, abril 19

CIDADE DA AGONIA ou A PROMESSA POR CUMPRIR - 25 de abril - 40 anos, 71


                                                            Fotografia de Hélder Gonçalves

Um fulvo rubor, o último
no Tejo a anoitecer.
Que me segredas,
debruçada da janela,
sobre a água em flor?
Cerram-se os olhos do nosso bairro,
as sombras desencontram-se no escuro
da indiferença e do medo.
A cintilação dos arranha-céus
da nova riqueza
é fria, inexorável.
Fugiram todas as pombas e as gralhas
e os corvos
das artérias nobres da cidade
e das ruas, becos, calçadas onde só restam
corpos estilhaçados como estrelas
e palavras, relâmpagos, lágrimas, silêncios,
fúria, rosas profanadas
e miríades de antenas de televisão,
sobejos de festim,
um campo de derrota.
Será alguma vez o homem
irmão do homem?

sexta-feira, abril 18

Sem Título - 25 de abril - 40 anos, 70


Fotografia de Hélder Gonçalves

Uma infância perfurada por zeppelins.
Hoje, de comando na mão, zappas.

És o canhoto de um anjo – melancolia
que te sufoca o amor e as veias,
uma a uma, esvaziadas de Deus.

Mas a que outra luz pode o coração
aceder se o lugar não foi capinado,

se a treva amarinha no imo líquido
das gavinhas sem tu a teres capinado –
e os anjos e os rinos quase extintos?

Vinte unhas: o escuro mate da morte.

António Cabrita

quinta-feira, abril 17

CANÇÃO DO RIO PROFUNDO - 25 de abril - 40 anos, 69

Fotografia de Hélder Gonçalves

Desci o rio profundo
com as sereias cantando
nos rochedos
espelho na mão
penteando
ao pôr-do-sol
os cabelos

E vi o gnomo
escondido
guarda fiel dos segredos
que nenhum canto revela
nenhum pente
nenhum segredo
só o fulgor deste mundo.

Y.K. Centeno
.

terça-feira, abril 15

Sem título - 25 de abril - 40 anos, 68


Fotografia de Hélder Gonçalves

Bendito sejas arado
que lavras
neste chão sagrado
por odisseias mil
as palavras
rubras e secretas
na boca dos poetas
proclamando Abril.

6/1/99

Papiniano Carlos

domingo, abril 13

O QUE PENSA SIM E O QUE PENSA NÃO - 25 de abril - 40 anos, 67

Fotografia de Hélder Gonçalves

Há o que pensa sim e diz que não
há o que pensa não e diz que sim
há aquele que decerto me odeia
e não faz senão rir-se para mim

Há o que diz que sim e diz que não
conforme a meia-cara com que fala
e aquele que diz sim que sim que sim
sem saber o motivo que o embala

Há o que pensa sim e diz que sim
e esse é concerteza meu irmão
esse que diz sim pensando sim
é o que luta por uma razão.

Fernando Miguel Bernardes

sábado, abril 12

LIBERDADE - 25 de abril - 40 anos, 66

Era ainda a voz da juventude
quando a liberdade entrou
pelo canto da boca

As mãos acariciavam o sonho
enquanto o cheiro cinzento das grades
evadia os ideais

Hoje
em busca da palavra
o novo Abril amotina-se
na memória

Inconformada
pelo preço do não ser
arde agora
a palavra
traída
sem ousar … falar

26/1/99

Fernando Macias

Fotografia de Hélder Gonçalves

quinta-feira, abril 10

DOURO DE MIE ALMA - 25 de abril - 40 anos, 65


Fotografia de Hélder Gonçalves

Ah! riu de ls mius amores!
Guardian de las streilhas.
Quanto gusto de ti
I de ls tous ancantos!
Que buòno vê
Ber las ailas a bolar.
Ls paixaricos a cantar.
Las fáias a assomar …
Oubir, scuitar …
Ls cachones a fungar.
Niébros i carrascos a silbar.
Pastores sues fraitas a tocar
L’auga a caminar
Sien parar …
Pa l mar eimenso …
A chorar …
Ah! Douro de mie alma!
Tu tenes, boç.
Sós fuônte de bida.
D’einergie i riqueza.
L sangre de la tiêrra.
Como tu.
Nun hai eigual.
Sós la lhuç de Miranda.
Lhuç de Pertual!

Domingos Raposo
(Em língua mirandesa.)

terça-feira, abril 8

POST-CARD (Os velhos, os pombos, os gatos) - 25 de abril - 40 anos, 64

Fotografia de Hélder Gonçalves

Alguns habitantes queixam-se dos pombos. Do mal
que fazem às fachadas, às estátuas, à pintura
dos automóveis. Os pombos não voam a gasolina
e têm humaníssimos hábitos como a gula, as
rivalidades do cio, a sede e a urgência
de defecar. Não entendem coleiras, gaiolas, servidões
de casota, falta de jardins e adornos
de penas alheias. E por esta divina ignorância
recebem, às vezes, algum milho displicente
dádiva de crianças para a fotografia ou de benignos
velhos reformados. Algumas mulheres continuam a
socorrer os antiquíssimos ( e terrestres) gatos
vadios. Gatos da nossa infância. Das traseiras,
dos muros, dos quintais – o Sindbad, a Pardoca – com
restos de arroz em papéis engordurados. Carinhosas
velhas, atentas à famélica e materna condição
das ninhadas, enquanto os pombos e os velhos
debicam espaços onde levavam asas. Por instantes
retomam uma destronada simbologia:
Eles no Céu, elas na Terra.

Inês Lourenço

Porto, 98