segunda-feira, setembro 16

A LIBERDADE


“Revolta
Finalmente, escolho a liberdade. Pois que, mesmo se a justiça não for realizada, a liberdade preserva o poder de protesto contra a injustiça e salva a comunidade.
A justiça num mundo silencioso, a justiça dos mundos destrói a cumplicidade, nega a revolta e devolve o consentimento, mas desta vez sob a mais baixa das formas. É aqui que se vê o primado que o valor da liberdade pouco a pouco recebe. Mas o difícil é nunca perder de vista que ele deve exigir ao mesmo tempo a justiça, como foi dito.
Dito isto, há também uma justiça, ainda que muito diferente, fundando o único valor constante na história dos homens que só morreram bem, quando o fizeram pela liberdade.
A liberdade é poder defender o que não penso, mesmo num regime ou num mundo que aprovo. É poder dar razão ao adversário."
 
Albert Camus, in Cadernos

 
Cinco comentários acerca de uma palavra sobre a qual merece a pena refletir: a liberdade.
 
Um comentário atrevido ao trecho do grande Camus

A liberdade não é um valor absoluto e integral. Ela não se verifica pela sua existência ou pela sua ausência, mas revela-se na sua maior ou menor substância, e essa substância não está, essencialmente, no poder agir e afirmar o que se pensa, mas na densidade que envolve esse pensar e esse agir. Por isso é um absurdo chamarmos livres às sociedades em que vivemos, porque elas poderão ser mais ou menos livres que outras mas nunca livres em absoluto. Mas absurdo maior é chamarmos livre a uma sociedade em que o pensamento nunca como antes foi tão condicionado por tão poderosos instrumentos de alienação, despossuindo o homem da sua verdadeira essência, tornando-o um ser uniformizado e unidimensional. Moral, necessidades, estilos de vida são induzidos por esses poderosos intrumentos fabricadores do conformismo e do senso-comum numa escala nunca vista.


A esta ideia absoluta de liberdade vem atrelada a ideia de democracia, como organização social e política que a garante. Também ela, aqui, tomada como categoria definitiva e única - a democracia, e não como categoria relativa - esta democracia. Se a democracia perdeu hoje, indiscutivelmente, substância também a perdeu a liberdade, tendo sido ambas remetidas para os seus aspectos formais.
O pior desta democracia é esta ilusão de liberdade.
Isto acontece porque o chamado desenvolvimento favorece as desigualdades sociais e a centralização do conhecimento, do poder e da riqueza. O combate pela justiça é, por isso, o verdadeiro chão onde pode germinar a liberdade. Ao contrário do que dizem, a igualdade social é que pode libertar a individualidade, ao contrário da desigualdade opressora que produz a unidimensionalidade e uniformidade humana. Todos os actos de justiça alargam o espaço da liberdade, ainda que possam restringir o direito ilegítimo de alguns, que é grosseiro designar como cerceamento da liberdade.

Resumindo, inverteria, passe o atrevimento, a prioridade dos termos usados por Camus. Escolho a justiça porque sem ela a liberdade não passa de uma vã e perigosa formalidade, e só com a sua (da justiça) realização progressiva poderá a liberdade ganhar substância. Náo existem actos de justiça atentatórios do valor substancial da liberdade.
Abraço. Carlos Pratas
*
Sobre esta questão complexa todas as simplificações são perigosas. Quando se cataloga ou se acusa deve dizer-se porquê. Duas notas :

1 o comunismo sempre foi património do ideário libertário. Identificá-lo com o totalitarismo, sem mais, é uma facilidade que dá jeito mas não abona no rigor de quem o faz;

2 é uma originalidade conciliar o ideário libertário com o pensamento social-democracia e a defesa da democracia burguesa.
*

O comentário anterior é meu apesar de me ter esquecido de assinar. Escrevi-o como resposta imediata ao comentário do EG que me surpreendeu pelos termos em que foi feito. Acrescento um último esclarecimento:

Nunca defendi posições totalitárias e sempre combati aqueles que falando em nome do comunismo têm muito a ver com o totalitarismo e pouco com o comunismo.. Penso que é tarefa maior resgatar essa ideia original de uma sociedade de plena igualdade e liberdade. Podia inventar-se outra palavra mas essa representa um património de luta de emancipação dos oprimidos e explorados.
Quanto à Democracia, defendo uma outra mais ampla e participada e não esta (por isso não tenho votado) que se faz de um poder cada vez mais delegado e, por isso, abre espaço para florescerem soluções de cariz autoritário. Carlos Pratas
*
Esta citação dos “cadernos” de Camus é o assunto, e a síntese de “O homem revoltado” (1951). Uma das mais importantes reflexões do séc. XX. Todo o livro (O homem revoltado), a que Camus empresta o brilho literário que lhe é característico, se desenvolve para chegar à síntese aqui “postada”. Como se sabe, essa síntese, e o suporte que a fundamenta, ocasionou uma violenta controvérsia, e esteve na base do também violento rompimento entre Camus e Sarte. Rompimento que só viria a ser reparado após a morte de Camus, no vibrante elogio "post mortem" que Sarte lhe dedicou.
Um comentário a um “post” não se presta a grandes aprofundamentos. Mas esta questão é essencial, em certo sentido é a questão, e quero deixar o meu contributo.
A história da “revolta” desenvolvida por Camus no livro não cauciona aquela síntese, pese o esforço produzido nesse sentido. Esse esforço é carrilado na oposição entre o “revolucionário” e o “revoltado”. Através dessa ideia central, Camus tentou chegar à oposição entre justiça e liberdade; ou, o que vai dar ao mesmo, à sua hierarquização, numa escala de valores. Admitida essa oposição, ou essa hierarquização, ou, o que vai dar ao mesmo, à sua possibilidade, é fácil a interpelação de uma escolha: escolhe um dos termos. Camus faz a sua escolha.
Todo o problema reside na admissão dessa oposição. Admitida ela, a questão torna-se irresolúvel, porque, ao contrário da pretensão de Camus, a escolha de um dos termos não resolve o problema. Antes prolonga, indefinidamente, o equívoco.
A solução só pode residir na negação da oposição entre justiça e liberdade. Na assunção da tese de que a liberdade sem justiça é meramente formal, exterior aos mecanismos sociais, e, como muito bem assinalou CP, assassina dela própria: na essência, reduz-se à caricatura dela própria, à liberdade de uma minoria explorar a maioria, à redução do indivíduo a um “replicador” do senso comum, esse mesmo que é o sustentáculo ideológico daquela exploração. E repare-se: se não há justiça, é porque alguém oprime alguém; será admissível conceber que essa opressão possa realizar-se em liberdade? Parece óbvio que não. Nas sociedades “livres” contemporâneas, qual a medida da capacidade de protesto, que fundamenta a escolha de Camus, do assalariado ou do desempregado? E qual a medida da capacidade de recurso que o explorado na sua força de trabalho encontra na justiça “independente” e “cega”? Por outro lado, na assunção da tese de que justiça sem liberdade (aqui entendida como a liberdade, sem peias de qualquer espécie, de plena expansão das possibilidades individuais e colectivas) se transforma numa justiça dirigida, e, nessa qualidade, portadora inevitável de diferenciações sociais, de poderes arbitrários e de novas, que se revelam afinal velhas, formas de exploração.
(CONT)
*
A negação da oposição entre a liberdade e a justiça pode sintetizar-se deste modo: não há liberdade sem justiça, não há justiça que se cumpra sem liberdade. Escolher uma, admitindo o abandono da outra, como quem escolhe um bem maior, face a um bem menor, significa, no fim e ao cabo, negar ambas. Deste modo, essa escolha torna-se pérfida, e ilusória.
Todavia, sobra um aspecto fundamental, argutamente sinalizado pelo CP: porque é intrínseca à realidade social, a realização da justiça, no que tem de movimento individual e colectivo, favorece a realização da liberdade; pelo contrário, e porque é extrínseca àquela realidade, a expansão da liberdade formal, no que tem de estagnação e de alienação individuais e colectivas, obstaculiza a realização da justiça.
A plena reunião da liberdade e da justiça é a utopia da humanidade. O encontro fraterno do revolucionário com o revoltado. Dessa utopia estão muito mais próximos os movimentos libertários e colectivos que têm na raiz a exigência da justiça, do que a sociedade de liberdade formal, classista, decadente, podre e condenada, em que vivemos. A época actual não poderia ser, a este respeito, mais demonstrativa.
Não se trata de uma questão de balanço entre dois termos. Esse balanço não é controlável, e romperá sempre, tendo como resultado inevitável a negação de ambos os termos. Trata-se de uma questão de intransigência. Intransigência na defesa dos dois termos. É a única posição que poderá, de facto, sustentar quer um, quer outro.

Miguel Teotónio Pereira

6 comentários:

Anónimo disse...

Um comentário atrevido ao trecho do grande Camus

A liberdade não é um valor absoluto e integral. Ela não se verifica pela sua existência ou pela sua ausência, mas revela-se na sua maior ou menor substância, e essa substância não está, essencialmente, no poder agir e afirmar o que se pensa, mas na densidade que envolve esse pensar e esse agir. Por isso é um absurdo chamarmos livres às sociedades em que vivemos, porque elas poderão ser mais ou menos livres que outras mas nunca livres em absoluto. Mas absurdo maior é chamarmos livre a uma sociedade em que o pensamento nunca como antes foi tão condicionado por tão poderosos instrumentos de alienação, despossuindo o homem da sua verdadeira essência, tornando-o um ser uniformizado e unidimensional. Moral, necessidades, estilos de vida são induzidos por esses poderosos intrumentos fabricadores do conformismo e do senso-comum numa escala nunca vista.


A esta ideia absoluta de liberdade vem atrelada a ideia de democracia, como organização social e política que a garante. Também ela, aqui, tomada como categoria definitiva e única - a democracia, e não como categoria relativa - esta democracia. Se a democracia perdeu hoje, indiscutivelmente, substância também a perdeu a liberdade, tendo sido ambas remetidas para os seus aspectos formais.
O pior desta democracia é esta ilusão de liberdade.
Isto acontece porque o chamado desenvolvimento favorece as desigualdades sociais e a centralização do conhecimento, do poder e da riqueza. O combate pela justiça é, por isso, o verdadeiro chão onde pode germinar a liberdade. Ao contrário do que dizem, a igualdade social é que pode libertar a individualidade, ao contrário da desigualdade opressora que produz a unidimensionalidade e uniformidade humana. Todos os actos de justiça alargam o espaço da liberdade, ainda que possam restringir o direito ilegítimo de alguns, que é grosseiro designar como cerceamento da liberdade.

Resumindo, inverteria, passe o atrevimento, a prioridade dos termos usados por Camus. Escolho a justiça porque sem ela a liberdade não passa de uma vã e perigosa formalidade, e só com a sua (da justiça) realização progressiva poderá a liberdade ganhar substância. Náo existem actos de justiça atentatórios do valor substancial da liberdade.
Abraço. Carlos Pratas



Eduardo Graça disse...

Interessante esta posição do CP com a qual discordo. A sua posição acerca da relação entre justiça e liberdade é a posição típica do comunismo e de todas as ideologias totalitárias e a minha será a posição dos libertários. Interessante tanto mais que julgo que o CP se assume como libertário ou, pelo menos, é assim que sempre o vi mas, na verdade, a questão de fundo é complexa como o próprio Camus ao longo da sua obra, que sempre a tratou de vários ângulos, reconhece.

Anónimo disse...

Sobre esta questão complexa todas as simplificações são perigosas. Quando se cataloga ou se acusa deve dizer-se porquê. Duas notas :

1 o comunismo sempre foi património do ideário libertário. Identificá-lo com o totalitarismo, sem mais, é uma facilidade que dá jeito mas não abona no rigor de quem o faz;

2 é uma originalidade conciliar o ideário libertário com o pensamento social-democracia e a defesa da democracia burguesa.

Anónimo disse...

O comentário anterior é meu apesar de me ter esquecido de assinar. Escrevi-o como resposta imediata ao comentário do EG que me surpreendeu pelos termos em que foi feito. Acrescento um último esclarecimento:

Nunca defendi posições totalitárias e sempre combati aqueles que falando em nome do comunismo têm muito a ver com o totalitarismo e pouco com o comunismo.. Penso que é tarefa maior resgatar essa ideia original de uma sociedade de plena igualdade e liberdade. Podia inventar-se outra palavra mas essa representa um património de luta de emancipação dos oprimidos e explorados.
Quanto à Democracia, defendo uma outra mais ampla e participada e não esta (por isso não tenho votado) que se faz de um poder cada vez mais delegado e, por isso, abre espaço para florescerem soluções de cariz autoritário. Carlos Pratas

Miguel disse...

Esta citação dos “cadernos” de Camus é o assunto, e a síntese de “O homem revoltado” (1951). Uma das mais importantes reflexões do séc. XX. Todo o livro (O homem revoltado), a que Camus empresta o brilho literário que lhe é característico, se desenvolve para chegar à síntese aqui “postada”. Como se sabe, essa síntese, e o suporte que a fundamenta, ocasionou uma violenta controvérsia, e esteve na base do também violento rompimento entre Camus e Sarte. Rompimento que só viria a ser reparado após a morte de Camus, no vibrante elogio "post mortem" que Sarte lhe dedicou.
Um comentário a um “post” não se presta a grandes aprofundamentos. Mas esta questão é essencial, em certo sentido é a questão, e quero deixar o meu contributo.
A história da “revolta” desenvolvida por Camus no livro não cauciona aquela síntese, pese o esforço produzido nesse sentido. Esse esforço é carrilado na oposição entre o “revolucionário” e o “revoltado”. Através dessa ideia central, Camus tentou chegar à oposição entre justiça e liberdade; ou, o que vai dar ao mesmo, à sua hierarquização, numa escala de valores. Admitida essa oposição, ou essa hierarquização, ou, o que vai dar ao mesmo, à sua possibilidade, é fácil a interpelação de uma escolha: escolhe um dos termos. Camus faz a sua escolha.
Todo o problema reside na admissão dessa oposição. Admitida ela, a questão torna-se irresolúvel, porque, ao contrário da pretensão de Camus, a escolha de um dos termos não resolve o problema. Antes prolonga, indefinidamente, o equívoco.
A solução só pode residir na negação da oposição entre justiça e liberdade. Na assunção da tese de que a liberdade sem justiça é meramente formal, exterior aos mecanismos sociais, e, como muito bem assinalou CP, assassina dela própria: na essência, reduz-se à caricatura dela própria, à liberdade de uma minoria explorar a maioria, à redução do indivíduo a um “replicador” do senso comum, esse mesmo que é o sustentáculo ideológico daquela exploração. E repare-se: se não há justiça, é porque alguém oprime alguém; será admissível conceber que essa opressão possa realizar-se em liberdade? Parece óbvio que não. Nas sociedades “livres” contemporâneas, qual a medida da capacidade de protesto, que fundamenta a escolha de Camus, do assalariado ou do desempregado? E qual a medida da capacidade de recurso que o explorado na sua força de trabalho encontra na justiça “independente” e “cega”? Por outro lado, na assunção da tese de que justiça sem liberdade (aqui entendida como a liberdade, sem peias de qualquer espécie, de plena expansão das possibilidades individuais e colectivas) se transforma numa justiça dirigida, e, nessa qualidade, portadora inevitável de diferenciações sociais, de poderes arbitrários e de novas, que se revelam afinal velhas, formas de exploração.
(CONT)

Miguel Teotónio Pereira

Miguel disse...

A negação da oposição entre a liberdade e a justiça pode sintetizar-se deste modo: não há liberdade sem justiça, não há justiça que se cumpra sem liberdade. Escolher uma, admitindo o abandono da outra, como quem escolhe um bem maior, face a um bem menor, significa, no fim e ao cabo, negar ambas. Deste modo, essa escolha torna-se pérfida, e ilusória.
Todavia, sobra um aspecto fundamental, argutamente sinalizado pelo CP: porque é intrínseca à realidade social, a realização da justiça, no que tem de movimento individual e colectivo, favorece a realização da liberdade; pelo contrário, e porque é extrínseca àquela realidade, a expansão da liberdade formal, no que tem de estagnação e de alienação individuais e colectivas, obstaculiza a realização da justiça.
A plena reunião da liberdade e da justiça é a utopia da humanidade. O encontro fraterno do revolucionário com o revoltado. Dessa utopia estão muito mais próximos os movimentos libertários e colectivos que têm na raiz a exigência da justiça, do que a sociedade de liberdade formal, classista, decadente, podre e condenada, em que vivemos. A época actual não poderia ser, a este respeito, mais demonstrativa.
Não se trata de uma questão de balanço entre dois termos. Esse balanço não é controlável, e romperá sempre, tendo como resultado inevitável a negação de ambos os termos. Trata-se de uma questão de intransigência. Intransigência na defesa dos dois termos. É a única posição que poderá, de facto, sustentar quer um, quer outro.

Miguel Teotónio Pereira